Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 31
Domingos, ressentimentos e esclarecimentos


Notas iniciais do capítulo

Para hoje temos muitas emoções, espero que vocês gostem ♥



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Não que eu soubesse como agir normalmente, mas era um caso à parte. Minha mãe tinha uma família. Eu tinha um meio-irmão. O pai dele tinha a minha idade. Como eu deveria reagir àquilo? A conta não batia.

Mas eu estava determinada a tentar. Nem que eu fosse voltar chorando para Healdsburg. Por isso mesmo que concordei em conversar em particular após o almoço, quando Sam, Ryan e Matt se retiravam para os fundos da casa.

Ficamos na sala de estar – cheia de retratos de família –, e dei um desconto ao ver que ela estava tão nervosa quanto eu. Ela tinha novas rugas de expressão, rugas que eu não conhecia a história. Eu me importava com isso? Eu me importava o suficiente para me entristecer com ter sido deixada de fora dessa fase de sua vida?

— Bem, eu... Eu suponho que tenha ficado surpresa... Um pouco demais — ela começou.

Tentei não responder em tom de condescendência ou insolência. Mas é que era metade irritação por ela pronunciar o óbvio, metade o meu eu adolescente querendo se rebelar.

— Um pouco — concordei.

— Peço desculpas por isso. Talvez não tenha sido a melhor das ideias.

— Talvez...

— Mas, de qualquer maneira, eu não saberia como comunicar isso pelo telefone.

— Tudo bem, eu... Hã... Agora já estou comunicada. Sem problemas.

Ela assentiu, trazendo o silêncio constrangedor de volta para o cômodo. Hesitei alguns instantes, pensando nas opções que me aproximavam menos do Potencialmente Dar Errado. Troquei de posição no sofá, respirando bem fundo. Iria dar certo.

— Vocês formam uma família bonita...

— Ah — ela me olhou, tentando decifrar se eu não estava tirando uma com a cara dela. — Obrigada, Cecilia. Você e seu Matthew também... Bem, ele é muito bonito.

Ri de nervoso, torcendo uma mecha de cabelo.

— O que esse homem bonito quer comigo eu não sei, sou formada em filmes adolescentes onde os caras fazem apostas pra ficar com as feias... Ainda me parece suspeito.

E então ela riu. Fiquei surpresa com o gesto. No almoço ela tinha apenas sorriso, mas aquela era uma risada genuína. Eu me remexi, desconfortável.

— Você sempre foi tão engraçada... E não é nada feia.

— Não sou mesmo, igual às meninas feias dos filmes... Mas também não sou nada estonteante. Enfim. Não é o assunto em pauta. Vamos voltar ao ponto.

Ela respirou fundo, assentindo com a cabeça aparentemente derrotada pela realidade. A hora para gracinhas já tinha passado... Passado por cima de mim.

— É claro... Você quer respostas logo, é... É justo. Por onde gostaria de começar, Cecilia?

Encarei os retratos de família. Não havia nenhum que parecesse mais antigo, nenhum com o bebê Ryan. Aquilo era no mínimo de se estranhar. Resolvi começar por aí.

— Você... Você tem um filho de sete anos. Não... Não faz sentido na cronologia toda.

Minha mãe enrubesceu como se fosse uma adolescente conversando sobre assuntos de adulto com a mãe. Uma inversão de papéis muito curiosa.

— Não, não faz — ela admitiu, ajeitando a postura. — Eu... Eu fui embora de Healdsburg quando descobri que estava grávida. Eu... Não sabia como eu iria explicar isso, então...

— Então você achou que a melhor opção era simplesmente fugir sem falar nada para ninguém.

Ela mordeu o lábio, hesitante. Eu teria de ter jogo de cintura.

— Tá bom, tá bom — pigarreei. — Desculpe. Fale.

— Eu não... Na verdade, eu... Eu contei, sim.

Ergui uma sobrancelha. Aparentemente, o começo era o meio.

— Ah, é? Contou pra quem?

— Para a Noelle — ela sussurrou. — Pensei que ela pudesse me ajudar, porque ela sempre te amou tanto, mas... Eu não tive uma resposta positiva.

Franzi a testa, consternada com as novas informações. É claro que eu teria de perguntar à Nona o seu ponto de vista sobre essa história, mas qualquer resposta sobre essa parte tão nublada da minha vida bastava.

— Talvez seja melhor começarmos por bem antes — ela sugeriu num tom mais brando. — Antes de tudo isso, antes... Antes do seu pai.

Senti os músculos tencionarem. Era mesmo o dia de colocarmos as cartas na mesa. Engoli em seco e olhei pela janela, vi os três homens – ou os dois homens e meio – jogando uma tentativa de futebol. A cena era adorável, eu devia admitir. Matthew parecia estar se divertindo horrores, e era o que eu mais amava ver.

— Como quiser...

— Eu não falava muito sobre ele, não é? — ela indagou retoricamente, negando com a cabeça para si mesma. — Eu... Costumava achar que seu pai era perdidamente apaixonado por mim quando nos conhecemos. Ao menos, era isso o que ele dizia.

Continuei a olhando. Vinha coisa por aí. Ah, meu Deus.

— Quando me mudei para cá, eu não tinha grandes esperanças... Eu era só uma menina que queria uma vida mais estável. Eu já era maior de idade, então podia fazer o que bem entendesse da vida, certo? Bem... Então eu conheci o seu pai. Ele era tão... Magnético. As pessoas queriam estar perto dele. Sabe?

Assenti com a cabeça, por mais que eu tivesse a impressão de que ela não estivesse esperando mina validação. Ela precisava falar e eu precisava ouvir, certo?

— Eu também caí na sua rede de magnetismo. Ele tinha essa energia e eu era uma jovem estrangeira cheia de vida. Nós formávamos uma boa dupla. Éramos bastante dinâmicos, mas... Eu ainda tinha alguma... Desconfiança... Quanto ao relacionamento.

— Como assim...?

— Deixe-me ver como posso explicar — ela fechou os olhos, pensando. Escolhendo as palavras com muito cuidado. Tal mãe, tal filha. — Eu o conheci aqui, em San Francisco, e depois que nos conhecemos ele me levou até Healdsburg. Uma cidade pequena, onde todos já tinham seus lugares... Era fácil me sentir deslocada. Mas... Às vezes, eu tinha a impressão de que estava lá só para que ele pudesse me exibir. Para que ele pudesse mostrar que conseguia. Eu era uma mulher muito bonita. Mas não tinha muitas qualidades além desse fato.

Gelei-me por dentro. Eu entendia perfeitamente do que ela estava falando. Não a parte de ser exibida, porque eu não era uma beldade como minha mãe, mas na parte de me sentir sem qualidades suficientes e deslocava eu tirava um grande bingo.

— Enfim... Isso não é o ponto principal — ela suspirou. — A questão é: eu estava lá para ser um troféu exótico numa cidade americana muito tradicionalista. Estava aqui para chocar. E qualquer um podia enxergar isso. Noelle foi uma das primeiras pessoas que tentou me avisar dos perigos de me atirar de cabeça nesse relacionamento... Mas eu era muito orgulhosa e teimosa, e tinha certeza de que era isso que eu queria. Então... Então eu fiquei. Nós nunca nos casamos. Só morávamos juntos... Até mesmo porque eu só queria viver aquele período da vida intensamente sem pensar muito. Até que... Até que veio você, Cecilia. E as coisas começaram a desandar.

— Ah.

O que mais eu poderia dizer, afinal de contas? Saber que eu tinha desandado a vida dos meus pais, por mais que tudo já estivesse fadado ao desastre, me deixava um tanto desestabilizada. Minha mãe notou a mudança de clima e apressou-se em acrescentar:

— Não quis dizer que você foi um problema, Cecilia... É só que uma criança exige certos aspectos de ambos os pais. E nem eu e nem o seu pai tínhamos esses aspectos... Você compreende o que quero dizer?

— Sim — e eu compreendia, mesmo. Até já tinha falado sobre isso com o Matt... Era sobre ela, mas detalhes. — Continue...

Ela ergueu a cabeça para estudar meu rosto. Saber mais sobre a minha mãe estava sendo diferente do esperado. Ela nunca tinha me falado nada sobre seu passado antes; aquilo era um prato cheio e um divisor de águas para nós. Antes, eu talvez preferisse não saber de nada que fosse relacionado a ela, mas agora... Agora eu queria ouvir o que minha mãe tinha a dizer. Melhor dizendo, eu queria ouvir o que a Leila tinha a dizer.

— Certo... Bem... Você apareceu nas nossas vidas e eu... Ah, Cecilia, eu fui tão negligente com você... — sua voz embargou por alguns instantes, porém após um pigarro sua narrativa foi retomada. — Eu tive depressão pós-parto... Eu mal conseguia segurá-la nos braços sem cair no choro. Amamentar era uma tortura. Eu não conseguia cuidar de você como sempre tinha sonhado e me culpava por isso. Noelle foi a que mais me ajudou... Ela era nossa vizinha e... Cuidou mais de você do que eu. Ela foi sua mãe, não eu.

Neguei com a cabeça, sentindo meu coração se despedaçar em um milhão de pedacinhos. Levaria anos para colar todos os pedacinhos de volta. Isso se eu conseguisse juntá-los todos de um modo que formasse algo parecido com um órgão vital decente.

— Não, mãe... Noelle é uma avó para mim. Minha mãe sempre foi e sempre será você. Não foi sua escolha ter depressão pós-parto, eu não acho justo que você se coloque nessa posição. Por favor, não diga isso.

Vi seus olhos marejarem, sinal de que ela havia se sensibilizado com minha fala. Por mais que tenha receado no início, cheguei mais próximo a ela no sofá. E foi num fiapo de voz que ela conseguiu se pronunciar:

— Você me chamou de mãe...

— Porque é o que você é — sorri de lado, tentando transmitir confiança suficiente para que ela não desabasse. — Eu posso ter ficado chateada com você, mas não era motivo para trocar sua identidade.

Assentindo com a cabeça, ela enxugou os olhos como uma dama. Não pude deixar de admirá-la por isso; em seu lugar, eu já teria aberto o berreiro.

— O que aconteceu depois? — incentivei, usando meu melhor tom macio. — O que o meu pai achou da ideia?

Ela mordeu o lábio, perdendo-se em pensamentos.

— No começo... Bem, eu acho que ele demorou a se dar conta do que era colocar uma criança no mundo. Entendia-se que a mãe é quem tinha que cuidar do filho integralmente, então... Seu pai “sustentava” a casa e voltava no fim do dia. Ele era operador de máquinas, sabe? A casa era dos pais, que já tinham morrido, tinha algumas dívidas... Eu... Sinto muito por falar sobre essas coisas com você, mas... — E então, ela ficou vermelha. Corajosamente, prosseguiu, no entanto: — Seu pai perdeu o interesse por mim depois que você nasceu. Ele... Ele não concordava com o resguardo e queria que eu voltasse logo para a ativa, m-mas... E-eu...

— Você simplesmente não podia — completei por ela. — Não podia e... Também não queria. Era a última coisa que passava pela sua cabeça, tendo que se adaptar fisicamente e mentalmente para sua nova situação.

Ela aquiesceu com timidez. Não pude deixar de me compadecer por sua situação. “Amor” nenhum deveria se comportar assim. Não me admirava que suas atitudes conforme o tempo fossem tão subversivas.

— E por isso ele foi embora...? — deduzi com uma pontada de dor no coração. Quando ela confirmou pela segunda vez, eu suspirei. — Tudo bem. Ficou no passado. Não vamos falar mais sobre o meu pai. O que acha disso?

Minha mãe fungou, enxugando o restante das lágrimas com toda a delicadeza do mundo. Eu realmente gostaria de ser mais como ela, precisava confessar. Destrambelhada do jeito que era, tinha mesmo minhas dúvidas de que tivéssemos laços sanguíneos.

— Muito bem. E como chegamos ao seu esposo? — franzi a testa. — Digo, vocês são casados? Você e o meu pai nunca se casaram, por isso mesmo que estou perguntando.

— Somos casados, sim — ela sorriu com um brilho a mais no olhar. Achei adorável. — Nós... Nós nos casamos um pouco depois de eu descobrir que estava grávida.

Observei-a com atenção. Não queria supor o que ela sentia, mas agora eu podia entender mais o seu lado. Portanto, dei um palpite:

— Ficou com medo de contar para ele da gravidez?

— Sim — ela sussurrou. — De ele ir embora porque não queria compromissos ou responsabilidades... E... Bem, homens mais novos tem o costume de não querer compromisso, sabe...?

— Bem... Sim, é normal que homens mais novos escolham focar na carreira e estudos ao invés de constituir uma família. Mas boa parte das “desistências”... — fiz aspas com os dedos. — São do caráter da pessoa... Sempre tem alguns sinais de alerta antes do problema em si aparecer.

Ela respirou fundo, tanto para assimilar o que lhe fora dito quanto para prosseguir com a história.

— Conforme você crescia, eu caí no erro de achar que você conseguiria se virar sozinha... Você sempre foi tão intuitiva e inteligente, Cecilia...

— Não acho — ri para dentro, constrangida. — Nunca tive boas notas e odiava ir pra escola... Não consegui nem ser aprovada numa universidade...

Foi a vez dela de me lançar um olhar de compaixão. Não soube como reagir àquilo; Nona não era uma grande fã de compaixão, por mais que eu conseguisse enxergar seu amor demonstrado de outras formas.

— Cecilia... Inteligência não é só ter boas notas. Pessoas não são diplomas. Não se preocupe tanto com isso.

Por incrível que pareça, me senti extremamente reconfortada com as suas palavras. Éramos praticamente estranhas com a sensação de déjà vu, tentando retomar intimidades que nunca existiram. Ou, se existiram, nunca foram muito concretas. Desmoronaram com a corrosão do tempo. Ainda assim, eu conseguia enxergar alguma familiaridade em meio a tantas ruínas. Portanto, me apeguei a elas como se minha vida dependesse disso. Afinal, talvez dependesse.

— Então... — minha mãe continuou sua narrativa, visto que eu tinha me calado do nada. — Como você já “sabia se virar”, eu continuei a tentar viver... Sem que eu tivesse percebido, seu pai havia moldado parte da minha identidade. Eu precisava ir à busca da minha própria... E foi isso que eu fiz. Bastante discretamente, é claro.

— Foi quando você voltou a dar aulas.

— Sim. Você e Noelle já trabalhavam, eu não queria permanecer acomodada. Voltei a dar aulas em San Francisco, como fazia antes do seu pai, e retornava para cá no final do dia. Não era nada demais, você deve se lembrar... Só pilhas de livros e papéis sem fim.

Aquiesci, soltando um risinho fungado. É, eu lembrava.

— Até que apareceu o Sam — ela sorriu, corando até a raiz dos cabelos. — Ele foi professor substituto na escola em que eu lecionava. Sam era recém-formado, mas isso nunca foi motivo para duvidar de sua competência. Ele era e ainda é um ótimo profissional. As crianças e os adolescentes de lá o adoravam. Sam poderia ter sido efetivado apenas pelo carisma, se não tivesse alguém no cargo.

— Isso é algo bom num professor — opinei.

— Ah, sem dúvidas. Isso chama a atenção não apenas dos alunos, mas dos demais professores também. É claro que cada um tem seus próprios métodos de trabalhos e cada um sabe o que melhor funciona para sua disciplina. Mas é inegável que o carisma conquista os alunos e dá alguns pontos a mais para o professor. Tanto é que algumas pessoas tentam “forçar” esse carisma.

Franzi o nariz, concordando com suas palavras.

— Geralmente não dá certo.

— Claro que não. Carisma é natural. Não dá para vestir uma máscara de carisma. Eu, por exemplo, não tenho. Por isso admirei tanto o de Sam.

Tínhamos acabado de almoçar, mas ainda assim ela se levantou e caminhou até a geladeira para reaver a limonada do almoço. Foi um gesto que agradeci profundamente, porque todo aquele falatório estava me deixando sedenta. Após ela servir dois copos, minha mãe retomou a conversa:

— Nós nos conhecemos junto ao corpo docente, naturalmente. Nossas áreas de estudo não podiam ser mais distintas, é... Engraçado. Eu leciono Espanhol e Sam leciona Química. Mas ele era muito simpático. E sempre foi um doce. Interessava-se pelos projetos, sugeria novos e também mídias que saíam na televisão para incentivar os alunos. Sam era... Ah, ele era simplesmente um doce.

Não pude evitar um sorriso. Histórias de amor me encantavam, independente de onde vinham. Principalmente quando era possível ver que ela tinha encontrado seu final feliz.

— Nós nos víamos todos os dias... Conversávamos bastante, ríamos bastante. Não era raro almoçarmos juntos. Ele me dizia... Dizia-me que eu era divertida, por mais que eu não achasse que isso fosse verdade. Seu pai... —ela negou com a cabeça, parecendo estar indignada com o próprio pensamento ainda pipocar depois de anos. — Ele não achava isso. Então eu me retraí muito.

— É compreensível se “retrair” quanto a novos relacionamentos quando se tem um histórico conturbado...

— Ah, é. Eu imagino que sim. Porém, ficamos nessa retração, nessa minha repreensão, por meses.

Arqueei as sobrancelhas, surpresa.

Meses?

— Pelos menos oito — ela confirmou, envergonhada. — Eu... Não queria admitir que eu tinha sentimentos por ele. O amor vai embora, pensava eu. O amor machuca. O amor só quer saber de aparências, não do que somos por dentro. O amor... O amor acaba, se você não tiver nada mais a oferecer.

Ah, puxa vida. Era exatamente o que eu pensava antes de encerrar aquele ciclo. Fiquei feliz de verdade por ela ter conseguido fazer aquilo também. Mas eu ainda precisava descobrir como.

— O que a fez mudar de ideia com relação a ele...?

Ela nem hesitou. Foi respondendo tudo na lata:

— Sam iria se mudar de escola... A licença do funcionário já estava no fim, ele precisava deixar o cargo. E... E eu não conseguia imaginar a minha vida, a minha nova vida, sem ele. Sem os nossos almoços, conversas e risadas. Foi nesse período também que ele disse que queria se relacionar comigo a sério. Eu... Admito que eu fiquei surpresa.

Acompanhei-a num gole de limonada, aproveitando a oportunidade para olhar pela janela. Matthew parecia estar lendo minha mente, porquanto que fez exatamente a mesma coisa no mesmo momento. Matthew inclinou a cabeça, indagando como corriam as coisas em silêncio. Abri um sorriso tranquilizando-o, o qual foi retribuído com visível alívio. Seus ombros caíram e a postura relaxou, e aí então Matt acenou timidamente e voltou a concentrar sua atenção em Ryan.

— Por que ficaria surpresa? — foi uma pergunta sincera. Nenhuma ironia. Eu nunca soube usar ironia direito, de qualquer forma. — Você é uma mulher de muitas qualidades.

— Eu... Na verdade, eu não conseguia compreender o que é que um homem da idade iria querer comigo. Além de eu ser mais velha, eu já era mãe. Os perfis... Não batiam na minha cabeça. Não havia lógica. Ainda mais naquela época, havia tantos preconceitos com idade, com uma mulher mais velha, então?

— Dá para imaginar...

— Mas, bem, Sam conseguiu me convencer de que era uma coisa boa... Então eu fui — ela riu baixinho, enrolando um cacho na ponta dos dedos. — Nós sempre fomos muito discretos, e Sam até queria que você soubesse sobre a nossa relação, mas... Novamente, eu fiz uma má escolha e quis guarda-lo só para mim. “No momento certo”, eu dizia. Mas quem é que determina quando é a hora certa para uma decisão desse calibre?

Dei o braço a torcer para ela. Eu tinha ficado para trás, sim, mas olhando por fora eu não era algo produtivo para ela naquele momento da vida. O pensamento dela era lógico. O meu era sentimental. Podia beirar o egoísmo, se ela não tivesse dito o motivo. Eu não tinha ideia do que fazer.

— E aí você engravidou e foi uma surpresa — deduzi. — E contou pra Nona, segundo o que você disse. O que deu errado?

Minha mãe respirou fundo, e pude ver que as mãos ficaram trêmulas segurando o copo de limonada. Não sei o que me deu na cabeça, mas me aproximei dela no sofá e segurei suas mãos com cuidado, fazendo com que ela me encarasse com uma expressão anuviada. Aquilo me arrasou.

Como a vida era curiosa. Eu reproduzia os mesmos medos, inseguranças e limitações da minha mãe, por mais que já não nos víssemos há anos. Era assim que o amor funcionava?

— Não quero que se zangue com a Noelle — ela baixou o tom da voz, acariciando a ponta dos meus dedos. — Eu não a julgo por ter reagido da forma que reagiu... Foi uma sucessão de eventos infelizes.

— Por favor, me conte... Eu preciso saber — implorei com gentileza. — Preciso fechar essa história de uma vez por todas...

Ela assentiu, reunindo coragem para se abrir. Foi como uma lufada de ar fresco no rosto... Só que no inverno.

— Eu contei tudo para ela, assim como acabo de fazer com você. Sem esconder nada e amedrontada. E... Noelle disse que eu estava sendo egoísta e não tinha pensado em você quando fiz isso. Mas, pela primeira vez em muito tempo, eu estava agindo sem pensar em você... Noelle disse que eu não merecia ter uma mãe covarde. E disse que, se fosse para eu viver uma vida dupla, era... Era melhor que não fosse no mesmo lugar que ela. E também disse que você já vivia muito bem sem mim e que não precisava da minha presença por piedade. Então eu voltei para San Francisco, porque... Se você não precisava de mim, como ela bem havia observado, eu tinha alguém que não tinha outra opção além de precisar de mim.

Fiquei boquiaberta. Não era possível que Nona tivesse dito tudo aquilo, era? Não a Nona que eu conhecia. Mas... Aquilo tinha ocorrido há sete anos... E Nona havia me proibido de falar sobre ela depois disso... Seria por conta de ter se sentido ofendida pelas decisões da minha mãe?

— M-mas isso não dizia respeito a ela! — protestei. — Ah, eu amo muito a Nona, porém isso é inaceitável. Ela não tinha o direito de te dizer essas coisas. Se isso foi horrível para eu ouvir, imagine pra você! Nós vamos ter uma conversa séria sobre isso quando eu voltar.

— Já faz muitos anos, Cecilia — ela suspirou frustrada. — Não vale a pena remexer essas coisas agora...

Neguei com a cabeça, apertando sua mão com mais firmeza.

— Vale. Vale sim. É a minha vida, mãe. São sete anos perdidos da minha vida. Anos esses em que não teve um dia em que eu não pensei que você tinha ido embora por minha causa — pateticamente, fui obrigada a ouvir minha voz embargando e minha mãe me olhar com preocupação. — Que você nunca tinha se recuperado do meu pai e que doía olhar para alguém tão parecido com ele todos os dias. Que você se decepcionou comigo porque não era inteligente e não era especial... Que eu tinha sido um fracasso pra você...

Parei pra respirar fundo e não cair no choro. Apesar de ser uma situação digna de um aguaceiro, tentei me conter.

Pelo menos eu consegui, até que a minha mãe passou os braços ao redor dos meus ombros para me abraçar de lado. E foi naquela hora que eu desabei.

Acho que eu nunca tinha chorado nos braços da minha mãe. Depois da infância, eu digo. Para ser sincera, eu nunca nem tinha chorado nos braços da Nona... Nem de ninguém. A experiência estava sendo devastadora. Eu sentia os soluços estremecerem meu corpo como se fossem espasmos irrepreensíveis; apesar disso, não soltei sequer um gemido. Dizem que choros silenciosos são gritos escondidos, não dizem?

— Ah, querida... — minha mãe afagou meus cabelos de um jeito que curou o silêncio. Solucei alto. Pronto. — Não foi nada disso... Você é e sempre foi uma boa menina... Ah, eu nunca vou me perdoar por ter feito vocês se sentir assim por tanto tempo...

Neguei com a cabeça, achando injusto que ela se martirizasse daquele jeito. Enxuguei as lágrimas na manga da jaqueta, o que não foi uma decisão, porque o jeans machucou meu nariz com a violência da fricção.

— Não, mãe... Sou eu quem tem que se desculpar por não ter te procurado antes...

Ela me olhou com aqueles doces olhos cinzentos, e eu tive certeza de que tudo ficaria bem. O que passou, passou. Terminamos de derrubar as ruínas para construir um castelo maior e melhor. Mais do que começos, eu amava recomeços.

— Nós... Nós podemos tentar de novo? — ela perguntou num sussurro, vocalizando meus pensamentos. — Eu quero que você faça parte da minha família também, Cecilia... E-eu vou entender se for demais pra você ou se precisar de mais tempo para pensar, mas... Você e Matthew têm um lugar reservado nesse nosso pequeno lar...

Todo o conjunto de letras, palavras e frases me fez sorrir de orelha a orelha. Assenti com a cabeça efusivamente, e me aventurei a me atirar em seus braços para um abraço completo. Ela merecia aquilo.

Minha criança interna estava em êxtase, finalmente sendo reconhecida após tanto tempo sozinha. Eu devia aquilo a ela. Além de perdoar minha mãe, eu estava fazendo as pazes comigo mesma.

Era um bom começo.

Agora só faltava todo o resto da minha vida.

O que diziam mesmo sobre o primeiro passo?


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