Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 36
Aleatoriedades, casual chic e caravanas


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo de transição bem levinho pra vocês ♥



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— Olha aqui, Matt, que bonitinho. Ela tinha cinco aninhos e se vestiu de Tenente Satura para o Halloween!

Leila nos mostrava um álbum de fotos antigas, aberto sobre as pernas. Eu, Cecilia, ela, Sam e Ryan estávamos empoleirados ao seu redor, atentos a todos os pequenos momentos da bebê Cecilia. Que, obviamente, estava constrangida ao extremo.

— Tenente Uhura, mãe...

— Ah... Ela era o que mesmo?

— Ué, uma... Tenente... — Cecilia pareceu confusa, franzindo a testa. — À bordo da Enterprise... Ela era Oficial de Comunicação, a gente pintou até uns cartuchos velhos de Nintendo... Ah, enfim.

Saber que a Cecilia de cinco anos era fã de Star Trek – e o velho, ainda por cima – me provocou novas sensações que eu sequer sabia como caracterizar. Acho que desbloquear memórias dela me ajudava a contemplar toda a mulher que ela era hoje.

— Você era bem nerd — Sam comentou, respeitoso. — No meu Halloween de cinco anos eu fui de Indiana Jones! Com o chicote e tudo.

— Legal — Cecilia sorriu. — É que, tipo... Na época não tinha muita representatividade negra na cultura pop, sabe? O que tinha era a Whitney Houston em O Guarda Costas, a Whoopi Goldberg em Mudança de Hábito e... Bem... A Uhura.

Sam gargalhou, mas Leila apressou-se em explicar:

— Ah, querido, não ia pegar bem mandar uma criança de freira por aí...

— Eu imagino a senhora Sharpe ficando escandalizada facilmente — contribuí para a piada, arrancando um riso nervoso de Cecilia. — Acho que eu nunca assisti O Guarda Costas...

— Nem perca seu tempo — Cecilia suspirou. — Muito dramático e atuações questionáveis. Mas a trilha sonora é boa! É tipo... Tipo Grease.

— Saquei.

Foi a vez dos pais de Ryan observarem nosso tête-à-tête. Como se estivessem numa partida de tênis. Eu não gostava de excluir pessoas de uma conversa, mas geralmente os assuntos com Cecilia nunca acabavam, Eram fluxos de consciência em voz alta, até eu lembrar de que tinham outras pessoas ao redor demandava algum tempo. Desculpei-me pela exclusão com um sorriso amarelo.

— Por falar em senhora Sharpe... — Leila começou, com uma expressão preocupada. — Ele ainda é a abelha rainha por lá?

— Ah, ela acha que é — Cecilia fez um gesto vago com a mão. — Ultimamente passou o bastão para a filha dela, mas nós não convidamos nenhuma das duas para o casamento, então com isso a senhora não precisa se preocupar. A Angie, a neta, é a única que se salva.

Leila assentiu com a cabeça, ao passo que Ryan ergueu uma mão timidamente. Sam permitiu que ele se pronunciasse. Ele fez isso depois de um pigarro:

— É... O que é abelha rainha? E por que a mulher é uma abelha?

— Acho melhor anotar essa ideia também, meu amor... — Leila opinou com um riso nervoso. — É o tipo de expressão que usamos no dia a dia e aí caiu no costume.

— Ah, tá — Ryan franziu a testinha, pensativo. — Expressões do dia a dia são cheias de metáforas... Bom, abelha eu já sei o que é. Elas são bonitinhas...

Caos instaurado em questão de minutos.

— Então... Voltando ao assunto. Você tem certeza de que Noelle concordou com a nossa ida ao casamento? — Leila procurou certificar-se. — Voluntariamente?

— Bem... Ela rosnou um pouco — Cecilia admitiu. — Mas dá para ver que ela está se esforçando. O senhor Bell está mexendo uns pauzinhos para nos ajudar. Vai ser uma cerimônia íntima e o seu grande comeback para Healdsburg. Ela não podia me negar unir duas ocasiões especiais dessas, sabe?

Gargalhei de seu otimismo imbatível sem querer. Ela me lançou um olhar interrogativo, ainda que bem-humorado.

— Se bem que o pessoal lá acha que “cerimônia íntima” e “aberto ao público” é a mesma coisa. Mas Cecilia tem razão, senhora Parker. Eu e Gil vamos ficar de olho nos penetras pra ninguém ficar sem-graça.

Leila conseguiu rir da piada conjunta, o que me deixou feliz na hora. Ainda era manhã, mas estávamos todos prontos para a festa – casual chic, maneira preferida de Cecilia categorizar – e esperando que Gil chegar com a moto recém-adquirida. De férias e após ter se convidado, não tivemos muita escolha a não ser admitir uma segunda bolha energética na viagem. Enquanto isso, víamos fotos de bebê de Ryan e Cecilia – ambos constrangidos, é claro – e papeávamos sobre os assuntos mais aleatórios possíveis. Continuamos nisso por mais uma meia hora, até que Gil chegou. Estava o próprio garçom.

— Eu saio do Wendy’s não sai de mim — Gil lamentou antes mesmo que eu tivesse a oportunidade de fazer piada. — Meus pais mandaram um oi. Posso entrar?

— Pode, mas tira o capacete antes. Tá parecendo um motoboy.

Ele resmungou, mas retirou o capacete e pendurou-o no guidão da motocicleta. Até com o cabelo parecendo uma calopsita, o cara não perdia a pose. Uma injustiça para nós, reles mortais, como Cecilia diria.

— Olá — Gil cumprimentou o casal de professores com um aperto de mão cada, e o mordomo mirim com um soquinho. Em seguida, voltou-se para Cecilia e abraçou-a carinhosamente. — E aí, Ceci? Tudo bem?

— Tudo tranquilo — ela sorriu, dando tapinhas amigáveis em suas costas. — Tá com fome? Minha mãe fez lanchinhos pra viagem! Eu sei que eu sou suspeita pra falar, mas tá uma delícia.

— Morto de fome. Senhora Parker, eu acabei de conhecê-la, mas já gosto muito da senhora.

Em dois minutos, Gil conquistou a todos com o seu carisma nato. Ainda que a tensão de Leila fosse visível, dava até certo orgulho vê-la se esforçando tanto para se deixar envolver no bom-humor coletivo. No seu lugar eu não saberia como agir.

A senhora Parker já estava ocupando o topo da minha lista de pessoas favoritas, também.

 

Prendemos a motocicleta na traseira do carro dos Parker, mas Gil escolheu a Petúnia para a carona. Cecilia até mesmo se aventurou a ligar o rádio de hits atuais, provocando cenas de cantoria que grudaram na minha memória permanentemente. Junte isso aos ocasionais olhares que ela me lançava do banco ao lado e aquele ocupava cada vez mais um lugar especial no meu coração.

— Essa caranga é bonita demais — Gil elogiou quando chegamos. — E tá bem conservada, não?

— Aí depende — Cecilia rebateu com um riso nervoso. — Eu já sabia o que vinha a seguir: a porta batendo com força. Ai. — Qualquer dia desses, essa porta cai. E ele bebe que é uma beleza. Mas bonito... É mesmo.

Gil gargalhou, provavelmente atraindo a atenção do quarteirão inteiro. Dei uma espiada na decoração: trepadeiras artificiais uniam-se a rosas vermelhas e girassóis, algumas luzes de Natal douradas espalhadas pelo contorno do telhado da casa – quem é que tinha sido a doida a se pendurar ali para isso? –, um caminho de pedras meticulosamente distribuído pelo jardim e...

Ah, meu Deus. O gato estava com uma gravatinha.

May Geller apenas colocou a cabeça para fora da porta, abriu um sorriso amarelo para nós e gritou com/para alguém no interior. Rapidamente, Sarah assumiu o papel de anfitriã, ajeitando o cabelo e o vestido antes de vir falar conosco.

— Oi, gente — ela sorriu com as bochechas coradas. Se pela pressa ou pela vergonha, eu não saberia dizer. — Que bom que chegaram... A Comandante Angeline está fazendo o meu cabelo cair de tanto estresse. Alguém precisa parar aquela mulher. Eu imploro.

Eu sempre ria dos dramas de Sarah, mas aquele em particular era bem plausível. Cecilia procurou acalmá-la.

— Já socorro você, meu bem. Pode respirar um pouco.

— Amém — Sarah suspirou, olhando no espelho do carro como estava o estado do pobre cabelo. — Eu fiquei com medo real, sabia?

Foi Gil quem riu dessa vez. Sarah pareceu nota-lo somente naquele momento – coisa difícil, uma vez que o laranja do cabelo dele não era lá muito discreto.

— Seria mesmo uma pena acontecer uma tragédia com um cabelo tão bonito — Gil comentou despretensiosamente. Sarah competiu com as rosas nas trepadeiras para ver quem demonstrava mais pigmento vermelho. — Eu queria que o meu tivesse esse tom. E desbotado, sem-graça.

— O-o meu cabelo? — ela gaguejou. — M-mas tem tom de Cheetos! O seu é do tom que eu gostaria de ter...

— Ah, eu adoro Cheetos! É Sarah, certo?

Eu e Cecilia nos entreolhamos, já vendo tudo. Como grandes cúmplices, giramos nos calcanhares e nos distanciamos dos dois ruivos.

— E então? — ofereci minha mão para que ela a segurasse. — Pronta? Vai ser um longo dia.

— Mas é claro que não. Estou a ponto de correr para o banheiro e me trancar lá até tudo acabar.

Eu ri com pena, acariciando as pontas de seus dedos. Cecilia abriu um sorriso esperançoso. Se não estivessem acontecendo mil coisas ao mesmo tempo, eu até tentaria começar A Conversa com ela. Melhor depois.

— Vai ficar tudo bem — encorajei. — Um barraco hoje seria muito deselegante.

— Ainda bem que a Nona é porto-riquenha. Se fosse mexicana, teríamos um problema em potencial.

Demorei uns segundos até entender a piada. Quando entendi, Cecilia gargalhou de maldade da minha cara. Fiquei até constrangido.

— Você, Cecilia, é terrível.

— Claro que sou — ela sorriu. — Amo novelas, estou no meu local de fala.

— Sei. Vamos lá buscar os outros antes que eles também deem um perdido na gente.

Ela assentiu muito séria. Empertigou a postura e foi até o segundo carro ver se estava tudo em ordem. Ao nos aproximarmos, vimos que Leila estava tendo seu momento de apreciação à antiga casa. A expressão em seu rosto era um misto de medo e curiosidade.

— Caramba... E pensar que deixei essa casa praticamente caindo aos pedaços quando fui embora... — Leila murmurou mais para si mesma do que para nós. — Você fez milagres aqui, Cecilia.

— Hoje o mérito é da Angie, mãe, mas muito obrigada — as bochechas dela coraram de alegria. — Vamos lá?

— Podemos ir, Ceci — Sam desafivelou o próprio cinto de segurança e o de Ryan no banco de trás. — Cansado?

Ryan fez que não, esticando o pescoço para fora da porta.

— Não... Eu tô feliz, acabei de ver um gatinho na varanda! Eu posso brincar com ele?

— Pode — Cecilia piscou para o mordomo-mirim. —Depois a gente passa uma fita no seu terno pra tirar os pelos.

— Tá! Então podemos ir!

Sam riu, carregando o filho no colo até a porta da frente. Ainda que estivesse com as mãos ocupadas, Sam foi cavalheiro o suficiente para abrir a porta para a esposa. Anotei o gesto para imitar... Quando eu tivesse um carro. Leila aceitou a mão com altivez; uma perfeita dama.

Sarah, que tinha abandonado o papel de anfitriã ao encontro de ruivos, voltou como se nada tivesse acontecido. Estendeu a mão para os adultos e sorriu para a criança no colo e voltou ao trabalho com os quitutes. Já May e Angie apareceram logo depois, um tanto mais contidas na simpatia, mas aquilo fazia parte de suas personalidades. Acho que também pesava o fato de que, quando Leila foi embora de Healdsburg, elas não passavam de crianças. Imagino que deveria ser difícil se reapresentar para alguém tendo tantas mudanças de vida e de caráter influenciando suas atitudes e escolhas.

Foi então que Nona – vejam só quem estava usando apelidos – desceu as escadas, parcialmente pronta, estacionou num degrau e passou a nos observar, os reles mortais, avaliando se valia a pena descer àquele nível. Eu torcia para que fosse apenas o nervosismo pelo casamento falando mais alto, e não um alarme sutil de que ela colocaria fogo na casa em breve. Conosco lá dentro.

Que coisa mais horrível de se pensar...

— Ryan — Cecilia se pronunciou de sua maneira doce de praxe. — Por que não vamos lá fora brincar com o Walt? Não queremos que ele derrube nada aqui dentro, certo?

Ryan assentiu em concordância, por mais que Walt – que ainda estava no colo do Gil – tivesse lançado um olhar para a dona como quem diz ei, não sou eu o problema aqui. Trocando de lugar com Sam, Cecilia levou-o para fora, atraindo o restante de nós para sua caravana de seguidores. Sam lançou um olhar de dúvida para a esposa; no entanto, Leila sorriu encorajando-a a deixá-la a sós com a ex-amiga.

E o que eu poderia fazer a respeito, a não ser me tornar mais um espectador da cena toda? Sam colocou os pés na estrada – no caminho de pedras – e eu o segui feito um cão arrependido.


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Notas finais do capítulo

Sinto cheiro de ship aqui?



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