Confissão da meia-noite escrita por Mermaid Queen


Capítulo 2
Gula


Notas iniciais do capítulo

to nomeando os capítulos com os pecados capitais, então pensando em só fazer 8 capitulos numa historia curtinha



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Meu trabalho não era muito legal, nem muito exaustivo, nem muito chato, e era por isso que eu não gostava. Mas pelo menos me dava tempo para pensar.

Eu só pensava em quando eu poderia voltar à igreja. Se alguém no Tinder me perguntasse qual era o meu lugar preferido no mundo, acho que eu teria que responder “Abadia do Santo Redentor”.

Se alguém tentasse me levar ao Ibirapuera, eu só concordaria porque era perto da Abadia do Santo Redentor.

Se a minha mãe aparecesse em São Paulo querendo ir a alguma igreja, eu a levaria na Abadia do Santo Redentor.

E acima de tudo, meu melhor amigo de todos agora era o Gabriel, embora ele não tivesse concorrência, porque ele tinha me apresentado a Abadia do Santo Redentor.

Até me deu vontade de ler a bíblia, mas passou rápido.

Apesar da monotonia, eu gostava de ficar observando os clientes do café. Alguém foi até lá e filmou um vídeo viral no Tiktok sobre dicas de lugares para comer, e agora o café ficava lotado de gente de todo tipo.

Tinha as pessoas normais que iam lá para comer mesmo. Havia as crianças que iam com as mães depois da escola. Tinha o bonitão do café, e os idosos. Eu gostava dos idosos. Muitos jovens foram atraídos por causa do vídeo, e eu até tentei ficar bonita, mas ninguém olha de verdade para a recepcionista, então eu desisti rápido. Até que outros influenciadores digitais começaram a ir até lá para pegar carona no vídeo original.

Desde que eles não me filmassem, eu não ligava muito. Até o dia que o gigante entrou.

Arregalei os olhos imediatamente, mas a Isabela, minha colega, fez que não com a cabeça, e eu tentei disfarçar. Mas era um homem muito forte mesmo, explodindo, tão grande que fazia a cabeça dele parecer pequena. Ele atravessou o café com todos os olhares postos nele, vindo diretamente na minha direção.

Até que ele estendeu o braço e começou a filmar a própria cara, e eu revirei os olhos.

— Continuando essa maratona de comer dez mil calorias em um dia! – exclamou ele, sorrindo, e virou a câmera para filmar nós dois juntos. – Deixa eu ver o cardápio, moça, mas acho que vou querer tudo!

Como eu disse, realmente não me importava que fizessem gracinha no meu trabalho, só não gostava que me filmassem. Mas se ele ia levar tudo, ele podia filmar até a minha mãe. Sorri para a câmera.

Quando a Isabela começou a levar os pedidos na mesa dele, fiquei só olhando a quantidade de louça que alguém ia ter que lavar. O monstro podia quebrar aquele café inteiro só com as duas mãos, mas tudo que ele queria era tomar banho de milk-shake e falar sorrindo para a câmera. Achei legal.

Enquanto eu anotava pedidos e me distraía com o monstro, a Isabela me cutucou para me tirar do transe e apontar que o bonitão do café estava chegando. Suspirei.

Ele estava sempre com uma camisa social de cor escura, com os dois botões mais altos abertos, pedia um café expresso, às vezes com pão de queijo, às vezes uma baguete, e quando ele queria ousar, pedia uma fatia de bolo. E ia se sentar na área externa com plantas, onde era fresco, para escrever qualquer coisa no notebook dele.

Provavelmente alguma coisa inteligente e profunda.

Terminei de anotar o pedido dele e voltei a me apoiar sobre o cotovelo quando ele se afastou. Mais tarde, depois de o monstro ter batido as dez mil calorias, o bonitão ter ido embora e eu ter ajudado a Isabela a limpar as mesas, despedi-me dela e saí do café quase aos saltos.

Já estava escuro, mas eu até perdi o medo de andar na rua à noite agora que eu jogava no time de Jesus. Brincadeira, dava medo sim. Mas quando avistei a origem do meu prazer totalmente culposo, relaxei.

Não sabia se mais alguém iria tentar se confessar à noite, não sabia quanta gente tinha noção de que não havia mais um padre depois das oito, mas eu passara o dia todo completamente obcecada pela confissão da noite anterior. Eu só queria mais. Havia sido completamente fascinante ser parte da vida de um estranho por alguns minutos. Dessa vez eu daria conselhos melhores. E escolheria um número de ave marias e pai nossos para a pessoa rezar.

Quando adentrei a igreja, novamente, estava vazia. Não vi nem o outro zelador, o que foi ótimo, porque fiquei com medo dele começar a desconfiar e me expulsar.

Fui andando rente às velas que ficavam num canto, meio abaixando a cabeça, que nem eu vi uma mulher fazer num filme. Quando cheguei à parte não iluminada, caminhei imersa pelas sombras e me ajeitei no confessionário.

Eu tinha que controlar aquela ansiedade. Mas também não estava nem aí. Se não aparecesse ninguém eu ia continuar voltando. Será que eu deveria contar para o Gabriel?

Não, ele ia me matar.

Bom, talvez eu contasse, se não desse em nada. Se fosse coisa de uma vez só. Eu estava falando como se eu tivesse usado crack, eu sei. Ou aberto um túmulo. Sei lá.

O barulho da porta rangendo fez eu me paralisar.

— Eu pequei, padre. De novo. Se tiver alguém aí.

Puta que pariu. Eu queria dar uns gritinhos. Era o bonitão do café. Eu tinha certeza que era. Eu poderia reconhecer aquela voz em qualquer lugar. Nossa, não dava para acreditar que o bonitão do café tinha ido parar justo no meu confessionário. Desculpa, Senhor, por isso do meu confessionário, e pelo puta que pariu. E desculpa de novo por esse último.

Depois de me acertar com Deus pelos meus pequenos deslizes, pigarreei um pouco mais alto para o meu amor saber que não estava falando sozinho. Ninguém bonito daquele jeito devia se sentir solitário, sabe?

— Não costuma ficar ninguém à noite – ele falou, com a voz monótona. Como se não se importasse de falar sozinho. Tinha uma energia meio de Romeu. – Mas eu cedi à tentação. Há algumas semanas que venho cedendo, e por isso vim tentar fortalecer a minha fé.

Fiquei esperando, ansiosa, pela tentação. Aquilo ela doloroso para ele, pelo jeito que ele falava. O bonitão estava em sofrimento de verdade.

— Eu estive sóbrio pelos últimos 7 anos, padre. Quase me matei na bebida, acordava em lugares desconhecidos, me afastei da minha família, e por isso parei. Mas venho aguentando um problema no trabalho há um tempo, e voltei a ceder. Eu me envergonho. Não consigo me controlar.

E então silêncio. Eu estava chocada. O bonitão do café era alcóolatra, então. Parecia tão errado que eu estivesse ouvindo, mas eu não conseguia evitar. Tentei me concentrar para fazer uma voz decente. Pelo menos ele não conhecia a minha voz, porque tudo que eu dizia a ele era “boa noite” e “obrigada”.

— Você fez bem – disse eu. — Deve procurar ao Senhor nos momentos de fraqueza. Ele o escutará.

— Estou falando com um adolescente?

Belo trabalho que eu tinha feito com a voz. Será que ficaria forçado se eu chamasse ele de ovelha? Tipo, porque Jesus era um pastor? Acho que sim. Eu precisava de mais credibilidade.

— Tenho estiramento de cordas vocais, senhor – falei, querendo rir. – Afina a voz.

Pude ouvi-lo inspirando, surpreso.

— Eu sinto muito mesmo, padre – disse o bonitão. – Desculpe se eu o ofendi. Qual é a minha penitência?

— Pode rezar dez pai nossos e dez ave marias – falei, com a maior paz de Cristo. – Mas o mais importante é que você se sinta perdoado. O Senhor olha por nós, jovem, e conhece as nossas lutas. E nos ajuda a lutar contra a tentação. Fique em paz.

Estava me sentindo o maior guru de araque, mas quando vi o bonitão ajoelhado e rezando com as lágrimas no rosto refletindo o brilho das velas, fiquei achando que meu trabalho ali estava totalmente feito. Eu era uma ótima conselheira espiritual, pelo visto.

E se ele voltasse, eu com certeza estaria lá para aconselhá-lo de novo. E também podia confortá-lo quando e onde ele quisesse, pode ter certeza.

Fui obrigada a interromper a minha afobação quando outra pessoa entrou no confessionário. O que era aquilo, Natal?

Fiquei calmamente ouvindo, dessa vez um homem que se confessava regularmente havia 30 anos. Pequenas coisas, como ter sido grosseiro com um vendedor de telemarketing de internet, ter recusado as ligações dos presídios de São Paulo, ter mentido para o neto que não poderia almoçar com ele quando na verdade ele só não queria…

Resolvi dar um desconto para o velho, e dei para ele três ave marias e três pai nossos como penitência.

Não apareceu mais ninguém, e decidi que era hora de ir embora. Já devia estar tarde, e eu ainda tinha que acordar cedo no dia seguinte.

Enquanto caminhava para casa, eu só conseguia pensar no bonitão. Deus odeia o pecado mas ama mesmo o pecador.


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Notas finais do capítulo

uma vibe meio fleabag



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