Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 26
— A última carta de Órion




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— A última carta de Órion

Sora defendeu o rosto de um poderoso chute, mas foi arremessado por ele com tanta força que atravessou e destruiu uma casa inteira. Sorte que tava vazia, pensou, olhando caído a poeira e os destroços. Recuperado da dor, sentou-se. Estalou, com a mão, o ombro dolorido. À sua volta, várias batalhas aconteciam. Os soldados do pai de Yue foram uma ajuda e tanto. Nem em pensamentos admitiria que aquele velho salvou sua vida, contudo. Esfregando as mãos raladas e empoeiradas, pôs-se de pé. 

 Examinou rapidamente a figura que o golpeou com tanta força. Alto, forte, com no mínimo o dobro de sua idade. Um dos membros da força policial do reino. Disse aos mercenários enviados por Yamamoto que pegassem leve com seus oponentes, mas com aquele ali, ao que tudo indicava, não podia fazer isso. Aquele era diferente. Pela potência do golpe que desferiu contra Sora, o dito cujo também não estava para brincadeiras. As mãos dele estavam literalmente sujas com o sangue dos capangas de Yamamoto. Para resumir: se não levasse o cara a sério, Haru e ele seriam os próximos.

Mostrando a que veio, o sujeito atacou Sora no segundo que o viu olhando Haru e se distrair. Sora acordou a tempo e por pouco, por muito pouco, tirou a cara da frente de seu soco. Uma intensa troca de golpes começou. Impassível e furiosa. Muitos dos lutadores em volta paravam para vê-los, o duelo se tornou um espetáculo. Ninguém era capaz de dizer qual dos dois sairia vencedor. De repente, crendo terem encontrado a brecha que procuravam, ambos ergueram os punhos para esmurrar o rival na face. Seus punhos colidiram, toda a arena estremeceu. Os dois se afastaram com um salto. 

— Sora Raikyuu, o cachorrinho do Kikuchi... — Provocou. — Não sei por que está ajudando os traidores, mas também não me interessa. Não vou ficar parado enquanto Lire destrói meu reino por vocês!

Sora riu, em escárnio. 

 — Olha, vamos pular essa arenga de reinos e traições, isso tudo não me interessa... vamos logo direto ao ponto! Haru não pode acordar e me ver demorando pra derrubar um fracote feito você, vai ficar desapontado comigo! — Retorquiu. Não quis confessar, mas entrou nessa porque gostava de Haru e Yue. A bem da verdade, foi sincero com Yue. Ajudava-os pela repulsa que a imagem de Kikuchi inspirava nele, claro, porque queria ser tão diferente daquele monstro quanto possível. Mas gostava deles. Afinal, os dois lhe deram a oportunidade de provar que não era como Kikuchi e tinham o coração mais puro que ele já conheceu. 

 Os vinte metros de distância entre eles foram percorridos num abrir e fechar de olhos. Sora esquivou-se de uma cotovelada e aplicou um soco nas costelas dele. Recuou, desviou um cruzado com uma mão, um direto com a outra e contra-atacou com um chute alto. O inimigo, atingido no rosto, cambaleou quase caindo, mas se recompôs e deu um rápido gancho no queixo de Sora. Como dois leões esfaimados brigando pela corça ferida, um rondava o outro sem desviar os olhos para outra direção.

 Um retalhador traiçoeiro roubou a atenção de Sora por um instante ao disparar uma lança de energia contra ele e forçá-lo a se abaixar. Nesse momento, o policial desembainhou uma espada e tentou degolar o Raikyuu. Sora empalideceu. Se agachara demais, estava perdido. "É o fim, não vou conseguir me levantar antes de", pensou, movendo os braços. Teria uma chance se fosse capaz de colocá-los na frente da lâmina. Perder os braços na primeira vez que luta por uma causa nobre? "É, ser bom não é fácil mesmo", desabafou, já imaginando a vida que levaria. 

Para o espanto de Sora, não para o alívio, o golpe não veio. O que viu deixou-o ainda mais tenso. Yue entrara na frente, segurou o antebraço do inimigo e deteve a espadada. Sayuri chegou em seguida e açoitou a cara do importuno com um chute voador. Projetou-o para bem longe deles e pousou ao lado da irmã, que ficou fora de órbita por alguns segundos. Todas aquelas lutas e mortes por sua causa reavivaram o conflito interno pelo qual ela passou mais cedo.

— O que estão fazendo aqui?! — Protestou Sora. Ainda agachado, continuou: — Deviam estar escondidas! Temos tudo sob controle aqui em cima!

Yue cedeu a mão para ajudá-lo a ficar de pé.

— É, deu pra ver! — Porfiou, erguendo-o. — Achou mesmo que eu fosse ficar sentada enquanto as pessoas morrem por minha causa? Aliás, de onde saiu toda essa gente? E cadê o Haru?

Sora apontou o dedo para o telhado à esquerda, onde deixou o garoto. Sayuri foi até lá ver o ruivo.

— Pode ser difícil de acreditar, mas esses caras são soldados do seu pai. — Revelou, pasmando-a. — Tínhamos o dobro de oponentes, mas Kyoko chegou com a Naomi e um cara estranho e levou a maior parte pra outro canto. Cuidado!

Sora repeliu-a com um empurrão e entrou na frente do tiro que era para ela. Uma lança de luz verde-clara cravou-se em seu peito, explodiu gerando um brilho ofuscante e desapareceu. O Raikyuu foi à lona. "Droga", resmungou em pensamentos, sentindo as costas tocarem a solo. As histórias sobre a resistência física da família Raikyuu se provaram verdadeiras: a ferida foi superficial.

— Não! Sora! — Já recomposta do empurrão, Yue correu para socorrê-lo.

— Relaxa, não foi nada... — Ele a acalmou, já sentado. Havia sangue escorrendo de seu peito, mas, de fato, o ataque passou bem longe de ser fatal.

O autor do disparo deu uma risada de incredulidade. Foi o policial que enfrentava Sora minutos atrás. 

— Desgraçado...! Recebeu meu ataque mais poderoso como se não fosse nada! — Exclamou, mais impressionado do que irritado. 

Yue olhou-o por cima do ombro. Um olhar cheio de fúria. Vendo que Sora estava bem, deixou-o. Cerrou os punhos. 

— Eu posso tolerar se caçada por você, poderia tolerar até mesmo ser atingida por aquele arremesso... — Avisava, num passivo-agressivo tom de ameaça. De olhos abertos e fixos no cara que acertou Sora, prosseguiu: — Mas você machucou meu amigo! Alguém que é importante pra mim! Não vai sair dessa impune!

Ela se esqueceu de que se tratava de um compatriota enganado e partiu pra cima dele com tudo. Acostumado a sorrir com escárnio, deboche ou sarcasmo, pela primeira vez em anos Sora sorriu de felicidade. "Alguém que é importante pra mim". Aquelas palavras marcariam para sempre a memória e o coração de Sora. Ele deitou por terra. Se permitiu descansar por enquanto. Vitorioso, pensou no quanto errara sobre si mesmo. Finalmente acreditava que podia ser melhor. Olhou para Yue, para Haru e, afinal, para o céu. Tinha razões para se esforçar.

A sala das reuniões executivas do Reino de Órion estava lotada. Se achavam lá o casal real de Órion, a guarda do palácio, os conselheiros, Lire e seu séquito e, o centro das atenções, Kin. Todos num silêncio aterrador. Nem mesmo os passos de uma formiga escapariam à audição dos presentes. As vozes se calaram, mas não os corações. Em alguns apareceram o espanto e a raiva, já noutros, a alegria. Ninguém se atrevia a dizer coisa alguma, nem a expressar qualquer emoção. Sabia-se o peso do que fora declarado ali. 

A causa foi a decisão que Kin externou diante de todos. Somente seus amigos se espantaram com o que ela disse, é verdade. Sobretudo o rei e a rainha. Kin propôs um duelo com Lire para dar um basta na querela entre Bellatrix e Órion. Mesmo que quisessem entregar Yue, disse, não sabiam como encontrá-la. O próprio primeiro-ministro estava ajudando a escondê-la. Portanto, concluiu olhando Lire nos olhos, só havia uma saída.

A cláusula dizia que o primeiro-ministro de um reino cercado podia desafiar o líder do reino que o cercava. Se vencesse, os sitiadores deviam ir embora e pagar um tributo bilionário. Perdendo, os assediadores teriam o direito de anexar suas terras às deles. Em outras palavras, havia a chance de Órion passar a ser uma província de Bellatrix. Só a hipótese insultava profundamente os habitantes deste império. Terra cuja cerviz nunca sofreu o jugo. Que só conhecia a servidão de ouvir falar. 

Dois dos mais velhos membros do conselho saltaram de suas cadeiras, enraivecidos. Punhos e dentes vedados. Os tempos de ouro de Órion, o auge da pátria com Yume, as batalhas vencidas sob o comando de Hanzuki... toda a história passava a todos perante os olhos. E agora uma criança punha tudo em jogo? Lire mudou de alegre para incrédula. Estava prestes a subjugar o mais glorioso principado da história do mundo. Chorou de emoção. Enxugou rapidamente a lágrima e abaixou o rosto. "Recomponha-se, Lire", exortava-se. "Não pode pôr tudo a perder agora que está tão perto".

 Lire tinha um bom motivo para ser tão circunspecta. Aquela cláusula era extremamente restrita, a menor ressalva tornaria inviável sua invocação. 

— É uma proposta repugnante! Não vai arriscar o Reino de Órion num duelo, Kin! — Bradou o mais velho. 

— Isso só aconteceu uma vez. — Lembrou o outro. — Há dezessete anos. Pégaso tentou nos anexar, mas Hayate lutou por nós e venceu. Admitimos antes, Yume nos persuadiu, mas não vai acontecer de novo! 

Kin voltou para os dois seu olhar mais enfurecido e determinado. Congelados de medo, ambos saltaram para trás.

 — A outra opção é entregar o Reino de Órion sem lutar, é o que vocês querem?! — Bradou. Com a atenção de novo em Lire, acusou: — Essa vadia provocou tudo isso, eu tenho certeza! Ainda não sei como, mas sei que tudo isso é culpa dela! E eu também sei que lutando com ela estarei dando o que ela quer, mas não há outra saída!

Lire assumiu o papel de ultrajada.

— Do que foi que você me chamou?! — Avançou, contida pela guarda. Mais irritada: — E essa acusação que você está fazendo é muito grave! Pro seu bem, é bom que possa provar o que está dizendo! 

A guarda, por numerosa que fosse, já não podia mais conter as duas. Queriam se enfrentar ali mesmo. Keiko e o rei, alvoroçados como todos, mediaram a situação.

— Tenham calma, por favor! — Instava o monarca, visivelmente tenso. Conhecia Kin desde a infância dela, tomou-a nos braços quando ela era uma bebê. Se havia alguém ali capaz de esfriar os ânimos da loira, era ele. Por isso exigiu paz olhando-a. 

Kin, obediente, deu as costas para Lire e cobriu a face com as mãos. Massageava as bochechas e as têmporas. Com a mão no peito, apoiada à mesa, se inquiria sobre a origem de toda aquela raiva que a invadira. Nunca foi de temperamento fácil, de fato, mas também nunca se sentiu assim. 

Buscando um meio-termo, Keiko proclamou sua decisão:

— Se Kin quer invocar a cláusula, não vejo outra saída senão avaliar o requerimento. 

A calculista líder do Reino de Bellatrix quase não reprimiu o sorriso. Na verdade, por um breve segundo ele tomou o canto de sua boca. Mas um tumulto do lado de fora perturbou a assembleia e a fez séria novamente. De repente, ouviu-se gritos enraivecidos, pancadas na porta e passos apressados. Ninguém entendeu nada. Com certo esforço, Kin reconheceu a voz que ordenava a altos urros que lhe abrissem passagem. "Gray?", imaginou, confusa. Foi em pessoa ver do que se tratava. 

Abriu a porta. Estava certa. Kande e Inari engravatavam o loiro, que se debatia e esperneava desesperado. Tão exasperado que nem a notou ali. Kin, sobressaltada, pensou que jamais viu-o daquele jeito. Kande e Inari ficaram igualmente chocados. 

— Kin, está cometendo um erro! — Ele repetia, sendo levado para longe. — Não invoque a cláusula do duelo! Não faça isso! Fala com o Arashi, fala rápido, ele sabe o que eu tenho que dizer! 

Petrificada, a primeira-ministra assistiu-o ser levado. "Como ele sabia que eu ia invocar a cláusula?", se perguntava, estupefata. O que Arashi tinha a ver com a ida de Gray àli? Onde ele estava, aliás? Algo estava acontecendo em sua pátria, sob seu nariz. Agora tinha certeza. Devia ter ficado do lado de seus amigos desde o começo. 

Ajudado por Erika e Shoichi, Arashi não demorou nem vinte e quatro horas para localizar Akeno. Atendeu as ligações de Gray, conversou com ele, escutou tudo o que o loiro tentou dizer a Kin. Gray, inclusive, lhe mandou uma cópia da conversa entre Zero e Lire. Estava com a prova da qual precisava para acabar com os planos da pérfida primeira-ministra de Bellatrix. Antes, contudo, devia libertar Kin do domínio de Akeno. 

Segundo sua hipótese, a habilidade psíquica de Akeno funcionava dentro de certos limites geográficos. "Ela não deve estar muito longe", apostou, antes de chamar Shoichi. E sua suposição foi comprovada pelos fatos. Encontrou-a a poucos prédios de distância do palácio no qual acontecia o concílio, hospedada num dos mais caros hotéis da região. 

Arashi foi até lá como quem não queria nada, tendo se feito irreconhecível para transitar pelas ruas. Um chapéu e um sobretudo. Por sorte, faltava muitas horas para amanhecer. A escuridão e a distante meia-lua eram suas aliadas. No hotel, se desfez do disfarce e, com a sutileza de um ninja, chegou ao andar em que Akeno estava instalada. Na porta, tocou a campainha e aguardou. Cumprimentou com a mão e um sorriso amigável dois hóspedes que saíram do quarto ao lado. Aberta a porta, o guerreiro glacial não se deteve. Levou a mão à garganta dela e atirou-a contra a parede à esquerda.

 — Isso é pra você acordar e saber que eu não estou brincando! — Explicou, diminuindo a força empregada. A manteve suspensa com as costas no muro amarelo dos aposentos. — Você vai vir comigo e vai desfazer sua influência sobre a Kin!

 Um pálido raio de luz perpassou a janela aberta e reluziu no azul dos olhos sérios do guerreiro. Ele realmente não estava com humor para conversar. Finalmente respirando, Akeno pôs a mão sobre o braço dele. Sua face lentamente perdia o vermelho repentino com o qual foi coberta. 

— Isso era pra me intimidar, primeiro-ministro? — Inquiriu, arquejante mas sorridente. Vestida com nada mais do que uma enorme camisa social cinza, via naquele cenário todo o alimento de suas fantasias mais pervertidas. Maliciosa, provocou: — Porque há muito tempo um cara tão bonito não me pega desse jeito no quarto. 

O guerreiro glacial ergueu-a como quem maneja uma folha de papel e, ágil, remessou-a sobre o tapete verde de sisal sintético. O piso estremeceu. Esticou a mão livre, construiu uma espada, voltou-a para o pescoço de Akeno e advertiu:

— Tem três segundos pra parar com as brincadeiras, ouviu bem? Um, dois-

— Tá bom, tá bom! — Concordou, levando-o a sério, por fim. 

Arashi largou-a e, já de pé, afastou-se. Deu-lhe um tempo para se avigorar, para tossir bastante, pois de fato não pegou leve. A leve brisa fria matinal soprou seus cabelos negros. Fitava-a com firmeza. Perdera tempo demais procurando-a, não podia desperdiçar nem mais um minuto tentando persuadi-la pacificamente. Tudo estava em jogo. 


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