Blindwood escrita por Taigo Leão


Capítulo 1
Sonho




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Em algumas noites eu costumo ter esse tipo de sonho.
Eu vejo fumaça. Sinto um cheiro ruim. Vozes. São pessoas queimando. É um incêndio.

Mesmo neste pequeno pedaço de inferno eu estou calma, mas não sei bem o motivo. Saio do quarto em que estou a tempo de ver um homem correndo pelo corredor. Ele está movendo seus braços rapidamente no ar e grita por ajuda. O homem está desesperado. Ele está em chamas.
Sinto novamente um cheiro forte. É ruim. A carne... O corpo deste homem está queimando.
Consigo ver de perto seu pavor. O desespero. Vejo seu corpo queimando... Sinto o calor. Isso me assusta. Tento fugir dali seguindo para o lado com menos fumaça. O lado que o homem veio.

Sinto mais deste cheiro forte. Vejo e escuto pessoas desesperadas. Pessoas fugindo. Escuto até mesmo o choro de crianças. Tento fugir dali. Eu quero fugir daqui, mas não estou muita pressa. Por dentro eu posso estar. Afinal não importa quantas vezes eu veja isso, não tem como manter a calma em momentos como esse. Então por fora, no meu "corpo de sonho", não estou tão assustada assim.
Vejo corredores e portas iguais. A fumaça toma conta de tudo. Não consigo deixar de sentir este cheiro horrível, o calor e escutar as desesperadas súplicas por ajuda. Tudo isso em vão. Eu estou no inferno?
Chego no final do corredor em que estou e tenho duas opções de caminhos a minha frente. Direita e esquerda. Parte do teto cai próximo de mim. É o chão do andar de cima. Eu não estava preparada para isso, que me assustou e agora impede minha passagem para a direita. Corro seguindo o caminho da esquerda, eu apenas quero sair dali o mais rápido possível.
Enquanto passo por este corredor que parece não ter fim, algo chama a minha atenção e me faz parar. Eu dou alguns passos para trás para ver o que era aquilo e finalmente consigo enxergá-la. Eu vejo algo. É uma menina. Uma pequena menina. Usando um vestido azul e parece estar mais calma do que eu. Ela está mais calma do que todos dentro deste prédio em chamas.
Ela sorri para mim e vem caminhando em minha direção, parece não se importar com o incêndio que nos cerca. Sinto como se o tempo tivesse parado no momento em que a vi. O incêndio não é mais tão importante assim...
Ela chegou perto o bastante para me dar a mão, então esticou a dela. Eu olho para sua pequena mão e para o seu rosto. Aquele rosto... Então eu acordo.

—-------

Elaine acordou às 8h35 como de costume. Seu despertador sempre esteve programado para esse horário.
Ela mal despertara mas já sentia um pouco de frustração. Não com o mundo, como costumava sentir. Desta vez é diferente. Novamente ela teve um de seus sonhos esquisitos. Novamente um sonho sem sentido. O mesmo sonho sem sentido.
Ela se levantou e fez o que costuma fazer todas as manhãs, logo ela estava arrumando suas anotações.
Sua casa é cheia de anotações espalhadas por todos os lados. Pra completar a "decoração", o imóvel também é cheio de papéis e manchetes de jornais grudados nas paredes. Essa é a sua vida. Uma matéria atrás de outra. Já são 6 anos desde que começou com o jornalismo. Elaine era apenas uma garota que não sabia o que queria da vida e sinceramente, nem sequer tinha uma vida. Hoje ela tem uma: O jornalismo. Mais precisamente, as manchetes. A busca pela verdade.
Enquanto troca de roupa, ela recebe uma ligação. É Johny, seu colega de trabalho:
— Alô, querida! Bom dia. Como está? – Johny estava no viva voz.
— Oi, querido.
— Consegui o que você me pediu. Já está em sua sala, então não se atrase hoje.
Johny desligou.
A notícia trouxe uma alegria momentânea para Elaine, que por ora, se esqueceu de seu sonho, porém mais tarde ela voltaria a se lembrar dele...
Elaine trancou as portas e foi para seu trabalho. Um jornal de segunda categoria no centro da cidade. Não é o que ela sonhava, mas ela não sonha com muito além disso agora. Notícias são notícias e vão até às pessoas que buscam por elas. Ela se deu conta de que não precisa estar no melhor jornal do mundo para fazer a verdade chegar até às pessoas. E o salário é bom, isso é o que lhe importa nessa fase de sua vida. Basicamente a única coisa que importa.
— Espero que ele tenha conseguido mesmo.– Elaine pensou consigo mesma à respeito de Johny e seu pedido um tanto quanto estranho.
Ela entrou no prédio e pegou o elevador até o andar correto, indo direto para sua sala, sem nem se dar o trabalho de dar um bom dia às pessoas que também estavam ali. As pessoas também não se importavam se ela faria isso ou não. A maioria estava muito focada em seu próprio trabalho. Elaine não se vê como uma pessoa mal educada. Ela apenas pensa que, se vê essas pessoas todos os dias, ela realmente deve cumprimentar uma por uma diariamente?
— Elas estão me vendo aqui, isso que importa e por si só, diz que estou bem. Se não estivesse bem, não estaria neste lugar e elas não me veriam.
Elaine foi até seu escritório e fechou a porta. Era um escritório pequeno com tantos papéis e manchetes pelas paredes como em sua própria casa. Na verdade, é como se ela morasse neste local. A decoração feita por ela era basicamente a mesma. O tamanho da sala não lhe incomodava e a vista de sua janela era deveras interessante: dava para ver o céu e alguns prédios que o cortam, como em toda cidade grande.
Ela se sentou em sua cadeira e colocou seus olhos em todos aqueles arquivos em sua mesa. Arquivos que foram colocados recentemente, não é o que sempre costuma ter ali: Era aquilo. O que Johny lhe conseguiu.
Incêndio de Blackshire. Orfanato. Casas residenciais. Prédios em chamas. Lojas. Restaurantes. Família não sobreviveu. X mortos. X feridos. Não sobreviveram. Sobreviventes se recuperam. Ninguém sobreviveu. Incêndio controlado. Sem vítimas.
Elaine passou o resto da manhã folheando aqueles arquivos. Eram todos sobre incêndios.
Ela sempre se interessou por este tipo de matéria e devido aos últimos acontecimentos de sua vida, resolveu se aprofundar mais no assunto, então pediu a seu colega Johny que lhe conseguisse todos os artigos relacionados a incêndios dos últimos anos. Tanto de sua própria cidade quanto pelas redondezas.
Muitos casos. Muitas tragédias. Muitas mortes.
Elaine só percebeu que o tempo havia passado como passou, quando pegou o copo de café deixado por Johny junto de um bilhete amigável que ela ignorou completamente, e tomou um gole. O café estava frio. Ela ainda não havia lido metade dos arquivos e neste momento Johny entrou na sala:
— Menina, eu não vi você chegar. Você não abre essas persianas?
— Não. Prefiro deste jeito e você sabe disso.
— Okay, mas então, vamos almoçar agora. Já está na hora.
Elaine não tentou contrariar seu colega de trabalho. Ela apenas se levantou e pegou sua bolsa para ir almoçar, mas ao pegar a bolsa, acabou derrubando parte dos arquivos no chão.
— Droga.
Ela recolheu os arquivos e os colocou novamente onde estavam. Com exceção de um, que fugiu de sua visão e acabou parando embaixo da mesa.
Os dois foram até o restaurante que costumavam comer geralmente e se sentaram no mesmo lugar de sempre. Uma mesa próxima de uma janela que dava para o lado de fora e próxima ao balcão. Elaine gostava da vista deste lugar. Este não é um dos melhores restaurantes da região, o que explica o movimento pouco expressivo de clientes, mas era do agrado dos dois: A vista era boa, as pessoas não faziam muito barulho e as poltronas das mesas tinham um encosto um pouco alto, assim as pessoas da mesa da frente ou de trás não conseguiam ver as outras sem se esforçar um pouquinho, dando privacidade para reuniões, encontros ou qualquer situação embaraçosa que pode acontecer em um lugar como aquele. A comida não era excelente, mas no conjunto, a ida ao restaurante era algo mediano, até mesmo agradável.
— O que achou dos arquivos? – Johny perguntou após fazer o seu pedido.
— Ainda estou avaliando, mas até agora tudo está ótimo. Você me entregou o que eu pedi. Obrigada.
— Querida.. O que eu faço que não é do seu agrado? Espero que encontre o que procura.
— Eu também espero.
Quando terminou sua refeição, Elaine encostou sua cabeça no vidro da janela e ficou olhando para fora, mas não olhava para nada em específico, ela estava refletindo em sua própria mente. Se lembrava do sonho e se esforçava para lembrar de cada detalhe. Ela sentia como se estivesse deixando algo passar. Como se não lembrasse de tudo corretamente.
— No que você está pensando? – Johny questionou, mas por conhecer sua amiga ele sabia que poderia não obter uma resposta sincera.
— Nada. Apenas um sonho que tive. Minha cabeça está doendo um pouco... Você já teve um sonho em que parecia não se controlar? Como se você estivesse assistindo um filme ou algo do tipo? Você é apenas um espectador...
— Querida, meus sonhos não fazem sentido algum e eu esqueço eles no mesmo minuto em que saio de casa. São besteiras.
Elaine concordou com a cabeça e após pagarem a conta, os dois saíram do restaurante. Enquanto voltavam para o prédio, Johny acendeu um cigarro e pela talvez falta de sorte dela ou apenas pela direção do vento, a fumaça soltada por ele ia sempre para o rosto da mulher.
Quando voltaram para o prédio, Elaine foi direto para sua sala.
— Qualquer coisa você pode entrar em minha sala, mas estarei ocupada o resto do dia. Estou fazendo uma pesquisa importante. – ela disse antes de entrar na sala e fechar a porta.
Elaine passou o resto da tarde lendo aqueles arquivos e chegou a sentir um pouco de tédio no meio do caminho, mas não ousou parar nem por um minuto. Bombeiros que foram verdadeiros heróis. Civis normais que tentaram ser verdadeiros heróis. Vítimas do acidente que sobreviveram e ficaram bem. Vítimas que infelizmente não resistiram. A mulher estava acostumada a ler sobre esse tipo de coisa.
Elaine se tornou jornalista após ter a ambição de querer fazer a diferença no mundo, como todo adolescente sonhador. Ela não se encontrou em caminho algum e estava quase desistindo de seu sonho, mas o jornal caiu sobre ela como um milagre. Ela decidiu que se tornaria uma boa jornalista. Ela passaria informações verdadeiras para as pessoas. Faria reportagens enaltecendo os verdadeiros heróis. Alertaria à todos sobre os perigos da cidade. Levaria a verdade para as pessoas. Boa ou ruim, as pessoas merecem a verdade.
Mas que tipo de verdade ela está buscando agora? Elaine nem sabe ao certo o que está procurando. Ela apenas lê cada um dos arquivos detalhadamente, procurando não deixar nenhum detalhe passar despercebido. A ansiedade vai tomando conta dela na espera de que a próxima matéria seja o que ela procura. Ela imagina que sentirá algo quando ler essa matéria, se ela realmente existir.
— O que estou fazendo...? Procurando por um sonho?
Elaine está dividida em duas partes agora. Por um lado, não se conforma de não ter encontrado nada e por outro, não acredita que está procurando algo baseado em uma "grande besteira", como Johny definiu os sonhos no almoço.
Ela olha no relógio e vê que já são 18h30, ela pode ir para casa. Elaine se espreguiça em sua cadeira e se levanta. Ela se dá conta de que ninguém foi até ali durante o dia, nem mesmo Johny, e concorda com seu pensamento de que ser a editora chefe tem suas vantagens. Ainda mais tendo um assistente tão eficiente quanto Johny sempre foi. Mas ela não diria isso para ele em público.
Elaine pegou sua bolsa e foi até a porta de sua sala. Antes de apagar a luz, ela olhou para sua mesa novamente e viu algo embaixo dela, com parte de seu volume para fora, foi o que ela enxergou. Algo borrachudo e preto, como um caderno. Era um arquivo.
Elaine já havia aberto a porta e viu que não tinha mais ninguém por ali. A única pessoa presente era Johny, que estava em sua sala. Ela foi até sua mesa, se abaixou e pegou o arquivo. Mas esse ela não deixaria ali, ela o levaria para casa. Elaine não poderia esperar até o próximo dia para saber o que tinha neste arquivo que passou despercebido. Ela o colocou em sua bolsa e fechou a sua sala. Johny também saiu de sua sala e veio em sua direção.
— Finalmente, mais um dia finalizado.
— Algum imprevisto hoje?
— Na verdade, não. O dia foi um tédio. Tudo como deve ser, então não se preocupe... Sentiu falta por eu não ter invadido sua sala no decorrer do dia? – Johny sorri maliciosamente, esperando a resposta.
— Na verdade eu não reparei como o tempo passou. Estava tão focada nos arquivos que só voltei para mim agora...
— Querida! Encontrou o que procurava?
— Ainda não. Mas talvez esteja quase lá. Boa noite.
Os dois se separaram agora. Cada um foi para sua própria casa e Elaine caminhava com um pouco de pressa enquanto olhava para trás algumas vezes. Ela queria chegar logo para ver o arquivo que carregava consigo. Em sua cabeça, quase fantasiava a ação de ter roubado um livro em uma biblioteca. Uma criança pronta para ser pega no caminho ou assim que chegar em casa, com algum funcionário da biblioteca que a seguiu indo falar com sua mãe. Mas na realidade ela só estava com um arquivo que iria devolver no outro dia. Um arquivo do jornal que ela trabalha a anos. Este não era crime nenhum, mas a sensação de fantasiar era boa.
Após chegar em casa, Elaine colocou sua bolsa em cima da mesa da sala e foi tomar um banho. Ela se trocou e buscou o arquivo em sua bolsa, voltando para sua escrivaninha. A mulher acendeu a lâmpada do abajur e colocou seus óculos de leitura, que não faziam uma diferença tão absurda assim em sua vista e finalmente pôde colocar sua atenção naquele arquivo...


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