Blindwood escrita por Taigo Leão


Capítulo 14
O Escrivão


Notas iniciais do capítulo

Demorei um pouco pra trazer esse mas aqui está, espero que gostem!!!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805763/chapter/14

Quando Elaine saiu do quarto e se viu sozinha no corredor, se sentiu mais confiante do que estava se sentindo a poucos minutos. Mesmo estando sozinha, ela se sentia, de certa forma, segura e determinada a seguir em frente. Nem o fato de que, novamente, Luque a abandonou antes de aparecer uma pessoa nova no recinto, lhe atormentava os pensamentos. Ela não sentia raiva ou remorso sobre ele. Agora ela tinha um novo objetivo: ela iria até a igreja.
Elaine pensou que seria melhor ir para lá nessa dimensão, já que na outra poderiam haver mais pessoas naquele local, mas ainda assim temia que mais daqueles seres estranhos, os monstros, aparecessem na sua frente. Tudo que ela tinha agora era seu celular, seu diário, o canivete sujo e o espelho de bolso de Maria.
Ela foi até o elevador de serviço e ele realmente funcionou, a levando para o térreo, em uma entrada que ela não sabia que havia ali, atrás da porta que ficava atrás ao balcão.
Elaine aproveitou a paz daquele lugar para fazer anotações em seu diário. Após, ela respirou fundo e abriu a porta para sair após se preparar para aquele ambiente desconhecido e inseguro no qual já esteve antes.
O dia já estava clareando; estava amanhecendo. A neblina ainda era muito presente no local, tornando impossível identificar todo o ambiente a sua volta. Elaine começou a caminhar imaginando o caminho que deveria fazer se baseando no pouco que sabia de Blindwood até aqui. Ela não escutou o chiado ou aquele ser feito de brasas, o que a tranquilizou um pouco. Ela não estava correndo, mas dava passos apressados.
A igreja era um grande prédio escuro com o telhado pontudo e duas torres. Não haviam muitos detalhes por fora além do vitral comum de qualquer igreja, mas aquele prédio era muito escuro e Elaine reconheceu ser uma arquitetura gótica. Elaine subiu os degraus que haviam ali mas não conseguiu entrar na igreja, já que sua grande porta principal e as duas nas laterais estavam trancadas.
Elaine olhou para trás e viu a sombra de algo caminhando, era algo familiar. Era aquilo que foi em direção quando ela estava no elevador do 4° andar do Chariotte. Aquilo ainda estava atrás dela, mas a neblina atrapalhava a sua visão, dificultando seu trabalho.
Sem saber o que fazer, Elaine caminhou ao redor da igreja e a sua direita avistou o que parecia ser um cômodo único, bem próximo a igreja e de um tom escuro como ela. Sua porta estava entreaberta, então Elaine entrou, fechando a mesma após e torcendo para aquele ser não entrar ali.
O cômodo, que era realmente pequeno, possuía uma grande mesa de madeira com uma única cadeira. Havia também uma pequena estante com poucos livros e dois arquivos de ferro, cada um com quatro grandes gavetas que estavam trancadas, exceto a terceira gaveta do segundo arquivo, que estava com sua tranca arrebentada.
Havia um tapete verde escuro no chão e um pequeno quadro pendurado na parede, ao lado dos arquivos.
O quadro era de um homem em pé na beira de um abismo, isso era tudo.
Elaine abriu a gaveta arrebentada do arquivo mas não havia nada dentro, apenas um fichário borrachudo completamente escuro e com a maior parte de suas páginas arrancadas. Havia uma espécie de estampa na parte de dentro da contracapa do fichário. Era um triângulo com uma linha traçada. Essa linha estava próxima ao seu topo, como que deixando outro triângulo menor no topo daquele que era maior. Elaine não entendeu o que era aquilo, mas achou importante e desenhou um igual aquele em seu diário.
Em uma pequena gaveta na mesa ela encontrou uma única chave velha e a guardou em seu bolso, já que poderia lhe ser importante.
Na parede frente os arquivos havia uma pequena passagem entreaberta que Elaine só notou ao chegar bem próximo. Era da mesma cor da parede, mas possuía certo relevo. Quando Elaine se aproximou e passou a mão naquele pequeno relevo, a passagem parece ter sido ativada e ali, frente Elaine, o pequeno relevo se revelou como uma pequena porta de tamanho semelhante aos arquivos, na qual Elaine só conseguiu passar se curvando um pouco.
Ela desceu alguns degraus de escada usando seu celular como iluminação. O corredor onde ela estava era pequeno e claustrofóbico e haviam apenas escadas ali sem uma espécie de fim claro, mas Elaine conseguia enxergar o que parecia ser uma parte aberta, como um pequeno visor de uma porta. Era exatamente isso. As escadas levaram Elaine até uma porta de ferro que estava destrancada, então Elaine conseguiu empurrar a mesma e assim ela estava em um corredor novo. Um corredor maior, com mais espaço e portas fechadas.
Só haviam duas opções agora, voltar para o quarto ou seguir em frente. Elaine resolveu seguir.
Elaine imaginou estar no subterrâneo da igreja. Talvez ali existisse uma espécie de capela gótica ou algo do tipo. Neste momento, tudo isso eram apenas portas para lugares misteriosos e desconhecidos aos quais Elaine anseava em conhecer, mesmo sem saber o que a aguardava do outro lado. Ela torceu para não encontrar ninguém ali, pois se sentia como uma criança que sai da cama no meio da noite para ir até a geladeira e sente medo de ser pega por alguém. Ela se sentia assim.
Aquele grande corredor parecia ser um mundo novo ao qual Elaine queria muito conhecer. O chão do lugar era de madeira e haviam lâmpadas elétricas nas paredes, assim o local estava bem iluminado. As portas não tinham numeração ou algo do tipo, então eram todas portas iguais, de um tom escuro. Eram portas de ferro.
Elaine olhou para trás e as escadas que a levaram até ali também estavam em uma dessas portas, essa ela deixou aberta para não se perder.
Na primeira porta ao lado desta, Elaine não viu nada além de arquivos trancados com um cadeado que ela não conseguiu abrir.
As duas portas depois dessa levavam para o mesmo lugar, um único cômodo vazio e sem energia.
Elaine se preocupava sobre como ela poderia sair daquele lugar sem precisar voltar para aquele ser que a perseguia, já que não via uma saída, apenas portas e mais portas e nem ao menos sabia com precisão onde estava.
Elaine chegou próxima de uma porta isolada da qual havia um espaço considerável entre essa e a próxima porta, e também entre essa e a antecessora, era um espaço equivalente a três portas de distância. Essa porta única levou Elaine até uma espécie de um grande salão.
O salão não estava tão iluminado quanto os corredores mas havia energia naquele grande cômodo, gerada não de lâmpadas elétricas, mas de velas. Haviam papéis no chão e obviamente não havia uma janela naquele lugar, então suas paredes eram repletas de estantes com livros, os papéis estavam em cima do grande tapete vermelho que se estendia por todo o chão do cômodo como se fosse um carpete, pois até às estantes estavam por cima deste tapete.
Também haviam quatro escrivaninhas com uma cadeira próxima de cada uma delas e na parede a esquerda de Elaine, acima da terceira escrivaninha, em um espaço em que não havia estante, havia um quadro único que chamou a atenção de Elaine. Ele estava centralizado um pouco no alto, então Elaine se aproximou para o ver melhor.
O quadro era uma pintura a óleo de um pequeno barco de madeira em uma espécie de rio escuro. No barco estava um homem com um único pano branco amarrado e cobrindo a parte inferior de seu corpo. Seu tronco estava descoberto e seu pescoço e cabeça estavam totalmente cobertos por outro pano branco que estava bem amarrado fazendo assim com que ele ficasse irreconhecível.
Este homem segurava uma foice de ferro em sua mão direita e havia uma espécie de corpo sem vida caído no barco, aos seus pés.
Elaine deu um passo para trás.
— Você não devia estar aqui.
A voz assustou Elaine e veio de uma poltrona que estava isolada no canto da sala e não estava no campo de visão de Elaine, na verdade estava atrás dela.
— Qu...Quem é você?
— Eu não tenho um nome.
— O que é você então?
— Eu sou o escrivão.
O homem acendeu uma vela e agora Elaine conseguia enxergá-lo.
Era um homem pequeno e velho. Sua barba grisalha era mal feita e embora seu cabelo fosse longo, no alto de sua cabeça ele era pouco e ralo. O homem estava vestido com calça justa e com um paletó escuro. Ele segurava um grande livro de capa marrom com detalhes em cinza nas pontas. Parecia ser um livro pesado e ele possuía o mesmo símbolo que Elaine viu recentemente: o triângulo com um traço o atravessando.
Uma cicatriz média atravessava seu rosto, próxima ao seu olho direito e Elaine não pôde deixar de notar que o olho do mesmo lado era totalmente branco, o homem era cego.
Sua postura na cadeira não era das mais corretas, ele parecia ser corcunda e estava com as pernas encolhidas na cadeira. Em seu colo estava o grande livro marrom, que ora ele deixava sobre seu colo e se apoiava nele, ora ele o abraçava contra o seu peito.
— Não vou lhe perguntar como chegou aqui, Elaine Campbell, pois seria idiotice já que a forma como chegou aqui não importa. O que importa é que agora, neste momento, você está aqui frente a mim, como uma invasora. Você é um rato na biblioteca.
— Como sabe meu nome?
— Eu sou o escrivão. Eu sei tudo. Tudo que acontece do outro lado. Quem chega no vale e quem tenta ir embora. Eu vejo tudo.
— Então você me viu chegando?
— Sim. Desde muito tempo vejo quem vem e quem vai. Também quem vai e depois volta... Eu sabia que você viria até aqui.
— Por quê alguém voltaria para este lugar, se muitos querem fugir daqui?
— Me diga você a resposta para sua pergunta, por quê você iria embora? E sobre a afirmação... Decerto as pessoas querem muitas coisas, mas a realidade é que nem todos podem conseguir o que desejam.
— Você vive aqui?
— Sim. No subterrâneo. Eu vivo neste mundo, não existo do outro lado... Você está frente dois perigos em sua aventura. Você está aqui, no subsolo da igreja, e também está no que vocês chamam de o outro lado. Mas novamente: como chegou aqui não me importa. O que importa é que eu queria mesmo lhe conhecer, mas não acreditava, embora talvez fosse possível, já que tudo aqui é possível, não acreditava que lhe encontraria frente a frente nessas circunstâncias.
— Que circunstâncias são essas?
— Circunstâncias que você está deste lado e agora temos todo o tempo do mundo. Não tenha pressa, você não vai perder nada. Agora você precisa estar aqui, por isso você entrou por aquela porta.
— Por quê eu preciso estar aqui?
— Me diga você, já que foi a única responsável por você chegar até aqui! Ninguém lhe forçou a vir até aqui, não estou certo? Você não quer sair daqui? Pois sente-se e dialogue comigo, pois sim. Depois de conversarmos, só então, lhe direi como sair deste local.
Elaine pensou sobre e decidiu que qualquer pessoa que parecesse não hostil e que não lhe causasse medo era digna de ser escutada. Ainda mais neste momento, em que ela era a única pessoa no vale que não sabia a história que gostaria de saber. Ela queria entender tudo e se o homem tivesse razão, minutos de uma conversa não seriam de todo mal.
Elaine puxou a cadeira da escrivaninha a sua frente e a virou para o escrivão, se sentando do outro lado da sala, onde estava. Isso não pareceu incomodar o homem que não disse uma única palavra enquanto Elaine se arrumava para continuar a conversa. Ele apenas a observou com seu olhar cansado. Não havia som no ambiente que impediria os dois de se escutarem, mesmo estando em lados opostos do cômodo.
— Sim, sente-se. Não se preocupe, essa sala é segura.
— Pois bem, aqui estou eu. Primeiramente, quem é você?
— Eu não lhe disse? Não possuo um nome. Eu sou o que sou, e sou o escrivão dessa igreja. O escrivão da religião, de Blindwood! Eu sou único neste lugar. Meu trabalho é escrever as coisas. Escrevo sobre tudo. Anoto, rabisco e preencho todas as folhas que deixam para mim. Efeitos administrativos ou não, confissões, segredos, eu anoto tudo.
— Você não se precipita em dizer que anota tudo? Isso não está ao seu alcance. Você não é onisciente e nem onipresente.
— Quem em sã consciência lhe disse que estou me precipitando? Se eu digo, é porque tenho provas, acredite. Você, Elaine Campbell, chegou em Blindwood a pouco mais de um mês e nem se deu conta que todo esse tempo passou, não estou certo? Você bateu o seu carro no muro da cidade, você conheceu a garota do bar. Você fez dois amigos, mas não os chama por tal definição. Seu carro já foi consertado, então por quê você ainda está aqui?... Seu trabalho, de certa forma, é parecido com o meu. Você anota coisas e acaba refletindo sobre elas. Eu não sou obrigado a pensar sobre o que escrevo, mas às vezes me pego fazendo isso. Eu sei bem que mesmo anotando tudo, você não tem intenção de levar isso a mídia de seu mundo. Você nem ao menos pensa em uma reportagem sobre isso. Você apenas tem medo de esquecer a verdadeira ordem das coisas, é o que você diz para si mesma. Você anota para no fim tentar entender mais calmamente e reler sobre tudo que está passando. Você quer que no fim isso seja uma história feliz. Mas na realidade você apenas quer que, caso algo aconteça com você, um dia alguém ache suas anotações...
— Parece que você sabe muito sobre mim...
— Eu sei sobre tudo, foi o que lhe disse. Eu escrevo sobre tudo, pois isso me foi imposto e é meu oficio; é a minha vida. Mas não me importune: não lhe falarei um ai sobre algo que não lhe diz respeito e nem lhe darei chave de algum cadeado ou de qualquer arquivo que não lhe diz respeito, pois isso seria ferir minha integridade e mancharia este trabalho que não é apenas de uma vida e sim de muito mais tempo do que isso. Eu apenas quero conversar com você.
— Muito mais tempo? A quanto tempo você faz isso?
— Eu estou deste lado como você pode ver, e aqui o tempo é indiferente. Você sempre terá tempo neste lado, mas pode perdê-lo em questão de segundos. Mas para mim, o escrivão, isso é diferente. Eu tenho todo o tempo do mundo e não tenho escolha a não ser escrever e cuidar destes arquivos. Não sinto fome, sono ou sede. Não sinto falta de pessoas, não tenho vontade de nada. Na realidade, a única coisa que posso sentir falta ou vontade um dia nessa existência é escrever. Oh, o que seria de mim se não fosse a escrita? Tudo que faço e tudo que sou são essas páginas preenchidas. Eu escrevi e continuo a escrever a história deste lugar.
— Deste lugar? Você diz sobre Blindwood? Olhe, eu posso escutar tudo que você diz, mas como uma adulta consciente não consigo levar a sério as palavras que me diz, pelo menos em partes... Você diz que não tem nome e muito menos uma idade fixa. Você viveu sua vida inteira aqui escrevendo sobre tudo e todos, mas não sobre sua própria vida? O que isso quer dizer? Você, o poderoso escrivão, sabe sobre todos mas não conhece a si próprio. Você escreve sobre a religião ou sobre Blindwood?
— Me diga, Elaine Campbell, em que ponto a minha mísera vida pode ser supostamente colocada em uma balança para ser medida, ou de uma maneira infame, sequer ser comparada com todo o resto? Em verdade lhe afirmo novamente que tomo nota de todas as coisas, e também em verdade complemento essa informação com outra: em prática é impossível se lembrar de tudo que anoto, por esse exato motivo escrevo, pois a mente humana é falha e se esquece das coisas inteiramente ou parcialmente, e este é o perigo. Se a mente não esquecesse, não haveria motivo para anotar! Eu me lembro de coisas importantes e de coisas recentes, mas não posso me dar ao luxo de lembrar sobre coisas pífias e sem importância. Minha vida, como a de muitos outros, entra neste último grupo.
— Em qual desses grupos minha vida está? – Elaine perguntou maliciosamente, tentando ver até onde o homem responderia suas perguntas.
— O que lhe importa? Veja, disse o que disse em um âmbito geral de toda a história de Blindwood. Na realidade, em toda a existência humana. Do começo até o fim, a vida humana não passa de míseros instantes. Para muitas pessoas, suas vidas são ótimas e gratificantes, mas no fim não são nada de especial. Sua vida é como de qualquer outra pessoa. Até o homem mais importante, um médico muito bem sucedido, veja só, pode pensar que sua vida é especial por ele ter um bom emprego e condições de se manter de forma luxuosa, mas no fim sua vida está no segundo grupo: é apenas uma vida insignificante. Amor, dinheiro, felicidade, no final nada disso importa; você é apenas mais um corpo como qualquer outro. Não digo que as pessoas estão erradas de pensarem que sua vida é algo especial, disse o que disse apenas em um âmbito geral. Quando você escreve sobre tudo como eu fiz e continuo fazendo, você começa a pensar sobre essas coisas. Uma vida é apenas uma vida. Viva a sua e terá a sua resposta, Elaine. Você saberá a qual dos grupos você pertence.
Elaine não disse mais nada por um momento. Ela estava pensando no que poderia perguntar a seguir, já que sabia que se não lhe dissesse respeito, o homem não responderia. Ela olhou para ele e viu como ele era um homem pequeno e parecia cansado. Ele abraçava o seu livro e olhava para o chão e não para Elaine. Parecia que embora quisesse conversar, ele só o faria se Elaine tomasse partido. Ele poderia ficar o dia inteiro falando, mas não tomaria a dianteira de iniciar uma conversa.
Elaine olhou para o livro e se lembrou do símbolo no mesmo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Blindwood" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.