Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 17
— A inocência no banco dos réus




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— A inocência no banco dos réus

Yue estava atrás das grades. A razão? Nem ela sabia. Não viu advogados, não viu nenhum de seus amigos. As únicas pessoas que viu naquela ensolarada manhã foi a dupla de retalhadores de elite — Inari e Hana — que a levou em cana. Sequer escutou uma acusação formal. Eles a abordaram na rua quando ainda nem havia amanhecido, enquanto ela retornava de um trabalho fora do reino, e a levaram. Disseram apenas que era para a segurança dela. Porque já os conhecia, não resistiu. 

Desde que foi parar ali, não ouviu nem viu algo que se parecesse com um ser humano ou com um ser de essência. Nem que soasse como um ou outro. Sem janelas e sem relógio por perto, não tinha como saber exatamente que horas eram, mas segundo seus cálculos devia ser meio-dia. Ou perto disso. Estava nervosa, com fome, com sede e, graças à ausência de ventiladores, e também à camisa rosa escura de mangas longas que vestiu, com muito calor. Vagava de uma ponta à outra da escura e bem pintada cela de paredes escuras de concreto entre as quais foi trancafiada. 

 O que diabos estava acontecendo? Ela se questionava. Por que fizeram aquilo com ela? Os retalhadores de elite estavam sob ordens diretas dos primeiros ministros — Kin e Arashi. Jamais fariam algo assim sem o aval dos dois. Conhecia-os. Eram guerreiros disciplinados, obedientes e íntegros. Saber disso só aumentava sua aflição e confusão. Por que Kin e Arashi mandariam prendê-la? Por que fariam isso e passariam tantas horas sem vir falar com ela, sem lhe dar uma justificativa? Aquilo não podia ser bom. Seu pressentimento foi de ruim a péssimo. 

Estava com eles, na noite anterior. Com Kin, Arashi, Haru, Naomi, Kyoko e Sora. Mahina, o bebê dela e o esposo dela estavam lá. Todos estavam conversando, rindo e brincando. Foi embora da casa de Kin ao mesmo tempo que Kyoko e Arashi, avisou que sairia cedo porque, antes do amanhecer, deveria deixar o reino em missão. Despediram-se normalmente. O que pode ter mudado entre sua saída do reino e seu retorno? Nada que pensava justificava sua prisão. Só queria saber de uma vez por todas o que é que estava acontecendo. 

Mais uma hora foi-se embora e ninguém apareceu para lhe dar uma só pista da situação. Uma novidade do mundo lá fora, sobre o que quer que fosse. Sentou-se sobre o pouco confortável banco de sua nova moradia. Começou a pensar em Haru. Será que ele sabia o que aconteceu? Não. Decerto estava fora do reino. Impulsivo do jeito que era, ele, com toda a certeza, já estaria ali por ela. E Naomi? Não saberia dizer. A francesa vinha andando tão misteriosa nos últimos seis meses. Mudou-se da casa de Kin, não aparecia com a mesma frequência. 

Ouviu vozes no corredor que antecedia seu novo e abafado quarto. Era Haru. Ele estava falando alto, quase gritando, e parecia irritado. Sim, tratava-se dele. Sorriu. Assim como previu, o ruivinho veio logo que soube do que aconteceu. Já um pouco mais contente, Yue saltou do banco de concreto e correu até as barras de aço, entre as quais pôs o rosto. Haru não vinha sozinho, mas acompanhado. Estava com Sora. Atrás deles, vinha Hana. A guerreira de elite os acompanhou para contê-los — especialmente a Haru. 

— Mais devagar aí, ruivo! — O repreendia. — Não faça nenhuma besteira!

— Deixe-os. — Com seu jeito seco e objetivo, Inari falou a ela. — Vamos voltar para a portaria. 

A sós com ela, Haru a abraçou do jeito que pôde. Mais afastado, Sora se limitou a olhá-la. Um olhar indecifrável, envolto de uma expressão facial e corporal igualmente enigmáticas. Braços cruzados, ficou de lado para a retalhadora. Não exatamente indiferente, nem desconfiado, mas como quem a examinava. Conhecia-a. Sabia que ela jamais cometeria os crimes que a levaram para aquele lugar. O que tentava ver nela, entretanto, era se ela imaginava as intrigas que seriam causadas pelas acusações que pesavam sobre ela. 

— O que foi que aconteceu, Haru? Sora? — Indagou-os, nervosa. — Por que eu tô aqui?!

Os dois trocaram olhares, completamente atônitos. Mais confusos do que jamais estiveram. Por fim, Sora chegou mais perto das grades. 

— Não te disseram nada? — Replicou. 

— Não! Só o que me disseram é que isso é pra minha proteção! — Disse a menina. — Vocês sabem de alguma coisa...?

Haru respirou fundo. Teve uma dificuldade imensa para chegar ali. Não só pela distância, mas também pelas multidões que cercavam o prédio e que, por causa da ligação dele com ela, quiseram agredi-lo. 

— Todo o conselho de Bellatrix foi assassinado há poucos dias. Acham que foi você. — Revelou, finalmente. Para espanto dela. Sua reação imediata foi a mudez.

 Um pouco longe dali, o conselho de Órion se reunia com Lire, Michio e três guardas deles. Lire falava alto, quase gritando, furiosa. Batia repetidamente na mesa com a mão. Seu irmão tentava acalmá-la. Ou fingia que tentava. Durante as explosões de raiva dela, quando ela gritava e chegava perto de partir a mesa ao meio, Kin era quem precisava ser acalmada. Com Arashi e Keiko sempre por perto, isso não era problema. Ao fim de duas horas ouvindo as exigências e presenciando o teatrinho dela, o guerreiro glacial era quem estava precisando que alguém lhe acalmasse. 

Tinha absoluta certeza de que aquilo tudo era uma armação da megera. Tanto ele quanto Kin sabiam disso. Por causa dela, foi forçado a prender Yue, uma de suas melhores amigas e uma das melhores pessoas que conheceu. A mais triste e, sem dúvida alguma, injusta sentença que já permitiu em Órion, sob seu governo. Estava mal humorado e com dor de cabeça. Ao contrário de Kin, não discutiu em momento algum, não objetou, só ouviu tudo e apartou as brigas. Isso não vai acabar bem, predizia mentalmente. 

Evidente que não iria acabar bem, Lire estava pedindo a execução de Yue — e se quisesse mesmo conseguir isso, ela seria forçada a passar por cima do cadáver dele. Nada seria capaz de convencê-lo a dar pacificamente o que Lire pedia. 

 — Vamos fazer um exercício de imaginação aqui, Lire... — Após alguns instantes de silêncio, Kin tomou a frente da situação. Numa camiseta branca, calça comprida e botas, com pouca maquiagem, sem nenhum adorno, deixava visível que saiu de casa às pressas. — E se nós disséssemos "não"? O que você faria? 

Lire riu. Caminhou alguns passos na direção dela, pôs a mão na cintura sobre o sobretudo dourado, olhou-a nos olhos e anunciou:

— Então meu reino e eu vamos marchar sobre o que restou do Reino de Órion. Vamos varrer vocês do mapa. 

A tensão que tomou a sala foi tamanha que quase podia ser sentida fisicamente, como uma pesada massa de ar. Até então calado, Arashi andou com calma para perto das duas e colocou-se ao lado de Kin, literal e figurativamente. Como um físico que terminava o cálculo mais inovador e difícil que já fez na vida, o retalhador disparou:

— Lire, você já feriu pessoas que são importantes pra mim, já me feriu e eu deixei passar. Pelo bem do Reino de Órion, prezando nossas boas relações com o Reino de Bellatrix, a terra de nascimento do senhor Hanzuki, não te acusei e nem quis vingança. Mas dessa vez, não. Se é guerra o que você quer, muito bem. Guerrearemos. Mas é melhor pensar muito bem antes de tomar essa decisão. 

 Michio se juntou à irmã:

— Vamos dar um dia pra vocês pensarem no que estão fazendo. No final desse dia, enviaremos um embaixador pra cá e queremos que nos respondam através dele.

A raiva no coração de Arashi ganhou mais força, como um incêndio numa floresta. Achava mais do que insultuosa a simples sugestão de que ele cogitaria entregar uma amiga. Algo completamente fora de cogitação. Mesmo estando ao lado dele desde que eram crianças, poucas foram as vezes que Kin viu-o com aspecto tão sombrio. Mais raras vezes ainda o viu, como agora, a ponto de entregar-se à ira. Tão pouco isso aconteceu, que as ocasiões nunca mais saíram de sua memória. Ela o segurou pelo braço e conseguiu que ele voltasse a si. Seus papéis se inverteram. Desavisadamente, Kin viu algo estranho nos olhos dele. Algo que ela sabia que não deveria estar lá. 

As pupilas de seus olhos azuis claros eram como flocos de neve. O que aquilo significava? Intimidada, soltou o braço dele e, boquiaberta, se afastou três rápidos passos. Imediatamente recuperou a lembrança. Sabia o que significava. Na primeira e última vez que viu aquilo, estava com Santsuki, Kenichi e Sora. O inimigo que enfrentaram tinha aqueles olhos. Tempos depois, Santsuki voltou e avisou que a decisão que ela tomou naquele dia ainda iria trazer consequências. E não é que ele tinha razão? Assaltada pelo nervosismo, abandonou a sala às pressas, antes mesmo de Lire e Michio. Correu desesperada na direção da sacada. Precisava tomar um ar. 

Estava à beira de um ataque de ansiedade. O que eu fiz?, brigava consigo mesma, com os olhos transbordando de lágrimas. Como pôde ter sido estúpida a ponto de confiar em Santsuki? Fez-se de novo a pergunta que mais se fazia. Andou desajeitada até a sacada mais próxima, tropeçando nos próprios pés. Como o esperado, Arashi veio logo após. Não imaginava que ela escondia um terrível segredo dele. Algo cujos resultados eram imprevisíveis até para ela. Se tivesse uma ideia do que ela fez, ele não a olharia com toda aquela compreensão e carinho. Passaria a vê-la como um terrível inimigo. 

Kin se debruçou sobre o corrimão de madeira maciça da varanda. Chorava e, fitando o céu azul daquela manhã, tentava respirar. Sentiu o calor dos braços dele em torno de seus ombros. Procurou forças em si para dizer toda a verdade, para contar o que fez. Ele merecia saber. Não as achou. Tornava-se totalmente indefesa quando estava entre os braços dele, todos os seus escudos e toda a sua valentia se desfaziam. Chorou com mais intensidade, virou-se, abraçou-o sem dizer nada e deitou o rosto no peito dele. Todo o medo se esvaiu. Não se sentia tão segura nem quando lutava com todo o seu poder. 

— Vou lá ver a Yue. — Disse-lhe ele. — Alguém tem que explicar pra ela o que está acontecendo. O conselho não vai concordar com a nossa decisão, vão querer entregá-la... fica aqui e não deixe que eles façam algo na nossa ausência, tá? 

 A primeira ministra nada disse. Olhou-o saltar da sacada e voar rumo à delegacia. Algo no corredor ali dentro atraiu sua atenção. Lire, Michio e os guarda-costas deles deixavam a sala onde se reuniram com Kin, Keiko e os conselheiros, falando com tanta descontração que o cinismo deles fez o sangue de Kin ferver nas veias. Kin enxugou os olhos com o braço, andou irritada na direção deles e criou uma de suas poderosas espadas de luz dourada para a mão direita. Agora eu acabo com você, pensou, feliz por não ter Keiko e nem Arashi por perto para detê-la.

Estava a meio segundo de atacá-los, determinada a matar ou morrer, mas uma calma repentina e colossal a invadiu. Ela largou a espada no chão, o som do choque da lâmina com o solo chamou o olhar de seus alvos. 

O que foi isso? — Se questionou o porquê da mudança abrupta de sentimentos que experimentou. Irritada de novo, não tanto quanto antes, acusou: — Lire, eu nunca imaginei que você fosse tão baixa! Se você pensa que vai conseguir o que quer, tá muito enganada! Dessa vez, não vamos te perdoar!

— Queridinha, não viemos aqui atrás de perdão, viemos para exigir perdão! E o seu amado Arashi meio que acabou de declarar guerra ao Reino de Bellatrix... Demos uma chance a vocês, mas cuspiram na nossa cara. — Sem esconder a felicidade que estava sentindo, andou devagar até Kin, que permanecia incompreensivelmente tranquila. Lado a lado com a loira, sussurrou: — Vocês vão ser completamente destruídos... Que bom que não aceitaram a nossa oferta, porque vai ser um prazer fazer isso! 

Algo estava se alterando em Kin. Sua personalidade, seu posicionamento de há pouco, suas emoções. Jamais seria capaz de exprimir com palavras o que estava acontecendo, menos ainda o que poderia estar causando aquilo — tinha certeza, contudo, que não vinha dela a força que estava provocando aquelas mudanças. E que não era mais a mesma. 


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