Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 23
— Kin vs. Arashi




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— Kin vs. Arashi

Confiando em Erika e Shoichi, Arashi se deitou no sofá do departamento de investigação e dormiu pela primeira vez naquela semana. Teve paz durante quinze minutos. Nos outros cinco, visões terríveis lhe vieram em pesadelos. Via-se algemado, via todos os seus aliados indo presos. Testemunhava, inerme, a prisão e a execução de Yue. Kin a assassinava. Acordou no exato instante que a primeira ministra rasgou o coração de sua amiga com uma espada. Sentou-se agilmente, agoniado.

 Encarregou Erika e Shoichi de driblar as habilidades sensitivas de Kin, a fim de que ela não se desse conta de que Yue estava vários metros abaixo da superfície. Quando soube que Haru e Sora haviam vindo à luz, pediu a Shoichi que trouxesse a loira até ele. Não a via desde que discutiram na sala de reuniões, então ainda não enfrentou diretamente a reação dela. Mas a conhecia. Tinha uma ideia bem nítida de como ela estava. 

Quando se sentia traída ou enganada, Kin punha a raiva acima da dor. Atacava como podia quem via pela frente. Portanto, para começar cedo o controle dos danos que decorreriam disso, pensando em acalmar o incêndio nas primeiras fagulhas, fez-se alvo. 

Erika e Shoichi conversavam folgadamente, ao lado da estante de livros do salão. Não perceberam ainda que o guerreiro glacial estava desperto. Em sobretudos de cor bege, trazidos pelo mesmo veículo acima de suspeitas, vieram no segundo que o primeiro ministro disse que precisava deles. Sendo famosa e capaz de arrastar multidões de fãs por onde ia, Erika não pôde nem se maquiar naquela tarde. 

— Ela está a caminho. — Shoichi notificou o primeiro ministro, logo que o viu sentado. Foi com Erika até o sofá onde o deixaram. 

O esgrimista da neve esfregou os olhos com as mãos. Estavam embaçados e cansados. Qual a poeira que colore o ar quando o solo sofre as batidas dos cascos dos cavalos, uma aflição fatigante acinzentou seu peito e suas feições. 

— Obrigado. — Disse, com um sorriso pesado nos lábios, um que pleiteou grande esforço para surdir. No olhar, manifestava uma profunda angústia e um desapontamento maior ainda. Consigo. Fitando os dois de pé atrás do sofá, se desculpou: — Fiz de tudo pra não envolver vocês nessa... Sinto muito por isso. 

Erika assentou-se junto a ele. 

— Para com isso. — Repreendeu-o. Como sempre, iluminada de otimismo. Cabelos fulvos como o sol ao meio-dia, olhos cujo verde simulava a cor do precioso cristal vivianita, traços faciais meigos, tão melodiosos que, na apreciação deles, um compositor veria a partitura de uma sonata completa. Sua beleza era a expressão visual de uma ode às criações de Deus. — Tentamos entrar em contato contigo a semana inteira! Não podia deixar a gente de fora dessa, somos companheiros de equipe, Arashi! 

Shoichi escorou-se no estofado. 

— Sayuri também quis vir, mas concordamos que três de nós saindo juntos iria chamar muita atenção. — Acrescentou.

Um leve e repentino tremor atingiu os alicerces e as janelas da casa. O trio trocou olhares. A energia que sucedeu o abalo, forte e calorosa, confirmou suas suspeitas sobre a causa do abalo. Kin. A jovem governadora estava agastada, ressentida e, bem no fundo, com medo. Kin não temia apenas o que Lire e o reino dela ameaçavam fazer com Órion, não. O que a inquietava de verdade era pensar no que precisaria fazer para deter as pessoas que mais amava. Ao guerreiro que dividia com ela o comando do império orioniano abatia dor igual. 

Pensando no que estava disposto a fazer para garantir que seu pesadelo não iria se tornar realidade, delongou os olhos em Shoichi. Migrou-os para Erika. Chegou perto de pedir um conselho, até abriu a boca. Hesitou e guardou em si a pergunta que formulara mentalmente. 

— Vão. — Mandou. — Ela não pode saber que vocês estiveram comigo, façam de tudo para não ser vistos.

Erika se apropinquou.

— Deixa a gente ficar e ajudar! — Estendeu a mão e disse, nervosa.

— Só pioraria tudo. — Arashi asseverou, com aparência de serenidade. Em seguida: — Ela ficaria mais furiosa e perseguiria vocês. 

Shoichi se dirigiu para os fundos da residência, onde ficava a saída. 

— Ele tem razão. — Concordou com Arashi. — Além disso, ele está sendo gentil, essa é uma batalha entre dois primeiros ministros... nós dois só atrapalharíamos. — Arguiu. Apontando a porta, chamou-a: — Vamos, Erika.

A investigadora anuiu, sem palavras. Sem desviar os compassivos olhos do guerreiro glacial, retrocedendo até Shoichi, se foi. Minutos após, Arashi escutou passos no polido piso da entrada. 

Kin, com toda a classe e cuidado, acabava de cruzar a porta. Fechando-a, elegantemente introduziu-se no salão em que ele estava. Como se aquele fosse mais um dia em suas vidas. O sorriso que seu rosto empunhava não se parecia nada com os de outrora, no entanto. Nem sua postura. Hoje, nos gestos e nos lábios só manifestava cinismo. 

 Os olhos castanhos escuros, tão escuros que quem olhasse neles juraria que não havia pupila, Kin fixou nele. Um sentimento estranho a invadiu. Nela, a raiva embatia-se com a calma. 

— Se escondeu de mim por uma semana. Senti tanta saudade desses olhos azuis. — Rompeu o silêncio, sarcástica.

Arashi secretamente protegeu com camadas de gelo as articulações. O estilo de luta de Kin envolvia principiar por atingi-los sutilmente e inutilizar braços e pernas do oponente. 

— Não vou ficar parado enquanto você a entrega pra Lire, Kin. Não posso. — Anunciou. 

— Você é tão lindo. Aposto que já deve ter notado que não se parece nada com os moradores de Órion... É por isso que não se importa com a destruição desse reino, porque sabe que não é daqui! No fundo, nunca se sentiu como um de nós! — Atacou-o. 

 Atingido, o esgrimista respirou fundo. 

— Sabe que não é verdade. Estou fazendo isso porque sei que sou daqui. — Redarguiu. — Posso ter nascido em outro lugar, mas Órion é minha pátria. E vou defender o que ele representa. Nosso reino não era grande porque tinha as melhores casas, ruas, hospitais e edifícios, ele tinha tudo isso porque era grande. Porque nossos líderes entendiam que todas essas coisas mudam e que o que não pode mudar é o espírito que serviu de base e inspiração para a fundação do reino! 

Kin aplaudiu. 

— Bravo! — Exclamou, entre as palmas. — Vamos logo ao que interessa? Há anos não lutamos pra valer um contra o outro, eu tô ansiosa! 

 Os dois sentiram-se presos ao chão. Ela, por mais magoada que estivesse, não queria ser a primeira a atacar. Ele também não. Sendo sinceros, diriam que não anelavam nem um pouco por este duelo. Enquanto distantes um do outro, sem se ver, criam-se prontos para este momento, mas agora, frente a frente, souberam que estavam muito enganados. Doía-lhes intensamente tão só imaginar que estavam prestes a lutar como inimigos. Arashi, que nunca trepidara na presença de uma ameaça, titubeava hoje não em razão do medo, mas do amor. Ele, então, retinha seus punhos.

Num movimento abrupto, Kin chutou-o no rosto. Ele se guardou atrás do braço. Antes de ser novamente reprimido pelo afeto, socou-a. Ela se esquivou e revidou com golpe igual. O retalhador estapeou o punho dela e desviou-o para baixo. Rápido, cerrou com força a mão e alvejou com um gancho de direita o queixo de Kin. 

A loira escapou retrocedendo um passo. Contra-atacou mais forte ainda. Seu murro alcançou a cara dele em cheio, mas o dele também a atingiu. Ambos tombaram para o lado. Recuperados, trocaram socos tão velozes cujos vultos nem o mais ágil olho humano poderia captar. 

Por um segundo distraído, julgando ter visto na centrada expressão facial sua amada Kin, na inescrutável negridão dos olhos os amáveis luzeiros que um dia arrostou desfiando os mais puros votos de enamorado, baixou a guarda. Levou uma canelada tão poderosa no peito que, arremessado, traspassou a parede e caiu na rua, de costas no chão.

Tonto, quase nocauteado. Via tudo em dobro. Me desculpa, Yue, lamentou, espiando o céu claro. Não posso machucá-la, pretextou, já sentado. Pôs a mão nas costelas. Talvez eu não precise, tendo visto Kin saltar dos destroços e avançar em sua direção, teve uma ideia. Tocou o solo com a mão e transverteu-o numa pista de gelo. Kin riu, abriu as áureas asas e alou alguns metros. 

— Jura, amor? Essa técnica? — Provocou-o, mordaz. — Não, você é muito mais esperto do que isso... tá tramando alguma coisa! 

Sem mais se conter, Kin realizou uma poderosa investida. Sua espada de luz cortou apenas uma parede de gelo. A neve que espirrou enroscou-a, nublou suas vistas. Kin inflou a escaldante energia, repeliu o gelo de si e um denso nevoeiro se alastrou pelo quarteirão, tragou-o de ponta a ponta. Nada havia de visível. Pelo sim, pelo não, distribuiu punhadas e pontapés às tontas. Lograva apenas destruir bonecos de neve e fomentar o nevoeiro. 

Receando algum ardil dele, dilatou sua energia e promoveu uma explosão tão poderosa que fez clara a arena de novo. Brevemente. No entanto, por tempo suficiente para flagrar a investida sorrateira do guerreiro glacial, que reprimiu a lâmina de gelo a centímetros da garganta dela. Instintivamente, ágil a ponto de impressioná-lo, rendeu-o de igual maneira. Seus olhos se encontraram. Nele, Kin viu a criança ao lado de quem, um dia, sobreviveu a perigos inimagináveis. 

As mãos tremeram, ao longo das bochechas escorreram lágrimas. Sentia tristeza e raiva. Raiva dele, raiva de si. Vamos, Kin, exortava-se, tendo de volta a firmeza das mãos. Ele é um inimigo do seu reino, uma voz gritava dentro de sua cabeça, voz que impeliu sua arma tantos centímetros mais próxima do alvo que cortou-o superficialmente. Um longo fio de sangue jorrou sobre a camiseta de Arashi. É o reino que o seu pai e a sua mãe lutaram para proteger, o reino que Hayate confiou a você, lançava remoques contra si, agora muito mais desalentada do que brava. 

Confrangido, Arashi largou a espada que empunhava.

— Eu não vou lutar com você, Kin. — Proclamou desistência. Abertos os braços, continuou: — Mas se quiser matar Yue, terá que me matar primeiro. Se eu vou perdê-la, você vai me perder. A decisão é sua. 

Com muita hesitação, contra uma força incoercível em si e em choro insopitável, também abandonou a espada. A voz em sua cabeça ralhou, alcunhou-a "fraca". Kin tapou as orelhas com as mãos, qual a criança preterida em casa durante uma tormenta repleta de raios e trovões. As quimeras de seus piores sonhos volveram, um borbotão de almas lhe cobrando proteção do exército de Lire ressurgiu e causticou de ira o seu coração. Por impulso, esmurrou o rosto do primeiro ministro. Ele tombou para o lado. 

Havendo ensecado o sangue descido do corte de seu lábio inferior, Arashi encarou-a. Noutra explosão de fúria, Kin agarrou a gola de sua camiseta e trouxe-o para mais perto. Socou-o uma vez mais. Ele, apático, caiu. Sempre concedendo a ela toda a sua atenção. 

— Para! Para de me olhar assim! — Deprecava, consternada. Apontou a mão para ele, ofuscou-a com o fulgor de sua energia dourada e: — Você agora é o meu inimigo! Eu não posso te poupar! Então, pra eu conseguir acabar com isso... para de olhar pra mim! 

Arashi sorriu. O clarão que vinha da mão dela era tão forte que ele se sentia como quem olhava diretamente para o sol. Conformado, decifrou-se:

— Se eu tenho que morrer, quero que a minha última visão seja a do rosto perfeito da única garota que eu amei. 

Literal e figurativamente, a fala dele a desarmou. Kin não saberia como debater e nem como mover mais um dedo para ameaçá-lo. A mão que outrora fazia resplandecer para matá-lo, então fez perder a fulgência para ajudá-lo a se reerguer. Arashi agarrou. De pé num salto, inesperadamente abraçou-a. A loira velou a fronte no peito dele e se outorgou ao choro. Nos intervalos, pedia perdão e dizia que não sabia o que estava fazendo. Ele escusava. Desde o início estava inclinado a crer nisso. Derretida nos braços dele, inofensiva, a emoção dela só redobrava. 

Pausando as carícias nos cabelos da primeira ministra, Arashi osculou sua testa. A voz na cabeça de Kin bradou mais alto do que nunca. Disse-lhe para fugir. Ela, fragilizada, afastou-se subitamente dele e foi embora voando. 


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