Blindwood escrita por Taigo Leão


Capítulo 13
O outro lado II


Notas iniciais do capítulo

Uma curiosidade: Em algumas culturas, a borboleta significa transformação, beleza e até mesmo renovação, mas em outras pode significar até mesmo a morte.
Na mitologia grega, uma pessoa com asas de borboleta representava uma pessoa morta, já que quando alguém morria, o espírito saía de seu corpo com forma de uma borboleta.
A borboleta também pode significar o desejo humano de uma vida livre e feliz.



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Este quarto sempre foi meu tudo. Este pequeno quarto.
Eu acordo, coloco meu vestido e me sento no tapete no chão para brincar com meus brinquedos. O senhor urso, seu carro vermelho e a dona boneca com um vestido parecido com o meu. Ela sou eu.
Ela tem o senhor urso. Ele tem um rosto ranzinza mas ao menos é alguém ao seu lado. Já eu... eu não tenho ninguém.
Será que a dona boneca se sente sozinha como eu?
Esse quarto é pequeno e vazio, assim como eu. Quando estou aqui dentro, tudo que quero é estar lá fora, mas quando estou lá fora só quero voltar para cá.
Meu corpo dói e não sinto mais vontade de brincar, então me deito no tapete e encolho minhas pernas. Gosto de deitar no tapete para ficar próxima ao chão. Assim eu amenizo um pouco a sensação de estar caindo cada vez mais fundo.
Aqui encolho meu corpo inteiro, abraçando meus joelhos com os olhos fechados e me expremendo pra ver se assim esse sentimento de vazio suma de uma vez e torcendo para que assim como ele, eu também suma de uma vez.
Esse quarto é o meu pequeno inferno e me sinto tão só aqui... Eu gostaria que tivesse alguém para conversar comigo. Eu gostaria de parar de QUEIMAR. Eu gostaria que essa sensação parasse. Eu gostaria que ela voltasse... Eu estou só. Dia após dia, não importa quanto tempo passe, eu estou só.
O cenário atrás de mim, na janela, vai mudando de cor conforme o dia passa. Mais claro, mais escuro, sempre nublado. Essa neblina poderia preencher o meu vazio da mesma forma que preenche o resto do vale. Poderia inundar meu coração para quem sabe assim eu possa sentir alguma coisa. Ela poderia me completar.
Eu continuo aqui encolhida olhando para a porta na esperança de que alguém abra ela algum dia e me tire daqui, mas essa pessoa nunca veio. Essa pessoa nunca virá, mas não sinto vontade de me levantar. Aqui, no escuro, me sinto confortável.
Em algum lugar neste quarto eu vi um pequeno casulo vazio. Uma lagarta virou borboleta e agora ela saiu daqui. Ela está livre. Eu me via na lagarta mas não me vejo na borboleta. São o mesmo ser, mas tão diferente de sua versão anterior. A nova é livre e boa. Eu não sou livre.
A lagarta evoluiu e conseguiu sair daqui, tudo que restou é o seu casulo vazio. Será que meu corpo também é um casulo vazio? Minha alma poderia estar longe, tão longe...
Me sinto tão vazia que parece que até mesmo minha alma me abandonou.
Tudo que desejo é que alguém abra essa grande porta marrom e converse comigo. Mas não qualquer pessoa. Quero que ela volte logo. Ela...
Será que a senhora boneca também é um casulo? Sua alma foi para longe e assim como eu, ela passa os dias aqui, ficando cada dia mais vazia; cada dia mais vazia. O vazio sempre vai nos assombrar.
Este céu da noite é tão belo. Uma pena que não sinto vontade de me virar para vê-lo...


Elaine conseguiu abrir o elevador e colocou a chave no lugar onde ela deveria estar, em uma entrada logo abaixo dos botões.
Ela apertou o botão do elevador para o térreo, mas o elevador não se moveu. Ela apertou por mais duas vezes mas não teve uma resposta. Elaine pensou que poderia estar ficando louca, já que o andar, talvez todo o prédio, estava sem luz e a única coisa que a mantinha sã sobre o elevador era o fato de ter escutado e visto parcialmente com seus próprios olhos duas pessoas usarem este elevador minutos antes. Ela temeu que até mesmo essa situação tenha sido sua imaginação. Talvez ela esteja vendo miragens neste lugar.
Elaine temeu apertar o botão no terceiro andar e voltar para aquele andar, então ela apertou o do segundo e pra sua surpresa, o elevador emitiu um som. Ele estava funcionando.
Enquanto a porta do mesmo se fechava, Elaine viu algo no final do corredor caminhando em sua direção apressadamente. Era a sombra de uma pessoa com uma roupa longa, como se fosse um sobretudo. Ele caminhava rapidamente na direção de Elaine e isso assustou a jornalista, que agora temia que fosse outro daqueles monstros ou qualquer pessoa que sabia que ela não devia estar ali. Ela pressionou desesperadamente o botão para a porta se fechar e a mesma só terminou de se fechar quando a sombra estranha estava a duas portas de quartos de distância. Elaine se sentiu segura e torceu para aquilo não ter uma chave do elevador também.
Quando a porta se abriu, Elaine estava no segundo andar pela primeira vez.
Ele era assim como os outros e estava em um completo silêncio. Sem monstros, sem pessoas, sem nada. Apenas uma temporária paz.
Elaine caminhou lentamente se apoiando na parede, se aprofundando mais e mais naquele andar desconhecido e inóspito na esperança de encontrar alguém que pudesse lhe ajudar, mas também com receio de encontrar qualquer ser naquele lugar. Ela estava confusa com seus próprios pensamentos.
Ela desejava muito encontrar um espelho para tentar voltar para o outro lado, mas alguma parte sua, talvez a mesma que lhe fez vir até esse vale, insistia em continuar ali. Ela queria ir até o fim disso; queria entender mais.
Elaine estava com receio de abrir qualquer porta e encontrar algo que não devia, então procurava por alguma que estivesse aberta ou ao menos entreaberta para conseguir procurar por um espelho.
Enquanto caminhava, Elaine sentiu uma mão em seu ombro que lhe fez gelar a espinha.
— Elaine Campbell. Você está aqui.
Era Luque.
— Luque?! Você me assustou. Sim, eu estou deste lado. Agora entendo o que você queria dizer.
Luque tirou a mão do ombro de Elaine e começou a caminhar com as mãos na cabeça, como se não acreditasse na cena que estava vendo.
— Elaine, Elaine Campbell. Você não devia estar aqui! Você está perdida, perdida.
— Espere. Por quê você está no segundo andar?
— Elaine! – Luque se aproximou rapidamente e fez um movimento como se fosse pegar nos ombros de Elaine, assustado a mulher.– você não vê que estamos do outro lado?! Aqui eu posso caminhar livremente. Aqui não há regras, aqui não é como o seu mundo. Mas isso é o que lhe preocupa agora, como eu estou neste andar?
— Na verdade o que me preocupa é saber como voltar para o outro lado, mas você também é uma preocupação.
— Como você chegou aqui?
— Maria, mas eu a chateei e ela me largou aqui.
— Precisamos encontrá-la. Veja, estou morto, então posso ir e vir sem me esforçar muito. Apenas preciso esperar o momento certo. Não sei controlar direito, mas quando sinto que posso ir, então eu vou. Mas você está viva! Você não pode ficar deste lado.
— Eu vi monstros aqui! O que são eles?
— Monstros? Como eles eram?
Elaine contou sobre os dois seres que viu. Os humanoides sem rosto que se abraçaram quando se encontraram e sobre as crianças em brasas.
— Eu nunca vi seres deste tipo por aqui.
— Como? Eles estão no terceiro andar! Foi lá que os vi! Na realidade, venha comigo.
Elaine pegou nas mãos de Luque e o arrastou até a porta das escadas de emergência. Ela relutou um pouco, mas a empurrou com força e deu um passo para trás, temendo que ali do outro lado já estivesse um daqueles, pronto para pular em cima dela. Mas não havia nada.
— Era pra estar aqui. O último que vi me assustou na escada do terceiro andar e eu o empurrei escada abaixo. Ele devia estar aqui.
— Eu acredito em você, mas agora precisamos sair daqui... Você já foi até o quarto de Maria?
— Não, eu não sei onde fica.
— Não é no terceiro andar, isso eu posso lhe afirmar.
— E nem no quarto, eu acho.
— Então só restam duas opções.
Elaine concordou com a cabeça e voltou para o segundo andar. Ela precisava explorar até encontrar o quarto de Maria, talvez a garota estivesse por lá.
Relutando entre abrir as portas fechadas ou não, Elaine limitou sua busca a apenas quartos com portas entreabertas ou totalmente abertas. No corredor principal haviam 20 quartos e de todos esses, três estavam com a porta entreaberta. Luque tentou abrir outras 5 portas, mas essas estavam trancadas.
Nos dois primeiros quartos Elaine nada encontrou além de poucos móveis que juntando com o todo, passavam a impressão de serem quartos onde ninguém vivia. Eles estavam totalmente limpos. Não havia sujeira, objetos fora do lugar e nem um espelho no banheiro. Eram apenas dois quartos normais e sem vida.
— Luque! E se tiver alguém dentro de um destes quartos que você tenta abrir?
— Eu duvido, Elaine. Ao menos não vai ter ninguém como você, apenas pessoas como eu e pessoas como eu não vão lhe fazer mal. A única pessoa normal que poderia estar por aqui é Maria. Eles não vem para este hotel.
— Eles? Você fala sobre quem matou Elisabeth Lee?
— Sim, eles. Fique tranquila, por enquanto você não corre perigo algum.
— O que você quer dizer com isso?
Luque tentou abrir a porta do quarto 212 e a mesma não estava trancada. Dentro do quarto havia apenas um colchão furado, cadeiras sem encosto e cheiro de mofo. Havia uma pessoa sentada no chão que abraçava as próprias pernas e apertava as mesmas contra si, em um completo escuro. Ela estava tremendo, talvez de medo. Seus cabelos longos tornavam impossível ver seu rosto.
Quando Elaine deu um passo para dentro do quarto, aquilo levantou seu rosto e em um movimento só ficou em pé, correndo na direção de Elaine. Pelo longo cabelo sobre seu rosto, sua face não estava completamente visível e a escuridão também impedia a visualização, mas Elaine sentiu a falta de uma boca naquele rosto.
Elaine recuou de medo e aquilo se aproximava como se anssease por Elaine, mas Luque puxou a mulher e fechou a porta.
— Você disse que pessoas como você não iriam me machucar, mas ela veio para cima de mim!
— Eu já lhe disse que não temos alma. Alguns de nós estão piores do que outros. Veja minha situação aqui, na sua frente, e em seguida veja a dela. Mas sabe qual a verdade? Eu e ela somos iguais, o que nos difere é a nossa vontade, já que isso é intransferível e único para cada pessoa. Sobre o que lhe disse, me perdoe, eu poderia ter sido mais específico: nenhum de nós vai lhe machucar com você estando na minha companhia, já que eu sou um deles. São poucos os que aderem a violência, mas temo que alguns usem dela sem notar. Talvez essa mulher esteja a anos atrás dessa porta, sentada e tremendo da forma como você viu. Talvez ela esteja esperando que alguém venha lhe salvar ou simplesmente em seu tempo de vida, sempre que alguém entrava por aquela porta, fazia algum mal a ela. Imagine que você é a pessoa que veio salvá-la e ela simplesmente quis se aproximar de você, mas a tanto tempo não tem contato com outro ser humano que não tem mais modos ou lembranças em relação ao modo de se portar. Isso, junto com o desespero e ansiedade de interagir com você a fez agir dessa forma e ser violenta. Neste caso não foi por mal, você entende? Mas talvez tudo isso seja bobagem e ela realmente queria lhe ferir, você nunca saberá. Nem eu mesmo posso lhe dizer qual dessas hipóteses está certa. O que importa é que ela está lá e estamos aqui. Você quer abrir a porta novamente?
Elaine balançou a cabeça negativamente e Luque soltou a maçaneta da mesma, seguindo em frente.
Dali em diante, os quartos que não estavam trancados não possuíam nada de tão importante que valesse a pena entrar e explorar os mesmos. Elaine temia que quanto mais tempo permanecesse ali, mais tempo estava sendo perdido. Ela se lembrou da última vez em que esteve com Luque, quando ele a largou do outro lado antes do homem a encontrar no terceiro andar.
— Por que você me largou no seu quarto aquele dia?
— Eu... Fiquei assustado. Me perdoe, Elaine... Havia alguém ali mas não sabia quem, podia ser ele atrás de mim. O que aconteceu lá?
— Era um homem loiro... Eu tenho quase certeza que o vi desse lado também.
— Homem loiro?
— Sim, será que ele é um deles?
— Provavelmente...
Elaine parou diante de uma porta marrom em um dos corredores. Ela encarou a porta e tentou abri-la, mas estava fechada. Elaine lamentou e continuou tentando, dizendo para Luque que podia estar ficando louca, mas estava certa de que algo ali a atraia.
Luque questionou o motivo mas Elaine não conseguia explicar, então ele pediu para eles continuarem a busca, mesmo sem saber o que estavam procurando. Elaine queria respostas. Luque fugia delas, mas queria ajudar sua amiga.
O último quarto desse corredor não estava trancado. Era um cômodo único com uma grande janela.
Ao contrário do resto do prédio, a janela deste quarto não estava com tábuas de madeira. A janela do quarto era uma janela quadriculada feita de vidro e não havia uma forma de abrir a mesma. Era apenas um vitral que embora mostrasse uma densa neblina, permitia que uma luz entrasse no quarto e o tornasse visível.
Elaine entrou no quarto cautelosamente, temendo que algo aparecesse ali a qualquer momento.
Ela se aproximou da cama, que tinha um pano azul e estava de lado, próxima a janela. Do lado esquerdo da mesma havia um manequim e do lado direito, uma boneca com um vestido azul.
Entre a cama e a porta do quarto havia um tapete azul escuro de formato oval. Frente a cama, encostada na parede, havia uma pequena penteadeira sem espelho e ao seu lado um pequeno baú escuro, em cima do baú, na parede, havia o desenho de uma borboleta pequena. Também havia uma cômoda na mesma parede da cama. O lugar era precário de móveis e embora tudo estivesse espalhado, havia certo espaço vago pelo pequeno quarto.
Próximo a cama, na parede, havia o desenho de uma mulher com asas e algumas borboletas próximas dela.
Era um desenho precário de traços e detalhes; era o desenho de uma criança.
A mulher usava um vestido azul e tinha um curto cabelo escuro. Suas asas eram escuras. Haviam também rabiscos que pareciam nuvens próximos a essa mulher e, feito com dois pontos e um traço, estava o seu rosto, que não era alegre. Não havia um sorriso no rosto daquele desenho infantil.
— O que você está fazendo aqui?
Era Maria. Luque não estava mais ali e pela fala da garota, ele desapareceu antes da pequena entrar no quarto. Ela não o viu.
— Maria, finalmente te encontrei.
— Hm...
Maria se ajoelhou próxima a cama e tirou debaixo da mesma um urso marrom e um carro vermelho. O urso havia perdido um de seus olhos de botão e dava para ver que ele não era novo. Maria se sentou no tapete e começou a mover o carro, brincando com ele tão lentamente de uma forma como se fosse obrigada a fazer aquilo ou estivesse fazendo de má vontade. Ela logo parou. Elaine apenas observou a cena.
— Agora você conhece o meu quarto.
— Maria, me desculpe.
— Ora, esqueça as bobagens que já passaram. Agora estamos aqui.
— Maria, eu preciso voltar.
— Você pode voltar quando quiser. Você está aqui porque quer, não é verdade? Você quer mais, não quer?
Maria se levantou e pegou a boneca em sua cama. Logo ela se sentou no tapete novamente e colocou o urso e a boneca um frente o outro. Elaine se aproximou da janela e começou a observar a mesma.
A neblina era densa de uma forma que mesmo estando no segundo andar, Elaine não conseguia ver as ruas com precisão. Ela apenas conseguia ver pedaços de telhados.
— Vê aquele telhado pontudo e as duas torres? Aquela é a igreja.
— Eu estou vendo.
— Você nunca esteve lá, não é mesmo? Sabe o que é religião?
— Sim, eu sei. Você tem alguma?
— Eu sou apenas uma criança, não sou? Crianças não pensam nesse tipo de coisa... Aqui em Blindwood existe algo do tipo. Você pode saber mais indo até lá, se houver alguém lá, eles podem lhe contar tudo.
— Você não pode me contar?
— Agora o senhor urso e a dona boneca estão fazendo as pazes, então estou ocupada. Eu também estou cansada, então hoje não vou mais te ajudar. Você já é adulta, não é?
— Maria, me perdoe.
— Eu não estou brava com você! Apenas estou cansada, é isso! Você confia em mim? Você pode voltar para o outro lado a qualquer momento. Apenas feche seus olhos e deseje muito isso, mentalize isso! Caso não acredite, pegue o pequeno espelho de bolso em minha penteadeira e o leve consigo, assim você pode tocá-lo e voltar. Ah, e você pode usar o elevador deste andar para os outros andares, daqui você pode ir. Sabe? Em alguns andares ele não vai querer te levar para outros, mas agora tudo está tranquilo.
Elaine pegou o pequeno espelho na penteadeira e se viu nele. Ela estava cansada.
Sentindo que podia confiar em Maria, Elaine agradeceu e saiu, dizendo que gostaria de ver a garota novamente em breve e fechou a porta do quarto. Quando o fez, Maria suspirou e deitou no tapete, de frente pra janela.


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