Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 5
— Auto-definição




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— Auto-definição

Sora foi sozinho até a estação de trem contar as novidades aos seus colegas, como o esperado, entretanto, nem todos eles receberam-nas bem. A situação piorou quando contou a eles que Atsuko foi presa.

— Traidor! — Alguém na multidão o acusou, começando um alto coro de vaias e de xingamentos que fez as estruturas do túnel semiescuro balançarem.

Aquilo o irritou no fundo da alma. Antes só queria ajudá-los, agora queria bater neles. Nunca pensou que fazer o bem fosse tão difícil. O que o consolou foi ver que a maioria estava do seu lado, defendendo-o, tentando acalmar os demais. Os poucos que se voltavam contra ele eram liderados pelo miserável do Kimito. Nunca foram muito com a cara um do outro. Tinha certeza de que o desgraçado estava se aproveitando daquilo para poder matá-lo, como jurou que faria depois que Sora o derrotou há uns meses. Olhou-o nos olhos, como uma lince caçando. Você me paga, os dois pensaram.

Esse grupo que gritava impropérios contra o Raikyuu teria partido para cima dele, se a bela Mako e mais dez retalhadores, garotos e garotas, não tivessem entrado na frente. Explicou concisamente que eles teriam um lar, que não dormiriam mais no chão e nem teriam que voltar para aquele trabalho humilhante. Não adiantou de muita coisa. O Reino de Órion continuava sob o risco de ataques e agora estava sendo chamado de traidor. Estalou o pescoço e deu uma risada. Se perguntou por que ligava tanto para o que eles achavam. Ofereceu-lhes a chance de levar uma vida melhor e eles recusaram, não era problema seu.

De repente se deu conta de por que se importava com o que seus colegas achavam. Aquela gente passou anos ao seu lado, muitos deles foram seus companheiros de cela, de combates. O conheciam como ninguém. Se até eles o rejeitavam, que expectativa de vida normal podia ter? Estava com medo. Sério, Sora? Medo da rejeição?, se reprovava, em pensamentos. Nunca pensou que passaria por isso. Queria que esse sentimento sumisse de seu coração imediatamente e faria o que fosse necessário para conseguir, se sujeitaria a pior dor física. Seria capaz até de deixá-los espancá-lo.

— Vamos ser razoáveis! — Mako argumentava com os mais agressivos. Jovem como Sora, ela parecia uma índia. — Isso era a melhor coisa que podia acontecer pra gente, vocês pararam pra pensar nisso?

Kimito deu, pelos trilhos, dois passos na direção deles, obrigou-os a se colocar em guarda. Sora jurava ter visto um sorriso no rosto cínico daquele loiro metido.

— Eu só penso que ele entregou a Atsuko e matou o Toshi, é nisso que eu penso! — Rebateu, trazendo uma velha questão à baila.

Finalmente tirou Sora do sério. Quando o Raikyuu ia atacar, Mako virou-se para ele e o deteve, o pediu, com a mão, para parar.

— Eu já disse que o Toshi foi um acidente! — Se justificou, depois de esfriar os ânimos. — Ele estava atacando a família real, acabaria sendo morto de qualquer jeito por um dos retalhadores de elite! Eu não entreguei a Atsuko, fui lá com ela pra pegar o nosso alvo, como combinamos! E ela não vai ficar presa, vai pegar trabalho comunitário assim como eu e por menos tempo ainda... — Respirou fundo. Nada do que disse aliviava sua consciência, continuava sentindo-se o culpado por tudo de ruim que ocorreu ali. Achava que devia-lhes mais. Após passear o olhar em um por um, perguntou: — Sei que está difícil confiar neles e até em mim, mas acreditem... como a Mako disse, foi a melhor coisa que podia acontecer.

Quando Kimito estava começando a perder toda a influência que tinha sobre o pequeno grupo voltado contra Sora, houve um pequeno inconveniente. Yue, que o seguiu para ter certeza de que ele não se meteria em problemas, deu as caras e se aproximou. Assustou-os. Tanto os que estavam do lado do Raikyuu quanto os que pretendiam atacá-lo se afastaram instantaneamente, pularam para a calçada ao lado dos trilhos.

Sora estapeou a própria testa e abaixou a cabeça. Tudo estava indo de mal a pior.

— É uma retalhadora de Órion, amiga da primeira ministra! — Delatou Kimito. — Eu sabia que isso era uma armadilha!

Só então Yue se deu conta de que fez besteira seguindo-o até ali. Bem que Sayuri avisou. Depois de pensar melhor, por estranho que pareça, a presença dela deixou Mako mais tranquila. Na sua lógica, se não estava em casa protegendo o pai, que naquela manhã quase foi assassinado, Yue veio porque tudo fora resolvido e porque, de fato, queria ajudá-los. Fora que não via maldade alguma nela. Foi pensando nisso que voltou a tentar manter a multidão sob controle. Yue a notou depressa. No fim, uma viu bondade na outra sem precisarem conversar.

Como a responsável por mais essa nova confusão, achou que devia tomar as rédeas dela.

— Calma, gente! Isso não é uma armadilha! Eu vim sozinha! — Dizia.

Nada do que ela dissesse os abrandaria, Sora e Mako sabiam disso. Se existia alguém ali capaz de aquietá-los, esse era o próprio Raikyuu. Mas não com palavras. Precisava fazer algo que mostrasse a eles que estavam sendo sinceros. Pôs-se no lugar deles. Vasculhou na própria cabeça um motivo para acreditar num suposto traidor. Estava ficando difícil pensar porque, quanto mais segundos iam embora, mais agitados os retalhadores ficavam. Mais queriam pegá-lo. Não os culpava. Há uns meses atrás, estaria do lado deles caso alguém chegasse ali com uma ideia como a sua.

Seus punhos tremeram com o plano que tomou forma em sua mente. Com certeza pacificaria tudo. Kimito iria adorar. Sem dizer nada, o mais paciente possível, marchou na direção de Yue. Não parava de pensar em quando Kikuchi disse que era parecido com ele, nem na morte do vilão. A imagem daquele monstro morrendo brilhou em sua memória e deu força à sua decisão. Eu não pareço com você, disse em pensamentos, deu o último passo e parou ao lado de Yue. Ela e Mako temeram o que ele pensava fazer.

Ergueu a cabeça, abriu os olhos e os fitou, altivo.

— Mereço ser punido pelo que aconteceu com a Atsuko e com o Toshi. Vou aceitar o que vocês decidirem. — Declarou. Mas tinha uma condição: — Desde que deixem a Yue ir. Ela não tem nada a ver com isso.

Kimito riu.

— Aceitamos os seus termos, Sora. Não aceitamos? — Falou, estalando os punhos. Muitos vibraram com sua sugestão, comemoraram. Claro que não perderia a chance de dar uma surra no favorito do Kikuchi sem ele reagir.

— Sora! Não! — Yue protestou, antevendo o que viria.

— Vá embora, Yue. O problema deles é comigo. — Pediu, calmo. Não atendido, foi mais ríspido: — Vai logo!

Yue não precisou ir embora, Kimito e mais quatro retalhadores foram buscá-lo. O levaram para junto dos demais. Assim que Mako se afastou e voltou para os trilhos, não só por Sora, mas porque ela sempre se recusava a participar de coisas como a que eles estavam para fazer, arremessaram o Raikyuu contra a parede. A sessão de espancamento em grupo começou. Brutal desde o início. Socos, chutes, cotoveladas, joelhadas, golpes na cabeça, no peito, no estômago. Enquanto apanhava, Sora buscava forças para não revidar — queria perder a consciência o quanto antes, porque estava ficando difícil se conter. Levou uma joelhada no estômago, teve a cabeça atirada contra o muro, ganhou um cruzado de direita na cara e caiu.

Tomou um chute tão forte na cabeça que começou a apagar. Enquanto desmaiava, temeu quão longe o levaria sua obsessão de se diferenciar de Kikuchi. Seus sentidos enturveceram quando um pontapé o acertou na testa, um zumbido agudo preencheu seus ouvidos e sua cabeça. Já não escutava mais nada. A última embaçada visão que teve foi a de Yue aflita. Ver alguém como ela preocupada com ele o fez desejar correr tão longe atrás desse objetivo quanto fosse necessário, sentiu que estava na trilha certa.

Kin colecionava moedas desde que tinha seis anos de idade. Elas a fascinavam, tanto pela forma e pelas figuras quanto pela história. O armário de seu quarto era repleto de livros sobre numismática, a pasta secreta na qual guardava suas moedas abrigava as de todas as civilizações conhecidas, as do passado e do presente. Gostava de poli-las quando estava sem nada para fazer, a ajudava a relaxar. Isso, como se podia imaginar, era um segredo. Algo muito pessoal. Arashi a conhecia desde que ela tinha oito anos e só foi ficar sabendo disso oito anos depois. Hoje precisou trazê-las para o trabalho porque estava muito nervosa. Ia ter uma reunião com Keiko e os ministros.

Faltando meia hora para vê-los, polia de trás de sua mesa uma bela e pequena moeda de prata com um paninho molhado em álcool. Sua mente estava completamente limpa, assim como seu coração. Nunca entendeu porque se sentia assim fazendo aquilo. Elas lhe davam a breve sensação de que ela estava visitando as cidades que as fizeram circular, de que fazia parte dessas antigas sociedades e ia comprar com elas. Talvez gostasse disso porque a paz de alguns desses lugares contrastava com o caos dentro de seu coração, porque mantinha coisas antigas na sua vida depois de tantas pessoas que amava terem ido embora. Fosse o que fosse, não queria descobrir. Saber o motivo poderia estragar tudo.

Cometeu o erro de deixar a porta da sala aberta quando chegou e, como deu a Naomi a liberdade de entrar sem bater, foi exatamente isso que aconteceu.

— Chefona, eu estava saindo de casa quando... — Naomi ia dizendo algo até vê-la esconder alguma coisa com pressa na gaveta da mesa. A loira pôs o cotovelo na mesa, apoiou o queixo na mão e ficou esperando a morena terminar de falar. Naomi mudou a cara séria para um sorriso malicioso. — Tá escondendo o que aí? É revista pornográfica?

As bochechas de Kin se enrubesceram levemente.

— Claro que não! — Respondeu. Naomi cruzou os braços e fez a cara de quem dizia "então está escondendo alguma coisa". A primeira ministra viu que não adiantava continuar fingindo, respirou fundo, tirou o artefato da gaveta e revelou: — É a minha moeda da Ilha de Egina, eu... coleciono elas desde que era criança. Meu pai me deu a minha primeira.

Naomi a tomou e segurou para ver de perto.

— É linda. Por que você fez disso um segredo, mademoiselle? — Perguntou, devolvendo.

— Sei lá... Acho que é porque era pra ser uma coisa minha e do meu pai. E quero que continue sendo um segredo, tá? — Pediu, em tom de ordem. A ouvinte assentiu e bateu continência, Kin revirou os olhos e riu. Verificou a hora no relógio branco que levava no pulso. — Vinte minutos pros ministros e a senhora Keiko chegarem, eu vou ter que apresentar a ideia da fundação... Como eu tô? — Parou as mãos na cintura, empunhou um sorriso e pediu a opinião da amiga. Naquela manhã, vestiu a mais cara das suas camisas sociais, uma bege de seda com mangas longas. Colocou uma saia preta, sapatos com salto e prendeu os cabelos para trás.

— Toda certinha, os velhotes não vão ter do que reclamar. — Naomi deu seu parecer. — Só precisa sorrir menos. — Acrescentou. Kin diminuiu o sorriso. — Menos. Um pouco menos. Perfeito. — Só disse "perfeito" quando a loira fechou a cara de vez, sabiam que aqueles coroas sisudos só simpatizariam com alguém sério.

Novamente tensa, Kin voltou para a cadeira. Ensaiava o modo mais formal de recebê-los. Desistindo, recostou-se de qualquer jeito.

— Tudo tem que sair perfeito! Eles não podem ter nenhuma queixa! — Reclamava.

Naomi sentou na ponta da mesa e afagou a cabeça da amiga com dois tapinhas.

— Calma, loirinha. Não se pressione tanto. A ideia é ótima! Vai resolver tudo, eles vão gostar! — Argumentou.

Kin concordou, mas disse seus receios:

— É, eu sei que eles vão gostar, a ideia foi da Mari, é ótima mesmo... Eles não gostam é de mim!

— Mas a senhorita Keiko gosta! — Naomi a lembrou. Kin concordou de novo. — Vai dar tudo certo, você vai ver.

Preferiu não contar a mais profunda razão de se sentir tão pressionada. Sim, queria ajudar as crianças, saldar a dívida do Reino de Órion com elas, mas acima de tudo, como disse, a ideia foi de Mari, alguém que foi como uma mãe para ela e sobretudo para o Haru. Precisava convencê-los a aceitá-la, falhar não era uma opção. Se fracassasse, estaria desapontando ela. E o Haru também. O ruivo quase se emocionou quando ouviu que Mari sugeriu aquilo. Era a última oportunidade deles de trabalhar com ela. Assim como uma vez teve sua última chance de trabalhar com Yume quando derrotou uns cientistas malucos e fez dar certo, Haru precisava daquilo. Tinha que ver o projeto dar certo.

Depois da surra feia que levou, Sora só acordou no começo da tarde do dia seguinte, numa cama de hospital, com metade do rosto enfaixado. A luz do céu claro invadiu o quarto pela janela e aqueceu as retinas de seu único olho bom. Ele se mexeu, torceu o dolorido rosto numa expressão de raiva e tentou sentar na cama.

— Calma, calma, saco de pancada! — Yue o deteve, o fez deitar de novo. — Vai acabar quebrando o que os seus "amigos" não conseguiram quebrar...

— Sério? — Perguntou, com a voz fraca. — Você, fazendo piada com isso? Num tô reclamando só porque a culpa foi sua, é também porque isso não faz seu estilo...

Yue concordou.

— É, a culpa foi minha e zoar quem tá machucado não faz meu estilo, mas eu trouxe boas notícias. — Prometeu, sentando-se em sua cadeirinha. — A ideia da fundação foi aceita! — Foi falar disso com Kin logo no começo do dia anterior, após deixar Sora ao hospital.

Sora sorriu com discrição.

— Como vai funcionar? — Indagou.

— Não vai ser dentro do Reino de Órion, eles não têm condições pra uma obra dessas no momento, vai ser em Bellatrix. Deixa eu ver o que mais... Todos vão ficar numa casa só e terão seus próprios quartos... Ah, e terão também um salário pra se manter até se formarem como retalhadores, é! Kin vai selecionar quem vai pra fundação e pediu a sua ajuda, então é melhor ficar bem logo, ouviu?

A palidez de outrora abandonou a tez do Raikyuu. Além das excelentes notícias que Yue trouxe, o bom humor dela o contagiava, influía em sua saúde. Ela tinha razão: precisava ficar bem rápido.

— Há quanto tempo eu tô aqui? — Quis saber. Não fazia a menor ideia.

— Um dia. — Yue respondeu rápido. — E não se preocupe com seus machucados, os médicos disseram que não rolou nada sério.

Não era com isso que estava preocupado, era com Kimito. Se conhecia bem aquele idiota, ele não se contentou com participar de seu espancamento. Queria mais. Um manipulador de primeira ordem, provavelmente convenceria mais gente a ajudá-lo. Diferente de Sora e da maioria dos moradores da estação de trem, Kimito não queria paz e se voltaria contra qualquer um que a oferecesse. Sempre sonhou com um alto posto entre os soldados do submundo de Kikuchi, ouvir da morte daquele monstro não o deixou nem um pouco contente. Pelo contrário: deve tê-lo deixado revoltado.


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