Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 26
Investigações, confiança e medos




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Eu deveria ter notado que algo não estava certo. Tive umas quinze crises existenciais depois disso. Porque, por exemplo, era para eu notar quando as coisas com Cecilia desandassem. Se eu não conseguisse reparar quando ela agia diferente quando estava triste, como eu poderia fazer algo realmente eficiente para melhorar seu estado de espírito? Eu não sabia lidar com as minhas próprias tristezas, como poderia ajudá-la com as dela...? Principalmente quando ela sempre reparava quando eu estava para baixo?

Fosse como fosse, Cecilia estava triste. E como eu soube disso? Através de Sarah Palmer. Em plena noite de sábado, eu recebi uma mensagem de um número desconhecido que dizia apenas o essencial.

 

“Oi. É a Sarah. Peguei seu número com a senhorita Georgette. Cecilia está triste. Escuto soluços no banheiro, mas não quero deixá-la sem graça, uma vez que ela está fazendo isso escondida. Pode verificá-la depois, fazendo o favor? Obrigada.”.

 

Claramente uma adulta de 17 anos. Parecia que Sarah estava redigindo um e-mail empresarial ou um memorando. Era mesmo engraçado como as coisas poderiam mudar.

 

“Claro, Sarah. Conte comigo.”.

 

Voltando para a cronologia da coisa toda, esperei alguns minutos para entrar em contato com ela. E Cecilia respondeu como de costume, com os emojis e tudo.

Se eu não estivesse previamente ciente de que Cecilia estava triste, eu teria deduzido pelas mensagens? Isso era algo importante?

Meu Deus, aquilo nem era sobre mim. Eu só queria que ela ficasse bem. Como fazer alguém feliz se a pessoa não tinha me informado por si só que precisava daquela felicidade que eu gostaria de oferecer?

Bem. Continuamos conversando pelo final de semana normalmente. Cecilia me narrou a interação com as meninas – desde as sessões de comida até as sessões de cinema – e eu reagi com meus comentários engraçadinhos de praxe. Então, na segunda-feira, no meu dia de folga, eu roubei mais algumas rosas do jardim da tia Georgie e atravessei as ruas com o meu melhor humor.

Diferentemente da biblioteca/livraria, a floricultura não tinha um sininho de entrada. Então, quando entrei, Cecilia não notou de primeira que eu estava lá. Sua franja já começava a cair em frente aos olhos, mas ela não parecia estar incomodada, visto que sua terra estava franzida em uma imensa demonstração de compenetração. Fui obrigado a pigarrear, até que ela levantasse a cabeça em completa surpresa.

— Oi...! Eu não esperava te ver hoje! Como vai?

— Clichê verdadeiro: melhor agora — sorri. — E você?

Ela assentiu com a cabeça, aparentando distração. Walt dormia confortavelmente em seu canto, mas não havia nenhum sinal de que Noelle estivera ali. O que era estranho, visto que ela era tipo... Praticamente O Olho que Tudo Vê na vida de Cecilia. E o gato era o porta-voz.

E era assim que a minha cabeça viajava. Lamento a digressão.

— Eu atrapalho? — indaguei, sentando-me no balcão. — Posso voltar outra hora, se for o caso.

— Ah, não! Imagine... Estou almoçando, sabe? — ela retirou um sanduíche de detrás do balcão. Franzi a testa, confuso com a situação. — Nona está de folha hoje. Estou a cobrindo, afinal somos uma empresa de duas pessoas. Então, bem... Não me resta muita opção além de improvisar um almoço.

Soltei uma risada nasalada, tentando farejar algo nas entrelinhas de sua afirmação. Eu faria o meu melhor trabalho investigativo e quebraria todas as barreiras emocionais de Cecilia Sadie Lewis. Seria um sucesso.

— Entendi. Então a folga dela é na segunda.

— Hm-hm. Quinta e domingo.

— Então é um caso à parte? Ela não se sente bem hoje?

Ela me olhou como quem foi pega no pulo. Certo. Era ali que morava o problema. Pressionar, mas nem tanto.

Pressionar com gentileza?

Não, não pressionar de qualquer modo. Tenha compostura, Matthew. Que absurdo de pensamento.

— Não muito — ela se ajeitou em seu banco, apoiando os tênis acima do chão. — Mas ela diz que está bem. Mesmo assim, eu não quis arriscar.

— Entendi... Quer companhia? Posso ser um funcionário honorário hoje, ou algo do tipo.

— Tá tudo bem, Matt — ela sorriu de lado. — Pode ficar, hoje tem pouco movimento.

Assenti com a cabeça. Então, lembrei-me de que ainda segurava as flores, portanto entreguei-as a ela debilmente. Apesar de ser algo bobo em comparação àquele mostruário, Cecilia sorriu como se fosse um buquê com quinhentas rosas bem vermelhas e menos mortas do que eu estava oferecendo. Fiquei um tanto tímido.

— Flores na segunda-feira? — ela abriu ainda mais seu sorriso até exibir seu par secreto de covinhas. — Está fazendo disso uma tradição?

— Depende... Não parece patético demais?

— Não... Mas algo me diz que se continuar roubando as rosas do jardim da senhorita Georgette, ela vai ficar furiosa e sair da casca de idosa fofa...

Gargalhei, inevitavelmente. Cecilia sorriu junto a mim, me fazendo voltar a colocar os pés no chão. Eu precisava investigar sua tristeza. Não era hora para gracinhas. Hora de voltar à seriedade.

— Ceci, eu... Preciso... — limpei a garganta, tirando o pigarro que insistia em pontuar todas as minhas frases. — Preciso saber. Você não parece estar bem... Não de verdade. Se não for só impressão minha, eu... Gostaria que me dissesse. Para eu poder te ajudar.

Eu já estava fazendo avanços. Nem gaguejei.

Cecilia, por sua vez, fitou-me com os olhos castanhos obscuros. Diferente do comum, com o brilho aguçado, naquele momento sua pupila estava dilatada ao ponto de a íris ficar em segundo plano. Algo em seu olhar fez com que o meu peito se contraísse. Sua postura me lembrava duma presa que já tinha entregado os pontos e desistido de continuar tentando em meio a tanta fuga.

Esse era o ponto: doía vê-la assim e ter a ciência de que eu não podia ajudar em muita coisa.

— Na verdade, eu... Aconteceu uma coisa no sábado que me deixou um pouco fora do ar — ela confessou num sussurro. Até mesmo Walt pareceu levantar as orelhas para ouvir de seu canto. — O dia estava divertido e descontraído, mas... Nona me deu uma notícia ruim e eu... Ainda estou com dificuldades em lidar com ela, você me entende...?

Assenti com a cabeça, incentivando-a a continuar. Cecilia respirou fundo, parecendo reunir coragem suficiente para se pronunciar.

— Nona está com um quadro agudo de osteoporose e, pelo que entendi, foi muito por conta de negligência. Eu estou muito dividida entre me desesperar por seu estado de saúde e ficar muito possessa por eu ter avisado e ela não ter dado ouvidos — ela falou tudo de uma vez. Parecia ter expulsado todas suas preocupações e se envergonhado disso no mesmo instante. — Quer dizer, eu... Não quero parecer egoísta, desculpe.

Segurei suas mãos com carinho – como eu a via fazer com várias pessoas –, atraindo seu olhar curioso. Não a julgava pela desconfiança, eu mesmo estava surpreso. Isso não me impediu de falar o que eu precisava:

— Sabe uma coisa que eu admiro em você, Ceci? — esperei por qualquer reação antes de continuar falando. Quando ela negou com a cabeça, sorri e prossegui: — Eu admiro o fato de que você sempre consegue verbalizar o que está sentindo... Como eu já lhe disse, eu não acho isso egoísmo... É uma habilidade sua que eu gostaria de ter. Francamente, muitos problemas que tenho são por conta de não conseguir me abrir sobre meus sentimentos. Então, eu... Acho admirável que consiga fazer isso tão naturalmente.

Cecilia permaneceu me observando com atenção. Senti minha garganta fechar, e fiquei me perguntando se tinha sido inconsistente ou dito algo errado. Ou talvez fosse só um incentivo para que eu continuasse, assim como eu fazia com ela. Talvez estivéssemos treinando espelhar nossos comportamentos.

— Você se preocupa com a Nona, isso faz com que você queira o melhor para ela... Inclusive, essa preocupação pode se manifestar através de vias mais... Intensas, talvez? Como irritação, raiva... Nenhum sentimento é completamente controlável. Em momentos de estresse, principalmente, tudo pode se acumular e explodir... O importante é não ser grosseira. Você foi grosseira?

— Não...

— Pois então. É normal — sorri. — Não se culpe por reagir de maneira “extrema”. Ainda assim, está se controlando para não descontar em ninguém... Isso é muito doce e muito corajoso, Ceci.

Ela assentiu com a cabeça, com o rosto um pouco mais iluminado. E então afagou minhas mãos, parando apenas para dar uma mordida no sanduíche. Acabei rindo de sua reação, provocando uma gargalhada nervosa de sua parte.

— Desculpe, eu como muito quando fico frustrada — ela se recompôs, pigarreando para livrar-se do resto de pão. — Obrigada, Matt... Não sei o que eu faria sem você...

Muita coisa, provavelmente.

Pensamentos autodepreciativos. Bandeira vermelha.

— Não tem de quê... Mas sinto muito pela senhorita Mendez... Há algo que eu poderia fazer para ajudar?

— Bem, eu acho que não — Cecilia suspirou, franzindo o nariz em seguida. — Não é algo fatal, só me pegou desprevenida, sabe...?

Aquiesci. E roubei seu sanduíche para dar uma mordida enquanto ela terminava de falar:

— E-eu acho que boa parte do susto foi a... A vulnerabilidade. Ela já tem certa idade e... As oscilações de saúde na velhice me apavoram um pouco demais... Sei que é algo que tenho a melhorar, mas eu acabo sempre pensando no pior primeiro...

— É, eu entendo... É até um pouco mais cômodo pensar no pior primeiro, porque quando dá certo, a sensação de conquista vem como que em dobro...

Ela ergueu a cabeça, me olhando com espanto.

— É exatamente o que eu penso...!

— Aparentemente nós compartilhamos o mesmo neurônio — ri baixo, segurando sua mão para dar um beijo nela. O gesto pareceu reconfortá-la. — Mas... Quer um conselho? Nesse caso, em específico, só vai te trazer problemas na convivência com a senhorita Mendez... Tente pensar por esse ângulo: se ela, que é a pessoa que está doente, está “bem com isso”, como você disse, não concorda que não faz lá muito sentido tomar um peso que é meio inexistente nos seus ombros? Que ainda não existe?

Cecilia aquiesceu, parecendo estar tomando notas mentais sobre o meu conselho-argumento. E depois os olhos se estreitaram, como se ela estivesse tentando procurar erros ou furos nele. Como provavelmente nada de suspeito despontou em seu radar, ela suspirou.

— Você está certo, Matt. Eu sei que ela está. Mas é que eu não faço ideia de como não sofrer por antecedência...

— Com isso talvez eu possa te ajudar — sorri. — O que acha de darmos uma volta amanhã no vinhedo da Poppy Graham? Ela me disse que eu podia levar você lá a qualquer hora que quisesse.

Suas bochechas ficaram vermelhas. Mais uma mordida no sanduíche. Uma mordida dela, no caso, depois de ver que eu o tinha roubado e me censurar de brincadeira.

— Poppy Graham? Ela era bem popular na minha época de escola, sabia?

— Não diga que está com ciúmes — ergui uma sobrancelha. A vermelhidão se intensificou, então tomei aquilo como um sim. — Ah, Ceci, a única coisa que nos une é o senhor Bell. E, bem, e a vaquinha que eu pedi para pintar.

Cecilia franziu a testa, consternada.

— Isso é alguma metáfora ou...?

— Não! — gargalhei me ajeitando no banco. Enquanto isso, Cecilia pareceu ter se lembrado de que precisava socorrer as flores arrancadas, portanto levantou-se e foi buscar algum vaso perdido na estufa. — Uma vaca literal! Dei o quadro pro Gil. Eu não falei disso?

— Ai, pra ser sincera, eu nem me lembro. É que a frase “a vaquinha que eu pedi para pintar” sem contexto fica meio bizarra — ela riu junto comigo. — Tudo bem, podemos ir... Amanhã?

— É. Depois do serviço. Eu te pego às 19h30. Que tal?

Ela abriu um sorriso maldoso, chegando-se para o meu lado após deixar o vaso em segurança ao lado de seu computador. Não combinou com o restante do ambiente, mas o coração bateu um pouco mais forte com o gesto de gentileza.

— Veja bem, você gostaria da resposta comportada ou a atrevida?

— Não me tente, Cecilia — também ri com maldade, puxando-a para o meu colo num movimento rápido e bastante arriscado. — Não vai querer que eu provoque-a em horário de trabalho, vai?

— Hm-hm — vi-a engolir em seco, congratulando-me pela pequena conquista. — Mas, para início de conversa foi você quem veio até aqui e está deliberadamente me provocando. Se eu correspondo, aí me sento de culpa!

— Ah, sim. Isso é a maior verdade de todas.

Foi a vez de Cecilia gargalhar. Mas, por incrível que pareça, partiu dela a atitude de me dar um beijo. Nada mais atraente do que a sua garota com gosto de creamcheese. Seus dedos alcançaram meu cabelo, e eu sorri ao sentir o carinho. Segurei-a pela cintura, por mais que ela fosse leve como uma pluma em comparação a mim. Em resposta, Cecilia encostou o queixo em minha cabeça.

— Obrigada, Matt...

— Pelo quê?

— Por ser você... Isso já é suficiente para melhorar o dia...

E aí eu pergunto: tem algum modo de um homem feito passar com o coração ileso com uma mulher daquelas?

Na minha humilde opinião, não. Foi por esse motivo que respondi seu comentário com todos os beijos que a falta de clientes havia tão gentilmente me proporcionado.

Cecilia Lewis era uma dádiva divina.


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