A fada que o escreva escrita por Creeper


Capítulo 3
A casa de Úrsula e Leona


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo para vocês! Espero que estejam gostando, agradeço os comentários até aqui ♥
Boa leitura!

Capa do capítulo: editada no Canva/personagens feitas no Picrew (créditos:@yorugaki026)



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Minha primeira reação foi gritar, o que não adiantou muito, já que minha voz se perdeu no vento. Em meio ao seu combate, Dante trocou de posição com o demônio e acabou por me encontrar, lançando-me um olhar enfurecido e berrando comigo. 

Se de um lado eu estava ferrado, do outro eu estava morto. Recuei alguns passos, tropeçando em meus próprios pés e afundando na neve ao cair de costas. O demônio usava trajes de alguém que iria a um baile, não fossem a sujeira e os rasgos no tecido.

Minha mandíbula ficou tensa e os olhos vidraram-se na imagem em minha frente. O barulho da corrente e os gritos de Dante eram levados pelo uivo do vento, restando apenas eu e a criatura.

O demônio caminhou lentamente em minha direção enquanto a saliva escorria de sua boca. Cerrei os dentes, puxei o que tanto segurava dentro do sobretudo e subitamente o joguei no rosto do monstro.

Sua pele foi tomada por um tom vibrante de laranja nos locais em que a água atingiu e os cacos de vidro prenderam-se em suas rugas, fazendo-o grunhir. Vendo meu sucesso, arremessei a segunda e a terceira bomba de água benta, produzidas especialmente por Gaspar. 

A face do demônio derreteu e seu corpo foi ao chão com pequenos espasmos e falhas tentativas de manter-se de pé. Soltei uma risada de nervoso e arrastei-me até criar uma distância segura em que eu conseguisse me erguer e correr, mas não foi necessário.

A gola de meu sobretudo foi puxada bruscamente e meus pés deixaram o chão. Segui o olhar pelo braço que segurava minha roupa, visualizando a expressão nada contente de Dante.

— Qual o seu problema?!

Puxei a esfera de Sybelle para fora de meu sobretudo e segurei-a nas duas mãos.

— Achei que fosse uma boa oportunidade para testar a invenção de Gaspar. – ruborizei.

— E também achou que fosse uma boa oportunidade para morrer? – ele rangeu os dentes.

Encolhi os ombros e varri o chão branco com os olhos, constrangido.

— Mas… – ergui as sobrancelhas como se algo se clareasse em minha mente. – Descobri algo sobre os demônios. Eles usam roupas.

Dante piscou lentamente, parecendo não acreditar no que Sybelle escreveu. Ele soltou minha gola, derrubando-me na neve fria e fazendo-me soltar um chiado de descontentamento.

— Deixa eu adivinhar, você é do tipo que quer proteger as outras pessoas mesmo sem saber se proteger? – o exorcista enrolou sua corrente no cinto.

— Não.

Sim.

Levantei-me e bati as mãos na roupa para retirar os pequenos flocos. Eu sabia que não era o mais forte, não passava de 1,64cm de altura e tinha um certo medo de tempestades, mas eu ainda era alguma coisa. Podia sempre contar com meus apetrechos e meu ótimo improviso.

Talvez as palavras de Efebeth Fanning na plataforma tivessem me afetado mais do que deveriam. Apenas não sabia se era a parte dos exploradores não saberem se defender sozinhos ou sobre dançarmos na cova dos exorcistas. Talvez as duas.

— Vamos voltar para o trem. – suspirei decepcionado.

— Esquece. – Dante negou com a cabeça. – Parece que aconteceu alguma coisa com os trilhos. – apontou para algum lugar que não enxerguei. 

— E que mal tem em esperar até darem um jeito? – senti meus dentes tremerem. – Pelo menos, lá dentro está mais quente do que aqui fora.

— Tenho de fazer um exorcismo ao pôr-do-sol de amanhã, não chegaremos a tempo. – ele caminhou até o barranco pelo qual escorreguei.

Conferi se todas as coisas estavam no lugar, olhei uma última vez para o corpo sem vida do demônio e subi pelo barranco de maneira desajeitada, tendo que usar os joelhos e mãos como apoio.

— E o que vai fazer? – indaguei.

— Pegar minha bolsa e ir andando. – respondeu duramente. – A casa que preciso visitar fica na primeira vila de Terras Brancas. São a poucos quilômetros daqui. 

— O quê?! Não pode fazer isso! Vai congelar no caminho. – arregalei os olhos, incrédulo.

Paramos ao chegarmos em frente à porta do vagão que havíamos passado.  Dante colocou-se diante de mim e fitou-me com a boca torcida, pouco importando-se com o vento que raspava as laterais de nossos rostos e deixava nossa pele vermelha e rachada.

— Qual o lema da guilda? – ele abaixou a cabeça até ficar na minha altura e ser capaz de olhar-me no fundo dos olhos.

Não importava se você era explorador, inventor, exorcista ou mago, havia apenas um lema a seguir na Guilda de Hibisc: “arriscamos nossas vidas para salvar as dos outros”. Era isso que fazia as engrenagens do mundo girarem. Pressionei os lábios e franzi as sobrancelhas. 

— E já que gosta tanto de colocar sua vida em jogo, você vai comigo, afinal, precisa cumprir sua parte do trato. – Dante abriu a porta do vagão e desapareceu de minha vista.

 

***

 

“E foi isso que aconteceu, Gaspar. O cara que achei para ser meu exorcista me fez andar quilômetros na neve naquele frio insuportável. Eu não estou arrependido das minhas escolhas de vida (ainda), mas estou começando a repensá-las."

Esse era o protótipo da carta que eu enviaria a Gaspar. Já o imaginava rindo em frente a lareira de nossa sala repleta de ferramentas e fuligem enquanto dizia como eu era cabeça de vento para sua gata obesa de pelo cinza, Alicat.

Dei grandes passos na neve, tentando alcançar Dante e fazendo força para retirar os pés quando eles afundavam na camada gélida. Apesar de usar um poncho com capuz e um cachecol por cima do sobretudo, sentia que ia virar uma estátua de gelo a qualquer segundo.

Ofeguei, vendo uma fumaça branca sair de minha boca. Os meus dedos congelavam dentro das luvas úmidas e meu nariz escorria sem parar.

Olhei para trás, enxergando nada mais que uma imensidão branca. Seguimos o caminho pelos trilhos do trem, porém, a locomotiva havia sumido de nossas vistas fazia algum tempo.

— Quando é que vamos chegar? – minha voz saiu anasalada.

Além de um cajado de madeira, Dante também segurava Sybelle em suas mãos. Ele parou por um instante, fazendo sua enorme bolsa de couro escuro balançar em seus ombros.

Parei também e apertei a alça da maleta, sentindo seu peso.

— Se conseguir andar até ali, chegamos. – Dante indicou um lugar ao longe.

Semicerrei os olhos para assimilar as formas no escuro. Havia diversos pontinhos alaranjados e luminosos que contornavam casas de madeira cobertas de neve. Meus lábios tremeram em um sorriso e soltei um suspiro de alívio.

Desviamos da linha do trem e passamos por uma placa de madeira na entrada, cujo nome entalhado dizia “1º Vilarejo das Terras Brancas: Olpo”. O cansaço deixou meu corpo e deu espaço a empolgação.

Ninguém entendia por que a neve se acumulava ali e respeitava o limite de outras terras. Diziam que aquele lugar era uma dádiva do deus do inverno para que se lembrassem dele o ano inteiro e que quem fosse corajoso o suficiente para morar em seus domínios, poderia confiar sempre em sua bênção.

Joguei minha maleta no chão e peguei meu caderno, desenhando rapidamente a placa em minha frente. Durante o tempo em que me entreti com meu desenho, Dante adentrou o vilarejo e se dirigiu cautelosamente a uma das primeiras casas.

Fechei o caderno e guardei-o dentro do sobretudo, reparando no tamanho médio da casa e em suas paredes de tábuas de três cores. A luz alaranjada ultrapassava a pequena e embaçada janela de vidro e a neve caía das pontas do telhado, espatifando-se no chão.

Dante respirou fundo, abaixou o capuz de sua capa e bateu três vezes na porta. Também abaixei meu capuz e coloquei-me atrás do exorcista, um pouco inquieto e ansioso por finalmente estar nas Terras Brancas. 

— Suichiro, sua fada irá escrever o que essa família disser também? – ele perguntou analisando a esfera em sua mão. 

Sybelle esfregava seus bracinhos e batia os dentes. Sabia que ela sentia frio, pois sua cor vibrante havia acinzentado um pouco.

— Coloque-a no bolso do sobretudo, ela precisa se aquecer. – mostrei. – Sybelle, você sabe o que fazer, não é?

Antes de ir parar dentro do bolso de Dante, Sybelle mostrou-me a língua e pressionou suas bochechas com os polegares, fazendo uma careta.

A porta abriu-se em um rangido e o ar abafado do interior da casa bateu em nossos rostos. Uma mulher de cabelos pretos presos em um coque havia colocado a cabeça para fora e nos lançado um olhar sério.

— Vulpecula, exorcista da Guilda de Hibisc. – ele apresentou-se e fez um breve aceno com a cabeça.

— E quem é o outro? – ela segurou a maçaneta de maneira hesitante.

Endireitei minha postura ao ver que ela falava comigo.

— Whitlock, explorador da Guilda de Hibisc. – curvei-me levemente.

A mulher analisou-nos por um instante, mas por fim nos deixou entrar, fechando a porta com certa pressa assim que passamos. Ela uniu as mãos em formato de concha e assoprou-as.

Era um lugar particularmente simples, formado apenas por uma mesa redonda de madeira com quatro cadeiras e uma porta fechada escondida ao fundo. Havia também uma lareira que fazia um caldeirão preto fumegar e duas garotinhas ocupavam-se em mexer a colher de pau dentro do líquido marrom e cutucar a lenha com um espeto de ferro.

— A senhora é Helga North? – Dante não se dava o trabalho de olhar ao redor, mantinha sua concentração apenas na mulher.

— Sim, fui eu quem lhe contrat... – ela parou de falar ao reparar nas palavras douradas que vinham surgindo no ar.

— Está tudo bem. – ri sem jeito. – Minha fada está escrevendo o que você diz. – indiquei os ouvidos de Dante.

— Certo. – ela assentiu lentamente. – Aquelas são minhas filhas, Úrsula e Leona. – gesticulou para as garotas.

Úrsula era alta e possuía longos cabelos pretos e ondulados, já Leona era baixa e seus cabelos lisos pareciam ter sido cortados recentemente. Ambas usavam blusas e calças de cor bege com pelos cinzentos nas barras.

— E o paciente é seu marido. – o rapaz confirmou.

Helga engoliu em seco, concordou devagar e olhou de soslaio para a porta do fundo. Ela suspirou apreensiva e colocou a mão no peito.

— O exorcismo é amanhã ao pôr-do-sol? – Helga arrumou as mechas de cabelo que escapavam de seu coque. – Já têm onde ficar até lá? – olhou de Dante para mim.

Balancei a cabeça negativamente e arrepiei-me só de lembrar que teria de enfrentar o frio novamente para encontrar um lugar para dormir. Já havia me acostumado com o ar morno da casinha e desejava deitar-me perto da lareira e dormir até meu próximo aniversário. Só ao parar de andar foi que percebi o quão fracas minhas pernas estavam.

— Podem dormir aqui se quiserem. – Helga ofereceu. – Vocês ficam aqui na cozinha, apenas não entrem naquele quarto. Eu e as meninas estamos dormindo na casa da minha irmã desde que… – abaixou o tom de voz.

— Não se preocupe, darei um jeito nisso. – Dante afirmou determinado. 

Oscilei entre encarar as costas de Dante, o rosto de Helga e a porta com marcas de arranhão. As meninas pararam suas tarefas por um instante para prestar atenção em nossa conversa, os pequenos olhos pretos e brilhantes movendo-se como os meus.

— Obrigada. – a mulher sussurrou um tanto perdida.

Helga mandou Úrsula e Leona nos servirem um pouco de caldo de peixe e sentarem-se à mesa conosco enquanto ela ia para o quarto dos fundos com uma tigela fumegante.

— Ela foi dar comida para o papai. – Leona pescou um rabo de peixe em seu caldo. – Mas ele não come. Apenas dorme.

— E quando não está dormindo, grita… Muito. – Úrsula encolheu-se na cadeira e soltou um suspiro de decepção.

Ao ouvir isso, abaixei a cabeça e encarei o reflexo da luz em meu caldo marrom, remexendo-o com a colher e encontrando uma cabeça de peixe. Era extremamente salgado e tinha espinhas a cada colherada.

— Não deve usar luvas ao comer. – Úrsula chamou minha atenção.

Reparei nas luvas brancas em minhas mãos, uma segurando a colher de madeira e a outra descansando na coxa. Dante fechou suavemente os olhos e retirou suas luvas pretas, voltando a comer de maneira tão refinada que eu me senti mal por ter julgado o caldo.

Retirei a luva da mão esquerda e peguei a colher novamente, pronto para fazer minha melhor expressão de quem sabia o que estava apreciando. 

— As duas. – a mais baixa balançou suas próprias mãos.

Respirei fundo e tirei a luva de minha mão direita. Úrsula e Leona arregalaram os olhos simultaneamente e abriram as bocas, mostrando alguns pedaços mal mastigados de peixe.

— Sua mão… – Leona falou abobada.

Virei-a para cima e para baixo e fechei os dedos, produzindo um pequeno ruído. As juntas eram vazadas e havia algumas fendas rasas e decorativas nas costas.

— Mão de aço. – sorri e acenei. 


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Notas finais do capítulo

O que podemos esperar desses dois nas Terras Brancas? Comentem o que acharam ♥

E boa sorte aos que farão o ENEM esse final de semana, relaxem que vocês conseguem!

Até semana que vem.
Beijos.
—Creeper.