Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 19
— Aventura subtérrea




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— Aventura subtérrea

Nada do que Sora disse fazia sentido para Haru e Yue. 

— De jeito nenhum, isso não tá certo! Você se enganou! — Assacou-o Haru, pouco menos transtornado que a garota que, aflita, ouvira tudo atrás das grades. — A Kin nunca abaixaria a cabeça assim pra Lire... Ela jamais entregaria a Yue! E o Arashi jamais permitiria isso, ele prometeu!

A promessa. Fechando os olhos cor de vinho, Yue podia imaginá-lo perfeitamente ali, diante dela, dizendo aquilo. A protegeria mesmo que precisasse morrer por isso. Declinou o rosto, seu semblante compungiu-se. As barras cinza-escuras da cela umedeceram-se com suas lágrimas. Sayuri, de braços entrelaçados, concluiu sua terceira volta pelo pátio em meio a eles. Tinha uma expressão severa. O que devia pensar? Queria estar tão segura quanto o ruivo e sua irmã a respeito do caráter dos primeiros ministros, mas não os conhecia. De seu ponto de vista, já era para estarem a mil léguas de distância dali. 

Sora, que cresceu acostumado a desconfiar de tudo e de todos, espionou Kin e Arashi. Graças às suas habilidades auditivas, depreendeu cada palavra da conversa deles sobre toda a situação envolvendo Yue. Em especial a resolução dos dois. Tal como Sayuri, achava que já estava mais do que na hora de sumirem dali com ela. Estava determinado a ajudá-los. Se havia pensado bem nisso? Nem por um minuto. Seguia seu coração. Algo dentro dele lhe dizia para acompanhá-la e ajudá-la, arriscando a própria vida para mantê-la segura.  

 O dia estava várias horas afastado daquela álgida noite, a qual ostentava por pano de fundo de seu séquito de estrelas um misterioso céu sem nuvens enfeitado pela lua mais exibida do mês. Nas ruas, só os insetos, os ventos e os animais sem donos passeavam. Se queriam fugir, portanto, não havia melhor hora do que aquela. Para onde iriam? Não fazia ideia. Sora só sabia que, com seus dons e os de Haru, ninguém no mundo os localizaria. Porém, para nada serviriam os seus planos se o ruivo e as meninas discordassem. 

— Tá, tudo bem! E o que querem fazer? — Como a uma bola de vôlei, jogou o questionamento no ar, dando-se por vencido. Não via maneira de persuadi-los. Pouco gentil, alfinetou-os: — Os Bellatrixanos vão voltar pra pedir a cabeça dela! Vão esperar isso acontecer?!

Sim, esqueceram-se disso: Lire estava vindo para exigir a morte de Yue. A avalanche de novas ditas soterrou este fato, em suas mentes. Sayuri, em desespero, deitou a face nas mãos bambas, como uma criança chorosa. Sentiu vontade de esmurrar a parede. Ao fim de alguns segundos, inspirou fundo e voltou-se para Haru:

— Ele tem razão. Se esperarmos até de manhã, isso vai ficar mais feio. 

— Tá, mas pra onde a gente vai? — O irmão da primeira-ministra riu, revolto. — Vamos ser caçados por dois dos reinos mais poderosos do mundo!

Sora sugeriu algo:

— Talvez a Kyoko possa nos ajudar. Ela esteve aqui hoje.

— Não! — Yue interviu. Com os dedos calcando as hastes de ferro que a engaiolavam, ela quebrou o silêncio. Achava que já envolvera gente inocente demais naquilo tudo. — Sem chances, não vou transformar a Kyoko no alvo da maluca da Lire... se quiserem que eu saia daqui com vocês, melhor pensarem em outra coisa!

— Acho que eu posso ajudar. — Tão sutil que nem mesmo Yue captou sua entrada, Arashi uniu-se a eles. Sayuri e Sora, no susto, saltaram para perto da pobre prisioneira, tomaram a frente dela. — Vocês são meio distraídos e isso pode pôr tudo a perder. 

Sora sacou lépido a adaga do coldre que levava atado ao tornozelo e empunhou-a.

— Vão, levem ela daqui! — Comandou, determinado.

Yue não gostou nada daquilo.

— Sora! Abaixa essa adaga! — Exprobou-o. 

Arashi sorriu amigavelmente e alteou as mãos em rendição.

— Calma, isso não é necessário. — Esclareceu, com voz apaziguadora. — Dispensei Hana e Inari, disse que ficaria de vigília. 

O Raikyuu não baixou a guarda. 

— Como sabemos que podemos confiar em você?! — Redarguiu.

O guerreiro glacial não meditou muito para arranjar um pretexto. Olhando o tom celícola através da janela à esquerda, calculou as horas pressurosamente e revelou:

— Eu sei que você estava ouvindo minha conversa com a Kin, Sora. Lá da biblioteca que fica ao lado da nossa sala. 

Àquelas palavras, a humilde detenta sorriu pacífica. Por um segundo, não podia negar, duvidou dele. Pela última vez. 

 Inquieta porque Sora insistia em se armar contra um de seus melhores amigos, Yue mesma, das grades atrás das quais se encontrava, arriou a mão dele. A pedido dela, os cinco cavaquearam sobre todo o plano. Os palpites improvisados do primeiro ministro melhoraram as ideias deles. Afinal, puseram-nas em prática. Haru tornou-a intangível como um feixe de luz, alforriando-a do cárcere. Deslumbrou Arashi novamente. O retalhador de elite admitia em pensamentos que nem Kin, com a idade dele, dominava-se tão bem. Ver Yue tão contente suprimiu suas reflexões. 

A jovenzinha abraçou a irmã, Haru, Sora e, numa atitude que fez Arashi ainda mais certo da escolha de ajudá-la, abraçou-o também. Nunca se assemelhou tanto à irmã dele. O guerreiro glacial, tardiamente, retribuiu o mimo. Bem baixinho, ela disse: "obrigado, irmão", o levando a crer que apenas a alegria desse agradecimento o moveria a fazer frente a tudo para manter sua promessa de protegê-la. Deu aos quatro uns instantes para trocar cumprimentos.

— Ok, gente, temos que ir agora. — Chamou-os. — Não conheço ninguém tão difícil de enganar quanto o Inari, se ele resolver falar com a Kin sobre o que eu fiz, nós não vamos conseguir nem sair daqui de dentro. 

Fora da penitenciária, Arashi disse a eles onde buscar refúgio. Poucos sabiam — entre os vivos, apenas Kin e Arashi —, mas debaixo do Reino de Órion, sob os pés dos cidadãos, existia uma série de túneis engenhosamente construídos. Tão abaixo que nem foram afetados pela explosão de dois anos atrás. Eles terminavam numa fortaleza capaz de abrigar centenas de pessoas e foram ideados por Yume, Azin e Hanzuki. Por que foi feito segredo? Porque criaram aquilo ambicionando a fabricação de um local capaz de abrigar toda a multidão que habitava Órion, mas a guerra intergaláctica atrapalhou-os. Não havia segredo, o projeto apenas caiu no olvido. 

Dias antes do teatro armado por Santsuki para estourar a guerra, Yume levou Kin e Arashi até os túneis. Mostrou-lhes tudo. A loira conhecia aquele lugar tão bem quanto ele. Assim sendo, a hipótese de que Arashi estava ajudando Yue a fugir não podia sequer passar pela cabeça dela. A ministra os acharia sem tardar. A fim de encobrir quaisquer suspeitas, ele, pelo máximo de tempo possível, deveria ficar ao lado da loira. Explicou isso aos quatro, todos concordaram. Só o que lhe restou fazer, lamentavelmente, foi dar o endereço e as coordenadas — tampouco podia escoltá-los, afinal, descer ao esconderijo custava um dia inteiro de caminhada. 

 Apesar de estar na cama, Kin também não estava tendo uma noite muito serena. Yume, Hanzuki, Azin e Hayate, um após o outro, deram as caras em seus sonhos. Todos com péssimos dizeres. Profetizaram o fim do Reino de Órion, culparam-na por este suposto evento futuro. Viu Órion em ruínas. Nas chamas. Seus conterrâneos, fugindo dos soldados de Lire, rogavam por seu amparo. Alguns semi vivos estendiam as mãos débeis, caídos. Rubros entre os densos aguaçais de sangue. As últimas palavras deles eram seu nome. "Kin!", trilavam. 

Naomi, Mahina, Haru estavam mortos. Arashi. Apunhalados por Lire e pelo irmão dela. "Você fez isso", ululavam, segundos antes de expirar. O último a lhe falar foi seu irmão. "Salve a gente", suplicou. Então, com o rosto embebido de lágrimas, Kin finalmente despertou. Sentou-se desesperadamente, de olhos arregalados, lábios trementes. Caindo em si, sua face readquiriu a cor que debandou dela. As mãos tremebundas, Kin pôs no copo de vidro cheio d'água e levou-o à boca. Derramou mais na cama do que bebeu. 

Tomou café, tomou banho e, mecanicamente, perfez todos os ritos da higiene matinal. Vestiu a camiseta branca com o logo de Áries e a calça comprida preta, não se maquiou. Reteve os áureos cabelos encaracolados com um prendedor de plástico, branco. Atirou a bolsa no ombro e se foi. Nada preencheu sua mente ao longo do trajeto. Jamais se sentiu tão alheia a si mesma, como uma alma divisando de cima o próprio corpo. O salão de entrada de seu palácio de trabalho estava cheio de repórteres, jornalistas e manifestantes. Uns pediam a guerra, outros, a paz. A segurança lutava para controlá-los. Totalmente aérea, Kin andou apressada na direção da escadaria.

Lá, interpelou Gray e Kande: 

— Lire e a comitiva dela já chegaram?

Os dois retalhadores de elite trocaram olhares apreensivos. Sabiam o que aquela reunião significava.

— Já, os ministros também. — Disse-lhe Gray. 

— Só estão esperando você e o Arashi. — Acrescentou Kande. 

Contrariamente ao que fazia sempre, Kin não agradeceu. Deu-lhes as costas e subiu. A dupla conhecia-a tempo o bastante para ser capaz de dizer, só de vê-la, que ela não estava bem. Aquele silêncio não lhe pertencia nem nas horas mais árduas. O destino de sua terra de nascença quedava sobre seus ombros, valia relevar.

 Entre os numerosos poderes daquele congresso, constava o de parir a maior guerra internacional da história. A reluzente personalidade de Kin teria sido eclipsada por tão grande responsabilidade? Kande e Gray não refletiram muito sobre isso, também foram assaltados pela preocupação. 

 Duas horas de assembleia passaram voando e Arashi não apareceu. Com Lire falando alto, estapeando a mesa e apontando o dedo para a sua cara, Kin nem reparou na ausência dele. Sua própria mente não atinava com a inabalável placidez que fixou residência em seu coração. Completadas duas horas e meia, o guerreiro glacial abriu a porta com todo o cuidado e entrou. Sem fazer barulho. Vestia-se, assim como Kin, igual a um dos retalhadores de elite — com o adendo de uma jaqueta sobre a camiseta branca.

Se ainda restava nele alguma paciência naquele dia, ela se esvaiu feito fumaça no exato segundo que seus olhos azuis lhe mostraram Lire com o dedo na cara de sua melhor amiga. Kin, submissa, fazia silêncio. Literalmente de cabeça abaixada. Uma cena que Arashi jamais imaginou que testemunharia.  

 — Tá bom, já chega! Primeiro, você vai abaixar esse dedo! — Explodiu. Caminhando a passos graves na direção das duas, bradava furioso para Lire: — Depois, vai se lembrar de que está na nossa casa! O que foi que deu em você?! Ficou louca de vez?!

Os ministros mais velhos, aturdidos, puseram-se de pé. Os retalhadores presentes ficaram em guarda. Embora sorrindo, Lire foi surpreendida pela velocidade de locomoção do ariano. Ninguém sabia o que teria acontecido se Keiko não estivesse ali e não se interpusesse entre os dois. Conteve-o pondo as mãos em seus ombros.

— Arashi, se acalma! — Falou-lhe, pedindo algo que raras pessoas podiam dizer que já precisaram lhe pedir. Os olhos cor de mel fixos nos dele, o rosto cor de chocolate tenso, prosseguiu: — Me desculpe por não ter pedido isso pra Lire antes, mas agora ela também vai se controlar. 

Gentilmente se desvencilhou das mãos de Keiko. Frio novamente, sentou-se na cadeira vaga ao lado de Kin. A loira o mirava. Pensava curiosa na mudança de papéis que ocorreu ali, uma cena como aquela era típica dela. A adversária deles, já sentada em seu lugar do outro lado da mesa, falhava em disfarçar o sorriso. O sarcasmo nadava todo o seu cenho. As três horas seguintes de concílio transcorreram sem interrupções, no entanto toda vez que deixava a atenção em Lire ou no irmão dela, Arashi só sustinha a ira amassando sorrateiramente o ferro do pé da mesa ante a qual se sentou.

O burburinho que precedeu o fim soou como o chacoalhar das folhas das árvores sob o sopro dos ventos. Um silêncio reverente tomou um assento assim que Kin, em lágrimas, pediu a palavra. Mesmo os mais velhos lhe dirigiram a atenção.

Seu companheiro, mantendo o personagem, detinha baixos a cabeça e o olhar. Algo maior o intrigava: a cena que presenciou quando entrou insuflou nele a certeza de que sua namorada não estava normal. Encarou Lire. Eu sei que você fez alguma coisa, a condenou, silente. Se as coisas eram como ele conjecturava, o Reino de Órion estava ameaçado de qualquer jeito. Fazer o que Lire queria só seria bom para ela. 

— Pra ninguém isso é tão difícil quanto pra nós dois. Yue é uma amiga muito querida nossa, jamais imaginaríamos isso. — Discursava. A voz trépida, a tristeza, os gestos, em tudo isso Arashi reconhecia sua Kin, mas nas palavras e na sujeição via uma garota completamente diferente. Tendo enxugado as bochechas esfregando as mãos nelas, deu fim à declaração: — Mas se trata do nosso reino, nós não estamos em condições de travar uma guerra e as imagens não mentem.

Para o espanto geral, a retalhadora se prostrou. Lire esbugalhou os olhos e a boca. "Inacreditável" assim todos, em pensamentos, adjetivavam o que viam. Foi então que Keiko deu-se conta de que havia algo errado. 

— Kin! — Seu parceiro a chamou, querendo que ela se recompusesse. Incrédulo. 

Ignorando tudo e todos, a loira foi avante em suas considerações:

— Em nome de todo o Reino de Órion, quero pedir perdão pelo que houve e me comprometer com o que quer que seja necessário pra reparar isso. Eu não posso nem imaginar como se sentiram por causa dessa tragédia, mas entendo que estejam furiosos. 

Arashi não disse mais uma palavra. Fez o certo ajudando Yue a fugir, soube. Temia apenas ser tarde demais. 


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