Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 24
— Uma luta eterna




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— Uma luta eterna

Incomodada e, acima de tudo, preocupada com Yue, Kyoko foi da escola direto para a loja na qual trabalhava com a jovem desaparecida. Não a via e nem sabia dela há mais de uma semana. A última pessoa que encontrou e que podia dizer como estava Yue foi Sora, mas só se esbarraram na rua, vários dias atrás. Viu-o por dois minutos. Tudo o que ele falou, depois de muita insistência sua, foi que Yue estava bem e que parasse de procurá-los, pois isso a poria em perigo. Kyoko, é claro, não deu ouvidos. Desde que os conheceu, ficou viciada em se meter em perigo. 

Ventos frios voavam entre as casas das ruas do Reino de Órion. O céu, empretecido pela noite, chiava como uma fera enfuriada. Anunciava a vinda de um desastrado temporal. Apressurada, Kyoko não parou no vestiário do colégio nem para trocar as roupas da equipe das líderes de torcida. Pôs uma jaqueta de couro bege escura em torno da camisa branca de mangas longas com as cores azuis e amarelas do colégio e saiu sem dizer a mais ninguém para onde ia. Sem guarda-chuva, lamentou, quando a primeira gota daquela futura chuva pingou indelicada em sua testa. 

A chuva, como ela descobriu quando chegou ao lugar que procurava, era o menor de todos os seus problemas. A loja de Yue estava toda destruída, pouca coisa restava de pé. Olhava aquilo estática, congelada no meio da rua. Tal cena deixou seu coração em pedaços. Com a mão trépida na frente da boca aberta e uma lágrima no olho, ergueu um dos pés e adentrou a butique pela vitrine, que fora feita em pedaços. Poeira, farpas de madeira e até fumaça ainda infestavam o ar lá dentro. Trabalhamos tanto nisso, condoía-se, arrostando atônita tudo em volta. Respirou fundo. 

 Já no meio da sala, pensou em Yue. A coitadinha tá sendo caçada injustamente, queixava-se em pensamentos, e agora.. isso. Tinha certeza absoluta da inocência de sua pobre chefe. O inconveniente, como acabara de ver com os próprios olhos, é que era uma das poucas cidadãs de Órion com tal convicção. Ouviu que as pessoas com as quais Yue fora vista antes estavam sendo hostilizadas no reino, que até a casa da foragida estava cercada de manifestantes pedindo a prisão imediata dela. Não sabia que a situação estava tão feia. 

Lembrou-se de Naomi. A única retalhadora do círculo de amizades de Yue que não estava ignorando suas ligações. Mas a francesa não sabia mais do que ela sobre tudo. Mesmo assim, vinham se falando. Puxou o celular do bolso da jaqueta, acendeu a tela e iniciou a chamada. Foi atendida em dois toques.

— Naomi! Oi! — Disse. Ficou tão nervosa que esqueceu-se do que queria falar.

— "Kyoko! Aconteceu alguma coisa?" — A outra indagou. — "Sua voz tá tão tensa!"

— É, aconteceu! Alguém vandalizou a loja da Yue! Não sobrou quase nada! — Informou.

O susto de Naomi com a notícia a emudeceu. O que a afligiu mais, porém, foi imaginar como Kyoko descobriu isso.

— "Kyoko, s'il te plaît, não me diga que você está na loja!" — Implorou. O silêncio da menina foi a resposta que ela não queria ouvir. — "Sai daí, garota! Quem fez isso com certeza vai voltar!

Dessa vez, Kyoko cogitou obedecer, mas o cenário tocou seu coração de novo. As horas que passou trabalhando ali com Yue, as tardes de sábado de risadas, as coisas que aprendeu com ela, naquele tempo. Não, não podia simplesmente virar as costas e sair. Fazer isso, sentia, seria como trair uma amiga. Virar as costas para quem a ajudou a descobrir sua vocação. Que a guiou até o que dava sentido à sua vida e lhe apresentou um novo mundo. Um muito além das superficialidades da adolescência. 

Volteou os cabelos com a mão. Fitou cada item destruído.

— Eu vou ver se consigo consertar algumas coisas aqui, não demoro!

— "Não! Kyoko, me escuta! Você pode estar correndo perigo!" — Alertava-a. Em vão.

A cheerleader desligou o telefone sem dizer mais nada. Com a lanterna do aparelho foi aos fundos do recinto, pegou numa vassoura e se pôs a varrer para fora os cacos de vidro. Em seguida, espanou cada manequim, roupa e joia que não foi quebrada ou que não sofreu nenhum dano irreparável. Sem conter as lágrimas. 

Agachada na frente do balcão, atravessado por um grande pedregulho, procurou algo restaurável nele. Levantou-se, foi aos fundos de novo, pegou um baú de madeira e começou a guardar ali o que tinha emenda. Ficou nisso por uns dez minutos. Esses dez minutos, somados aos trinta que passara antes varrendo o piso e ajeitando outras coisas, foram tempo bastante para acontecer o que Naomi disse que podia acontecer. 

Os vândalos voltaram. Quatro retalhadores dispostos a ferir qualquer pessoa próxima de Yue só para obrigá-la a se entregar. Dois deles cercaram a porta de entrada, dois cercaram a vitrine arrasada e, desse modo, Kyoko ficou sem saída. Todos vestidos como gatunos, tinham até os rostos cobertos por máscaras.

— Ei! Pirralha! — Exclamou aquele que fisicamente era o mais forte, um dos que se postaram na porta de entrada. Trêmula de medo, a "pirralha" ficou de pé e se voltou para ele. O facínora sorriu. — Você vai nos ajudar a mandar uma mensagem pra vagabunda da sua amiga! 

Um dos que estava na vitrine entrou na loja. Soturnamente sério, deu dois passos na direção de Kyoko e disse:

— O único inconveniente é que nós vamos ter que te machucar. 

Kyoko não moveu um dedo, tão terrificada estava. Fechou os olhos. Chorava de dor até quebrando uma unha, o que dizer, então, de apanhar de um retalhador? Nunca pensou que sentiria tanto medo, Haru e Yue falavam daquele trabalho com tanta empolgação que a fez perder de mente a parte dolorosa dele. Nunca quis tanto que um dos dois estivesse ali. Afinal de contas, mesmo estando com outros cinquenta, um retalhador capaz de fazer mal a uma menina indefesa não teria chances contra seus amigos. 

 Abrindo os olhos novamente, viu todos os quatro caídos. Ficou mais chocada do que quando os viu. Fuçou, em si, alguma contusão. Tateou a própria cabeça, crendo que levara um golpe nela. Que era fruto de uma alucinação. Nada. Estava ilesa. 

— Devia ter me ouvido, Kyoko! — Naomi dava bronca nela, esmiuçando o recinto em busca de mais criminosos. Retirou do balcão a pedra que o traspassava, atirou-a fora e, com o baú nas mãos, continuou: — E se não tivéssemos chegado a tempo? Vamos embora daqui, você não sai da minha vista por hoje!

Naomi falou no plural porque de fato não estava sozinha. Toshinari puxava dois dos destruidores nocauteados pelos tornozelos e levava um sobre o ombro. Foi forçada a dar razão à Naomi. Se queria conhecer mais de perto o mundo dos retalhadores sem ser uma, iria precisar de esperteza. Não podia voltar a se expor ao perigo da maneira que fez naquela noite. Se desistiu de ajudar Yue? Negativo. No entanto, faria até mais do que Naomi pediu: se manteria sob o raio de alcance dos olhos dela até poder fazer algo de significativo.

Haru e Zero travavam um duelo muito mais renhido do que Zero gostaria de admitir. Uma luta realmente nivelada. Ele é só uma criança, reiterava mentalmente, de quando em quando. Um mantra que funcionava, porque toda vez que o pensava, encaixava um soco no rosto de Haru. Se irava, contudo, porque segundos depois levava um golpe igual. Não caía. Voltava lá e, igualmente motivados, os dois se engalfinhavam numa troca de socos animalesca. Uma que ficava sem resultados na maior parte do tempo. Com o vencedor imprevisível. 

Absolutamente certo de que seu rival ficara a sua mercê, Zero canalizou toda a força no punho direito e deu tudo de si naquele gancho de esquerda. Haru fez-se intangível. O atacante passou pasmo através do alvo, como uma criança tentando abraçar o inimigo imaginário. 

O ruivo tornou-se tangível logo a seguir e, girando, bateu na nuca do adversário com uma pernada. Mandou-o para o chão. Tinha o inimigo caído e uma arremetida que, levada a cabo, sem dúvida poria fim à peleja, mas a dor da contusão que sofrera na panturrilha destra o freou. Zero tirou vantagem disso e se reergueu. Cambaleante. 

Os dois repletos de escoriações, de equimoses e invadidos pela exaustão. Ofegantes. Zero investiu. Insultado porque não abatia um fedelho, dominado pela raiva. Seus movimentos, em vista disso, ficaram previsíveis e canhestros. 

Haru não necessitava mais nem recorrer às suas técnicas especiais para se safar. Esquivava-se como um mestre se divertindo com o pupilo. Tirou a cara da frente de um cruzado de direita, de um outro de esquerda, deu um passo para trás e escapou de um chute. Deteve o braço de Zero com as mãos, jogou-o para o lado e deu-lhe uma cotovelada no queixo. 

Que droga! Esse cara é feito do quê? — Olhando Zero se recompor, Haru murmurou, em pensamentos. — Que bom que os golpes dele ficaram mais espalhafatosos, porque eu não tenho mais energia pra intangibilidade...

 — Esse olhar no rosto desse pirralho... É como a Lire descreveu o jeito que a irmã dele olhava! — Zero, perplexo, acabava de notar. Fato que apenas encolerizou-o mais. Estava ficando igual àquela louca? Cerrou os punhos com tanta força que suas unhas rasgaram a palma de suas mãos. Sangue jorrou delas até a terra. — Que seja! Vou ser mais esperto e acabar com isso aqui! 

Perfurou o solo com seu soco e sobrecarregou-o com a eletricidade que provinha de seu poder. Estilhaçou-o integralmente. Para escapar dos choques, das rochas e da poeira, Haru recuou para as alturas. Usou suas grandes asas douradas, idênticas às de Kin. Zero usou como degraus os pedregulhos que se soltaram do piso e rapidamente alcançou-o. O punho transbordante de energia, voltou contra Haru, tentou golpeá-lo no peito. O menino habilmente moveu-se para a direção contrária a que vinha o ataque e desfez as asas. Voltou para a superfície, não podia gastar mais poder.

 Seu impetuoso oponente, energizado dos pés à cabeça, atirou-se contra ele. Haru saiu da frente e Zero colidiu com a terra como um meteoro eletrificado. Um impacto que terminou por devastar o pouco que restara do campo de batalha e que levou embora a luz de todo o Reino de Órion. Deu-se, então, uma escuridão que nunca houve ali em toda a história. Ninguém enxergava os próprios dedos. Somou-se a isto um silêncio igualmente aterrador, como se o som fugisse das trevas. Os destroços que voaram por causa do choque de Zero romperam a quietude. 

Ainda insatisfeito, o responsável por todo aquele caos fez o possível para se pôr de pé. Desabou de joelhos. Sem força para dar um soco. A poucos passos de distância dele, Haru não estava condições melhores. Precisou fazer-se intangível para sair com vida da última invectiva de Zero e isso consumiu o pouco vigor que lhe sobrara. Caíra de barriga para cima. Vamos, Zero se exortava, foi capaz de mover-se um passo. Suas mãos, trêmulas, ficaram cobertas de sangue. Estavam inutilizadas. Ele está imóvel, brigou, dando mais um passo. Finalize, sua mente mandava e seu corpo, lasso, não atendia. Quis gritar. Nem isso podia. 

 Haru, que até então só respirava — e com muito labor — arqueou a perna. Ouviu Zero rir. 

 — Qual é a graça, idiota...? — Perguntou, após um esforço imensurável.

 Zero voltou os olhos para as estrelas e a lua. Esta última, agora, trouxe um pouco de luz para Órion. Recobrado o fôlego, justificou-se:

— Esse é o começo de uma longa amizade, garoto. Enquanto eu viver, você nunca terá paz! Seu destino é morrer nas minhas mãos ou me matar...

Haru também desviou a atenção para a lua. Não podia negar que aquele foi o duelo mais divertido que já teve, mas os danos colaterais custaram caro. Tudo a sua volta estava destruído. Se sendo tão novos fizeram todo aquele estrago, o que haveria de acontecer mais tarde, no auge de seus poderes e experiência? Não queria criar um novo Santsuki. Muito menos viver o que sua mãe viveu com ele. 

Preparado para retrucar, voltou a face para Zero e apontou o dedo. Parou na metade da frase, no entanto. Sora aterrissou na arena.

— Vamos nessa, ruivo! — Disse. Jogando-o no ombro, falou: — Esse blackout deve ter deixado nossa amiga desesperada, precisamos vê-la ou ela virá atrás de nós!

Zero, que contava já com o amparo de Gray, lembrou-se de Sora no minuto que o viu. É um Raikyuu, como eu.

— Ei! Raikyuu! — Chamou-o. Divisado por Sora, advertiu: — Eu não vou descansar até matar vocês dois!

Longe de achar que ele estava brincando, mas por ter escutado aquelas palavras dezenas de vezes, Sora riu e deu-lhe as costas. Desafiou-o:

— Julgando pelo que a luta de vocês fez aqui, vai ser divertido. Procure-nos quando estiver menos moído! Não precisamos te dar número de telefone, você sabe onde nos achar!

Gray não ficou menos impressionado com o resultado do conflito. O Reino de Órion inteiro pagou as consequências, meditava, embasbacado. Não pensou que voltaria a ver semelhante cenário desde que Kikuchi atacou. 


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