Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 15
— A tarefa misteriosa




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— A tarefa misteriosa

Yue aprendeu a costurar aos nove anos. Uma empregada da casa do pai dela ensinou quando, certa vez, surpreendeu a pequenina inclinada no batente da porta do quarto dentro do qual trabalhava, acompanhando tímida e embasbacada o processo de restauração de um vestido, tão acanhada que mais parecia uma coelhinha assustada do que uma lutadora sendo treinada para defender o lendário Reino de Órion.

E não precisou de mais de dois meses para dominar a arte, se revelou um talento que sua mestra, já levada em anos, jurou jamais ter visto. Aquele foi o dia em que Yue soube que podia ser mais do que uma retalhadora. Que suas mãos não serviam só para retalhar, mas também para remendar. 

Por isso não fazia objeções quando seus amigos lhe pediam que salvasse uma peça de roupa danificada em combate. Sempre devolvia-as a eles do jeitinho que elas estavam antes do confronto e não exigia um centavo. Fazia porque gostava, e coser para eles quando não estava cosendo para vender era sua escapulida para essa atividade.

Hoje, como de costume, foi cedo para a sua loja, e por volta do meio-dia Haru entrou lá, recém-chegado de um trabalho fora de Órion. Ele estava sentado num banquinho velho de aço há cinco minutos, com o braço esticado, pois a garota juntava com fio vermelho as linhas rubras da manga de sua camiseta de capuz. 

Lá fora, não ventava muito, o frio que soprava, no entanto, era um companheiro hostil de todos os pedestres. O sol acenava, muito embora se acovardasse e se recusasse a sair completamente de trás das nuvens. A maior parte da população seguia seu exemplo, junto à menor estava Kyoko, que, do colégio, ia embevecida para a loja de sua chefe, com uma novidade que certamente a contagiaria com sua felicidade. Um poeta diria que o astro do dia foi contido por Febo, que receou competir com a beleza da jovem líder de torcida e optou por venerá-la como um admirador secreto. 

— Tem que tomar mais cuidado, Haru. — Yue insistia, encerrado o relato de seu amigo sobre a aventura em que se meteu no dia. — E você sabe que se tivesse saído machucado, sua irmã não te deixaria sair do reino comigo, não sabe?

— É, foi mal, eu me deixei levar. — Se desculpou, colocando-se de pé, pois ela acabou de consertar sua manga. Girou o braço para testar o trabalho e, satisfeito, agradeceu agitando carinhosamente com a mão os curtos cabelos lisos da estilista. — Quem vão mandar ir com a gente? O Arashi te disse alguma coisa? Kin não quis falar nada. 

— É porque ela não sabe. — Yue explicou, arrumando os cabelos com as mãos. Subiu para o ombro a segunda alça do vestido violeta claro que escolheu usar naquela manhã, a saia era xadrez, preta e branca. Suas botas eram de cor vinho escuras, tanto que quem olhasse rápido diria que elas eram pretas. Os cabelos deixou soltos. Foi para trás do balcão nos fundos da loja, pegou um tablete de folhas de dentro dele e, enquanto anotava algo, dizia: — O Arashi vai lidar com essas funções mais burocráticas por um tempo pra dar um descanso pra Kin, os conselheiros ainda tão no pé dela por causa da quase morte do ministro na semana passada. Ele me contou que quem vai com a gente é um cara chamado Seizako, um retalhador que não bate muito bem das ideias. 

Arashi contou muito mais e Yue pretendia compartilhar tudo com Haru, mas Kyoko chegou, radiante. Roubou toda a atenção dos dois. 

— Tenho boas notícias, chefe! — Anunciou, de lá da porta. Correndo até onde eles estavam, abriu um sorrisão e falou: — A diretoria da escola aceitou o nosso design, nossa roupa maravilhosa vai ser o uniforme da próxima temporada na equipe de torcida!

Os olhos da retalhadora estilista marejaram-se com lágrimas de emoção, todo o calor que não fazia lá fora empanturrou seu peito. Para qualquer um podia soar simples, para elas, porém, significava o início da realização de um sonho.

A maior meta que as duas estabeleceram para o ano se cumpria. As duas deram as mãos e pularam de alegria, cantando, gritando tão alto que Haru quase sentiu estourar os tímpanos. Mas ficou feliz e não podia negar, nem tentava esconder. Não via Yue contente daquele jeito desde a manhã do ano novo, quando inauguraram a loja. 

Kyoko nunca pareceu triste desde que a conheceu, então não via diferença tão grande nela, agora. Um rubor tomou suas faces quando reparou no quanto ela era bonita. Desviou os olhos para um canto o quanto antes. Só por Naomi sentiu algo semelhante, mas a francesa tinha seis anos a mais, ele sabia que ela o via como uma criança.

Pensar nessa verdade entristecia-o. Não tanto pela paixonite não correspondida quanto por saber como era visto por todos. Como um retalhador fraco que precisava de cuidados. No fundo, o que mais queria era ser respeitado como Arashi e Sora. 

Afastando esses sentimentos, que oprimiam seu peito, fingiu checar as horas no relógio da parede e chamou a amiga. 

— Yue, posso ir fechando a loja? A reunião da Kin e do Arashi com os conselheiros termina em quinze minutos. — Pediu. 

A dona do recinto entrou em choque quando viu as horas.

— Ai, é verdade! Pode, sim, Haru! — Permitiu. — Kyoko, me ajuda a guardar as roupas e os manequins e continua contando sobre a proposta deles!

O conselho não era tão rude com Arashi quanto era com Kin, mas isso porque, diferente dela, ele sabia como lidar com os velhos. Acompanhou Yume em assembleias com aquela gente por dezenas de vezes, conhecia cada rosto ali. Sabia exatamente o que dizer para ser levado a sério. Além disso, como todos costumavam dizer, possuía nervos de aço.

O belo ventilador de teto foi desligado devido às baixas temperaturas do local. Nas paredes, nenhuma lâmpada acesa, o fulgor do céu bastava para alvejar a extensa sala de pisos brancos e a mesa dourada de madeira. Quando havia silêncio, este era tão profundo que os ponteiros do relógio se movendo se faziam escutar. 

Mesmo nas horas que os conselheiros passavam dos limites e faziam ataques pessoais, o guerreiro glacial não perdia a compostura. Criticaram suas roupas, censuraram a informalidade de sua jaqueta preta de capuz cinza, até de seu estilo desleixado de penteado falaram. Sua expressão corporal e facial, no meio de tudo isso, conservavam a rigidez, ele exibia uma frieza que fazia cair mesmo o queixo de Kin, que foi sua parceira nas batalhas por anos e o conhecia como ninguém. 

Logo na cadeira ao lado da dele, a loira o observava se exprimindo e o estudava. Arashi falava de pé, olhava cada um nos olhos, discursava com uma firmeza que Kin não enxergou nem em Hayate. Curto e conciso. Com ele no comando, o clima indubitavelmente ficava diferente de quando as conversas aconteciam com a regência dela. Queria saber se o segredo estava na entonação, ou se nos gestos, e com esse intuito se manteve calada — com esse e com o de não perder a paciência de novo.

De repente, fizeram a Arashi o desafio mais insolente desde que o colóquio teve início. Kin sorriu com discrição e redobrou a atenção que devotava a ele. 

— Sim, vamos levar adiante o projeto da fundação. — Começou, cordialmente. Tão sereno quanto, foi adiante: — Quanto ao mais, por favor não me leve a mal, conselheiro, mas é assunto do primeiro ministro. No caso aqui, dos primeiros ministros... Eu sei que o senhor, como todos aqui, está ciente disso, mas, já que fez esse questionamento, achei necessário repetir. Mas, quem não está contente pode propor como pauta para discussão esse tipo de decisão, só que, para ser justo, eu teria que propor que todo o conselho passe a arregaçar as mangas para lutar ao nosso lado quando uma ameaça vier contra Órion, o que eu imagino que não seja do interesse de ninguém aqui. Estou certo? — Indagou. Aterrissou os olhos em cada face que circundava a mesa e, prevendo que não teria nada além do silêncio, disse: — Certo. Isso era tudo que tínhamos para discutir por hoje, tenham todos um bom dia.

 Pouco a pouco os conselheiros foram abandonando a sala, e em não mais do que cinco minutos os dois primeiros ministros ficaram a sós. Arashi guardava alguns papéis dentro de uma pasta marrom de couro. Fingia não ver que Kin o encarava fixamente, sem mover um músculo. Passados dois minutos, um meio sorriso agitou as bochechas dela. Entendeu que o que o viu fazer ali não foi calculado. Não envolveu treinamento, tampouco técnica retórica. Ele agiu naturalmente, calejado por anos de convivência com gente daquela estirpe. 

É verdade que Kin liderou a equipe de elite dos retalhadores de Órion, que tinha certa experiência com a área administrativa da função, porém, encabeçar a ordem especial de proteção do reino nunca demandou metade da força de espírito que ela estava precisando demonstrar ali, para aquelas pessoas.

Diria até que, para comandar os retalhadores de elite, não havia personalidade melhor do que a sua. Uma guerreira explosiva e confiante com habilidades a altura dessas qualidades intimidava qualquer potencial agressor. Todavia, em quem ocupava o cargo de primeiro ministro não podia faltar temperança. E havia quem dissesse que tal ingrediente era até mais importante do que o poder. 

Com a ironia de quem agora se dirigia a um amigo, Kin bateu palmas. A princípio, ele não entendeu — nova evidência da naturalidade com a qual ele encarava o que fez. Quando sacou o motivo dos aplausos, sorriu encabulado. 

— Não! Eu consegui deixar tímido o cara que acabou de calar todo o conselho do Reino de Órion? — De pé, ela fingia pasmo. 

Sem a intenção de se gabar, querendo que Kin soubesse que o que ela viu não foi nada demais, ele deitou a maleta na mesa e contou:

— Eu tinha nove ou oito anos quando os guardiões dos outros planetas estiveram aqui, não me lembro bem agora. Eles começaram a acusar sua mãe, disseram que ela era a culpada pela guerra por não ter matado Santsuki... chamei todos de crianças. 

Enfim uma história sobre ele que Kin ouvia pela primeira vez.

— Uau! — Exclamou, novamente falseando assombro. 

Gray bateu na porta e interrompeu a conversa deles. Do lado de fora, anunciou: 

— Com licença, senhor e senhora Suzume, mas os pirralhos e o bêbado do Seizako já estão aqui. 

Em seguida, os primeiros ministros ouviram Yue e Haru se insurgirem contra Gray por chamá-los de pirralhos e Seizako murmurar que "adoraria estar bêbado". Explodiram em gargalhada. Quando recuperaram o controle sobre si, fizeram silêncio e trocaram olhares.

Nunca se divertiram tanto no trabalho, a presença dele ali tornou Kin inatingível para as provocações dos conselheiros, mas passariam os dois dias seguintes separados. Arashi jurou cuidar de tudo até a história da briga de Kin com Isaho esfriar. Sentia-se péssima por empurrar tudo aquilo para ele, entretanto, era o melhor a ser feito.

Havia algo mais. Kin sentia uma profunda dor na alma quando lembrava que estava escondendo algo da pessoa em quem mais confiava: o verdadeiro motivo dele ter recuperado os poderes. Os dois dias de férias lhe serviriam para reflexão.

— Quer que eu vá falar com eles, guerreiro glacial? — Sugeriu, apontando a porta atrás de si com o polegar.

Arashi balançou a cabeça como quem pensou seriamente na proposta e estava tentado a dizer "não". 

— Não sei se é uma boa ideia, você e Seizako não se dão muito bem. 

Kin deu de ombros.

— Que nada, tô muito mais tolerante depois do que aconteceu. 

Seizako era o que Kin mais detestava: o funcionário resmungão. O cara que fazia tudo reclamando e que não se dava bem com nenhum colega de serviço. Lutador habilidoso, poderoso, mas um chato. Tudo na aparência dele antecipava esse seu caráter insuportável: os olhos caídos como o de quem vivia com sono, o bocejo constante, o lento caminhar, a camisa polo escura mal passada, a calça de cor desbotada, os tênis desamarrados. Sua pele, tão clara quanto a de Kin, tornou-se visivelmente acinzentada, todos comentavam que isso se deu por causa de seu temperamento azedo. E muito embora fosse apenas seis anos mais velho do que a primeira ministra, ele já contava com alguns fios brancos de cabelo em meio aos numerosos fios castanhos escuros lisos e arrepiados. 

 Acabou que o guerreiro glacial tinha razão: não era boa ideia Kin ir falar com Seizako sem sua companhia, pois em cinco minutos de conversa ela partiu para cima dele no meio do pátio, na frente da sala de reunião. A sorte foi que Arashi estava ali para detê-la e se colocou entre os dois. 

— Repete o que você falou! Repete! — Ela desafiava, agora afastada dali por Kande, que a arrastava pela gola da camiseta. 

Arashi suspirou de cansaço e deu com a mão na testa.

— "Muito mais tolerante", sei. — Se queixou, repetindo o que ela lhe disse dentro da sala para persuadi-lo a permiti-la ir até Seizako. Já apartada a briga por Kande e Gray, que a levaram embora, Arashi se voltou para o trio que estava mandando para fora do reino. — Para resumir, é isso que a Kin falou antes de... ser interrompida e começar a gritar. Nossa embaixada em Aldebaran foi cercada por alguns terroristas e precisamos que vocês prestem socorro. 

Seizako revirou os olhos, cruzou os braços e preguiçosamente disse:

— Legal, depois de fingir que me importo com o Reino de Órion, tenho que fingir que me importo com Alde... Aldebaran. 

— Não precisa fingir que se importa, apenas salve seus compatriotas. — Arashi replicou.

— Eu tenho escolha? Quero dizer, meu salário vai cair na conta no final do mês se eu não for? 

— Não. — Respondeu o primeiro ministro.

— Vamos salvar a embaixada de Órion, meninos. — Deu as costas e puxou o bonde, em resposta. 

Mas Arashi precisava pedir algo a Yue, antes. 

— Vão na frente, eu já alcanço vocês. — Ela acenou e gritou para os dois. Em seguida, voltou a atenção para o primeiro ministro. — E aí, implicaram contigo por causa das roupas?

— Sabia que tinha feito de propósito. — Riu e replicou.

— Foi mal, Kin e Naomi me obrigaram. — Pretextou, entre risadas. Um sorriso tão infantil e inocente que impedia qualquer um de ficar bravo com ela. — E então, o que é? Não quer mais que eu te dê dicas de moda?

— Preciso que você fique de olho no Seizako, tudo bem? — Inquiriu-a, sério. 

— Claro, mas por quê? 

— Porque ele é meio... suicida, digamos assim. — Explicou-se. — Vai tentar morrer junto com o inimigo algumas vezes, é por isso que o Hayate evitava mandar ele pra fora do reino. 

— E por que você tá fazendo isso agora? — Questionou, curiosa e confusa.

— Só confia em mim. Se a situação fugir do controle, pode me ligar. — Assegurou. A garota concordou. 

Desceu as escadas tentando desvendar as razões daquilo. Arashi não costumava ser enigmático assim quando pedia um retalhador para fazer um trabalho. 


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