Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 20
Impulsividade, cenouras e confissões




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A cada pincelada, o rosto de Cecilia ficava mais evidente. Às vezes, eu tinha de parar para respirar, o que atrasou minha data interna estimada para o término do quadro. Isso porque, para aproveitar o buquê, eu tive de registrar as flores em primeiro lugar. Foi um tanto desolador jogá-las fora. Acho que era por isso que Cecilia cultivava tudo numa estufa no quintal de casa. Ainda assim...

Após um mês e alguns quebrados, 42 horas totais e muitas adaptações em nome da privacidade, eu o terminei. Ao invés de cabelos ondulados e pele cor de amêndoa, havia cachos bem definidos e a pele dois tons acima do seu. Entretanto, toda a aura de tranquilidade era a essência de Cecilia, e fiz questão de mantê-la ali, abrigada sob uma sobrinha rendada.

Bem, eu tinha imaginado uma garota regencial admirando o cheiro dos seus lis... Lisa... Lisi... Que seja, o cheiro das flores de seu jardim, trajada apenas de uma camisola e uma sombrinha, ousada e confiante com seus cabelos soltos e livres em plena luz do dia, quando se supunha que ela precisava estar completamente impecável.

Simplicidade e rebeldia. Essa era a Beleza Primaveril— com o verão batendo à porta –, um tanto clichê, mas era o que estava sendo pago para fazer. Se me pedissem uma musa de verão, eu teria de me virar em três.

Fosse como fosse, lá estava eu contemplando gloriosamente a obra-prima – modéstia à parte –, meu sustento pelos próximos três meses com alguma sorte, exausto e com a tendinite atacada, me sentindo em paz. Isso significava que, se eu quisesse, poderia arrumar as malas e voltar para casa, me entupir de comida congelada até Pauline dar o ar da graça com outro pedido.

Ao mesmo tempo, eu tinha algumas amarras gentis atando-me a Healdsburg, portanto precisava me aquietar por pelo menos mais uma semana. Não que isso fosse um sacrifício; muito pelo contrário. Ficar com a tia Georgie era excelente. Trabalhar com o senhor Bell era gratificante. E Cecilia...

Era um caso à parte. Eu ainda não sabia o que fazer com ela.

Eu sabia o que eu queria fazer com ela. Mas querer e poder são duas coisas distintas por um motivo justo.

De qualquer maneira eu disse à Pauline que o quadro ficaria pronto em uma semana. E também não contei a ninguém que tinha terminado. Gil disse que eu precisava ser mais espontâneo e descontraído, então por que eu não podia me aproveitar disso.

Com toda a espontaneidade recém-adquirida, eu liguei para Cecilia.

Só para cair direto na caixa postal.

— Ué... — cheguei ao ponto de murmurar sozinho, deixando os pincéis na água para desgrudar a tinta. — Então tá bom...

Era estranho, uma vez que ela sempre costumava me atender, mas me conformei com o horário comercial ser preferência do cliente. Como um bom homem do século XXI, deixei uma mensagem perguntando se estava tudo bem e aguardei o contato. Enquanto isso, desci as escadas para o andar de baixo na intenção de fazer companhia para a tia Georgie. Não demorou muito para que ela me olhasse com aquela puxada para o lado maternal.

— Ah, aí está você! Não trabalha mais, mocinho?

— Segunda, quinta e sábado — cantarolei, roubando uma fatia de cenoura crua de sua tábua de cortar. — Parei um pouco com o quadro, já estava me doendo tudo.

— A idade chega para todo mundo, meu bem. Hoje é...?

— Quarta-feira — completei.

— Oh... May Geller vem hoje... As provas finais estão chegando, ela e Sarah pediram reforço essa semana... Ah, pobrezinhas, o sistema de ensino hoje em dia está mais puxado do que era há uns anos, você sabe?

Assenti com a cabeça, mordendo o pedaço crocante.

— A mudança de gerações fica cada vez mais complicada de acompanhar... Tipo, para acompanhar, mas não sem dar uma corrida.

— É por aí. Sinto que preciso tomar cuidado com o que digo, mas se parar para pensar isso é algo bom...

— As pessoas estão se abrindo mais sobre o que as incomoda — opinei. — Isso é bom, na verdade. Mesmo o “tomar cuidado” é uma faca de dois gumes. Dá para aprender bastante dessa geração. Ah, francamente, quanto mais eu penso nisso mais eu fico confuso.

Tia Georgie riu suavemente, cortando a cenoura de um jeito bem passivo-agressivo. Achei a cena curiosa.

— Estamos muito reflexivos para essa hora do dia, não acha?

— Certeza que isso pode ser curado com um bolinho — abri um sorriso pueril, fazendo com que ela me lançasse um olhar fulminante. — É verdade! Ah, tia Georgie, qual é. Você me acostumou mal com uma alta frequência de bolinhos, e então não havia mais nada...

— Mas é um bebê chorão mesmo...

Para consolidar sua acusação, fiz um bico – nada adulto, é claro. Apesar de sua expressão ainda irritada, flagrei um sorriso de relance despontando em seus lábios. Sempre que ela sorria, eu sentia algo bem próximo de voltar para casa após um dia cansativo. Um lar.

Era curioso, mas Cecilia também tinha esse sorriso.

Mudar-me para Healdsburg era uma proposta bem interessante. Afeto e comida gratuita, por que não?

— Tia Georgie... Posso fazer uma pergunta indiscreta?

— Depende. Eu tenho a opção de não responder?

Assenti com a cabeça, observando enquanto ela deixava a faca de lado.

— Por que a senhora nunca se casou?

Ela se manteve em silêncio por alguns instantes antes de me responder. Talvez estivesse formulando. Reformulando. Cérebro fritando?

— Acho que eu nunca tive tempo para relacionamento. Nunca nem me ocorreu pensar nisso. Eu era uma mulher afrodescendente, porque era assim que diziam para suavizar, lutando pelo meu direito de aprender e lecionar. Era uma corrida muito grande para tentar alcançar quem dava a largada dois metros à frente porque tinha privilégios — ela suspirou, cortando meu coração em um milhão de pedacinhos. Eu não tinha como saber sua vivência, mas vê-la falar daquele modo me fazia querer apagar todos os pontos dolorosos de seu passado. — Aí, quando eu tinha tempo, ninguém demonstrou interesse. Então, nunca foi uma prioridade. Além disso, as relações hoje estão tão diferentes...

— É. Tem isso, ainda... — mordi o lábio, pensativo.

— Tem algo que queira me dizer, querido?

— Eu sou um péssimo mentiroso, não sou?

— Ah, não. Ajuda o fato que eu te conheço desde a infância.

Ri completamente constrangido. Quer dizer, não achei que eu iria discutir minha vida amorosa com a minha avó, mas lá estava eu. Ela estava me dando a oportunidade de não falar sobre isso. Mas eu queria mesmo esconder coisas importantes dela só porque seria um assunto difícil de ser tratado.

Com um suspiro, eu comecei. Deve ficar mais fácil conforme o tempo.

— Acho que você sabe o problema...

— Sei. Mas gostaria de ouvir você dizendo — ela replicou com gentileza. — Que tal? Como nos velhos tempos? O bolo ainda não está pronto, mas podemos ficar sentados em paz, mesmo assim...

Fiz que sim, me ajeitando na cadeira. Senti o suor frio empapando minha testa.

— Vou te ajudar. Vamos organizar as ideias, sim? — ela se sentou ao meu lado, me olhando com insistência. — Você concordou comigo quando disse que as relações são difíceis, também concordou em tom de lamento. Isso quer dizer que gostaria que elas fossem mais fáceis. Não é isso?

— Hum... É...

— E pensou nisso por alguma razão em específico?

Engoli em seco e me coloquei a estalar os dedos.

Talvez eu gostaria de... Hum... Ter algo com... Alguém.

Algo seria uma relação com a sua nova amiga Cecilia — não foi uma pergunta.

— B-bem... Sim. É isso. Viu? Nem foi difícil.

Ela abriu um sorriso inteligente.

— Ainda assim, não foi você quem disse... Foi?

— Olhe... É um pouco mais difícil de categorizar do que só “eu quero ter uma relação com a Cecilia” — quando eu vi o estrago já estava feto. Não faria sentido parar de falar. O eu impulsivo atacava novamente. — Digo... Eu gostaria. V-você me entendeu. É só que... Ambos somos adultos com um monte de problemas. Ela precisa de alguém que fique. E eu... Eu não... E-eu...

Tia Georgie permaneceu me observando mesmo quando minha língua se enrolou dentro da boca. Suspirei absurdamente frustrado. Um adulto de 30 anos que não tinha dicção e não tinha coragem de enfrentar os próprios problemas. Eu também me revoltava com isso. Quem é que gosta de ser assim?

— Querido — ela estendeu a mão para alcançar a minha. Olhei para ela me sentindo um cachorrinho desamparado. — Você não pode desistir antes de tentar, principalmente porque tem medo de que as coisas deem errado...

— Sei disso — suspirei uma vez mais.

— Meu bem. Deixe eu te contar algo que aprendi com muitos anos de vida?

Abri um sorriso torto, tentando descontrair.

— Depende. Eu tenho a opção de não responder?

— É até melhor que não responda. Aí fica ao seu encargo refletir sobre o assunto.

Assenti com a cabeça, lhe servindo uma xícara de café. Ela sorriu e levou a xícara aos lábios com toda a paciência do mundo. Eu me perguntava se os seus alunos das antigas também se pegavam presos no limbo da concentração cada vez que ela fazia uma pausa daquelas.

— É clichê, eu sei. Você não vai me levar a sério pela mensagem batida, mas... Dói bem menos saber que tentou e não conseguiu do que olhar para trás e perguntar-se como teriam sido as coisas se tivesse tentado, apesar do medo.

Ela terminou seu café com a calma de um Bicho-preguiça. Enquanto isso, eu estava lá em pane interna. Eu não sabia se era bom ou ruim o fato de ela estar certa.

— O que a senhora acha que eu deveria fazer?

— Ora, querido. Quer que eu desenhe?

Gargalhei de nervoso, dando o braço a torcer. Levantei-me da cadeira e lhe dei um beijo na testa, arrancando-lhe um sorriso surpreso. Tudo bem, eu nunca fui muito de demonstrar carinho fisicamente, eu entendia o lado dela. Talvez eu devesse começar a fazer isso mais vezes...

— Já entendi. Desculpe, a senhora por acaso viu os potes que estou devendo devolver? Dizem que é bom fazer a política da boa vizinhança...

Ela riu suavemente, me indicando o armário com a cabeça. Com o gingado digno de um pato, me desloquei da mesa para o armário para encontrar os refratários com um discreto C. S. Lewis inscrito à caneta permanente na tampa. Ri sozinho. Quanta guerra por um pote...

— Vamos lá, vou ajudar a senhora com esse bolo — falei como se fosse um grande herói de todos os tempos.

Tia Georgie sorriu aparentemente se divertindo muito com o meu tom de voz. Gil havia me dado conselhos semelhantes, mas vindo dela... Algo me dizia que ela tinha vivência e, portanto, propriedade para falar.

— E depois?

— Depois eu vou encher esse pote... Eu diria encher esses potes, mas aí o bolo iria acabar... Então vai a um só... De bolo.

— E depois?

— Devolver os potes. Isso aí, que nem um bom menino, Abanar o rabinho e tudo mais que esteja incluso no pacote. Certo?

A boa velhinha me ofertou a faca para eu terminar de matar as cenouras. O que já era uma cena cômica tornou-se pior, uma vez que ela já era bem menor que eu – da minha perspectiva, parecia que ela estava fazendo um esforço enorme para me ameaçar.

— E...?

— Voltar para casa, ué. Fazer uma caminhada faz bem para os pulmões. Eu ando relapso com exercícios...

Com pouca cerimônia, ela me acertou um tapinha amigável no braço. Eu gargalhei, esfregando o local atingindo me sentindo incrivelmente privilegiado.

— Tia Georgie? — sorri.

— Sim?

— Eu já disse que amo você?

— Hoje não. Mas eu também, querido.

Esperava de coração que continuasse assim, apesar de ainda não ter descartado por completo a ideia de desistir no meio do caminho.

 

Isso, felizmente ou infelizmente – é ainda um tanto difícil de categorizar – eu não desisti no meio do caminho. Posso acrescentar com um tanto de orgulho que andei pela rua sem fazer uma carranca mal-humorada. Até sorri para alguns transeuntes! Gil e sua alma extrovertida haviam me ensinado alguma coisa, afinal de contas. Apesar de que, passando pelo caminho arborizado da casa de Cecilia, eu fui analisado de cima a baixo por uma senhora que me parecia particularmente familiar. Eu tinha a memória péssima, teria de perguntar quem era.

Foi até um pouco engraçado. Lá estava eu, indo até ela tal qual o príncipe encantado dos contos de fadas. E, quando eu menos esperava, a própria Cecilia estava lá, sentada no gramado feito uma princesa perdida. Com o celular no ouvido, sinal de que estava ao telefone – ah, ok, estava justificada e devidamente perdoada. Como era mesmo o nome daquela princesa que queria ganhar rios de dinheiro trabalhando?

Era minha chance de dar meia-volta e ir embora. Mas, antes que isso fosse uma possibilidade, ela olhou bem dentro dos meus olhos. E sorriu. E acenou. Não o aceno de “oi”. Era o aceno de “chegue mais”.

Eu e o pote fomos até ela. Seja quem fosse que estivesse do outro lado da linha, escutei-a dizer um tchau pouco emotivo e levantar-se para cumprimentar a minha pessoa. De alguma forma, seu sorriso se alargou e eu pude sentir o coração se comprimir dentro do peito.

— Oi! Ah! Você trouxe o pote! É um verdadeiro milagre! Aí, Walt, vem ver só essa!

— Eu trouxe... Tá tudo bem? Eu te mandei uma mensagem, mas acho que você não viu...

Ela parou o cumprimento no meio para verificar a veracidade da informação. Após apenas um instante, ela emitiu um “oh” em tom de lamento.

— Ah, me perdoe... Eu estava... Hã... — seu rosto ficou vermelho escarlate. E a cor lhe caía bem. — Um pouco enrolada. Mas estou bem. E você?

Assenti com a cabeça, sentindo a garganta fechar. Ah, não. Ciúme não é um sentimento saudável.

— Uhum! É, sim, eu...

— Algum problema? — suas feições mudaram da água para o vinho em questão de segundos. Foi como se alguém tivesse puxado o tapete de baixo dos meus pés. — Pode dizer... Eu me importo com você, apesar de achar que você é um safado...

Não consegui não rir de sua colocação, ainda que tenha saído um tanto irônico. Só Cecília para colocar o gelo e quebrá-lo em seguida.

— Eu poderia muito bem fazer algo a respeito desse seu comentário impertinente... — resolvi entrar na brincadeira, me fazendo de cafajeste. — Mas, como hoje é um dia especial, eu vou deixar que a senhorita desabafe primeiro. Diga o problema para o cafajeste.

Ela me ofereceu a mão, indicando o gramado para que me juntasse a ela no quintal das fadas – porque era assim que me parecia, com tudo aquilo de grama e flor. Era o momento. Eu estava sentindo. Fiz o esperado e deixei o pote de lado. Até mesmo o gato cochilando na varanda ajudava na aura feérica da coisa toda.

Com certeza, eu era um inseto nesse cenário.

— Certo, eu... Vou tentar ser concisa. — Cecilia respirou fundo, sem se soltar da minha mão. Confesso que fiquei satisfeito com isso.  — Eu... Fiquei bastante pensativa depois da nossa conversa, no Shed.

Viu só? De hoje não passa.

Nem para eu passar na farmácia antes...

— E eu percebi que tinha certos aspectos na vida que eu precisava melhorar. Por isso mesmo, eu precisava tomar algumas decisões importantes.

... Acho que me perdi no meio do caminho.

— Sei... — comentei só para não ficar em silêncio, porque entender era uma palavra muito forte para o momento. — Então...?

Então, eu resolvi ligar para a minha mãe. Nós... Nós marcamos um encontro.

Assenti com a cabeça, muito sério. Exigiu muito de mim que eu não expressasse minha decepção com o rumo da conversa. Não era justo, ela estava se abrindo a respeito de um problema que a perseguia há anos, eu já não tinha mais direito algum de falar sobre mim num momento como aquele.

Quando eu não arranjava desculpas, as desculpas me arranjavam. Parecia até uma piada de mau gosto.

— Mas isso é uma história longa. Não vou te encher com isso — ela sorriu com gentileza. — E você? O que está te incomodando?

— Ah, isso não é nada demais. Eu até já esqueci.

Para reiterar a ideia, segurei o pote com muita calmaria e sorri. Devia parecer assustador.

— Por que não me conta esse caso enquanto comemos bolo, Ceci?


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