Conte as Estrelas escrita por Matheus Braga


Capítulo 7
Capítulo 5




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O cérebro humano é provavelmente a entidade mais complexa conhecida pelo homem. No entanto, é complexo demais para ser interpretado por si próprio. Sentimentos, anseios, confusões, todas as informações e estímulos que sobem e descem pelo sistema nervoso e são processadas em diferentes zonas encefálicas podem até ser explicadas em palavras eloquentes pelos bons dicionários e enciclopédias médicas, mas jamais poderão ser definidas na totalidade de sua essência.

Nicolas não entendeu bem o porquê dessa bonita filosofia “youtubiana” cruzar sua mente como o letreiro de um ônibus coletivo, mas foi obrigado a concordar com o pensamento invasivo. Sua mente estava, na mais otimista das hipóteses, uma confusão total. E olhando em retrocesso, ele não sabia dizer exatamente desde quando. Ele sentia que toda sua vida havia sido um enorme acúmulo de tensão, frustração e mais uma infinidade de sentimentos ruins que, agora, resolvera explodir de forma catastrófica, como um vulcão adormecido tirado de um longo período de hibernação lançando cinzas, rochas e fogo furiosamente em direção aos céus. Mas o que estava sendo lançado ao ar em destroços, neste caso, era o psicológico do rapaz.

Forçando-se a dar uma interpretação lógica às suas próprias consternações, Nicolas deixou seu cérebro esmiuçar cuidadosamente toda aquela massa disforme de sensações na esperança de encontrar uma direção a seguir na busca por respostas.

Começou com a relação conflituosa que sempre tivera com seu pai. Podia mesmo chamá-lo assim? Leonel sempre fora ausente, se envolvendo minimamente em praticamente qualquer coisa que envolvesse o filho, mas o jovem quase sempre guardava seu ressentimento para si mesmo. Havia feito bem? Ou devia ter se expressado em voz alta quando teve a chance? O empresário sempre havia sido dedicado ao extremo com seus negócios. A cada novo contrato assinado Leonel parecia vender seu corpo e sua alma ao cliente, e quase nunca parecia perceber qualquer outra coisa acontecendo fora de seu universo profissional.

O que levava a mais questionamentos. O empresário sempre se dedicara com afinco ao trabalho, mas de uns tempos para cá a coisa parecia estar piorando. Passava vários dias fora de casa, dormia em hotéis mesmo estando na cidade, e deixou totalmente de falar sobre negócios em casa. Algum cliente obscuro? Um bandido? Ou político corrupto? Alguma dívida sendo cobrada? Por quê tanto segredo?

Havia ficado ainda mais evidente na noite anterior, quando Leonel enviara as mensagens para o filho pedindo a ele que voltasse para casa. Ele nunca havia feito isso. Por quê logo agora? Como não poderia ser diferente, ele passara mais uma noite fora. E Nicolas nem se dignara a perguntar o motivo. Deveria ter feito isso?

A coisa ficou ainda mais estranha no dia seguinte, quando o motorista apareceu de surpresa na festa na casa do João. Nicolas não havia dito a ele onde estava. Como ele sabia exatamente onde procurá-lo? E a postura dele estava diferente. Ele havia ido da elegância costumeira a uma obstinação que o jovem nunca havia visto antes. Por quê?

E havia finalizado com aquela perseguição cinematográfica da qual havia participado. Desde quando seu motorista dirigia como um piloto de fuga? Por que ele havia sido orientado a levá-lo para um “local seguro”? E o ápice daquela tragédia havia sido o assassinato de seu pai. A sangue frio, sem explicações, de forma absurda. Por quê? Por quem?

Ainda havia muitas perguntas a serem feitas e ainda mais respostas a serem obtidas, mas pela primeira vez Nicolas pôde dar nomes aos sentimentos que se acumulavam sobre ele. Começou com a confusão propriamente dita, depois passou para o desespero, depois para a aflição, depois para o choque, voltou à aflição, até que, agora que tudo estava se encaixando no devido lugar, entrava em cena uma profunda sensação de perda somada a uma indignação tão grande que o fazia tremer.

E esta indignação, de uma forma um tanto inexplicável, o tirara de seu torpor, queimando suas entranhas como gasolina aditivada. Ainda se sentia desorientado e seu corpo não respondia muito bem, mas levantara-se do sofá, engolira as lágrimas teimosas e caminhara até a cozinha, onde seu motorista estava ocupado com o preparo do jantar. Nicolas precisava saber mais. Precisava saber o motivo de tantos segredos por parte de seu pai. Quem havia os perseguido, matado Leonel e tentara matá-los também.

E quem seu motorista era de verdade. Sim, isso também estava na lista. O motorista pacato e até um tanto suave havia mostrado skills dignas de um dublê e, em alguns poucos momentos, um olhar frio e calculista. Havia algo mais por trás de toda aquela polidez e dos bonitos ternos que ele usava.

Nicolas desconcertou-se um pouco ao dizer em voz alta que não se lembrava do nome do outro, mas ele apenas suspirara e devolvera uma resposta simples.

— Marco Severo. Mas pode me chamar só de Marco.

Pronto. Talvez o maior constrangimento do rapaz havia sido superado. Sentindo aquela indignação voltando a ferver dentro de si e os olhos se enchendo de lágrimas outra vez, Nicolas empertigou-se e lançou sem rodeios:

— Tudo bem. Então por favor, Marco. – Ele deu ênfase ao nome do outro numa insinuação clara de que não aceitaria rodeios como resposta – Me conte o que acabou de acontecer. Eu tenho o direito de saber.

O motorista piscou e até recuou alguns centímetros, como se tivesse sido atingido por uma pancada. Ele abriu a boca para responder, mas sua voz falhou. Ele estava visivelmente escolhendo as palavras antes de colocá-las para fora. Nicolas ergueu a sobrancelha esquerda num ato desafiador.

— Não precisa aliviar. – Ele emendou – Quero saber a verdade.

Marco fechou a boca e soltou o ar lentamente pelo nariz, contrafeito.

— Ok. – Ele concordou, desviando os olhos para um canto – Eu não sei muito mais do que já te contei até agora, na verdade. Não sei nem por onde começar.

— Pelo início. – A voz de Nicolas saiu mais ríspida do que ele pretendera, mas aquele não era o momento para pedir desculpas.

O motorista o encarou, semicerrando os olhos. Parecia intrigado com a súbita mudança de atitude do rapaz, mas não iria questioná-lo.

— Seu pai nunca entrou em detalhes comigo sobre os negócios dele. – Ele se pôs a falar – Nunca mencionou nomes, nem lugares, nem datas, nem nada de muito relevante. Ultimamente, no entanto, ele vinha dizendo que estava trabalhando em uma “colaboração sem precedentes”, como eu o ouvi falar algumas vezes ao telefone, e visitava o aeroporto de Confins pelo menos uma vez por semana. Sempre acreditei que ele estivesse envolvido com algum projeto referente à expansão do terminal de passageiros, mas agora não tenho tanta certeza. – Ele falara a última parte mais para si mesmo do que para Nicolas.

Percebendo a expressão no rosto do outro, Marco prosseguiu:

— Seu pai me orientava constantemente a cuidar de você. Não fazer muitas perguntas, mas estar sempre atento aos seus horários, aos locais que você frequenta e, se possível, até às pessoas com quem você convive. Eu nunca entendi bem, mas ele sempre parecia estar com medo de que algo acontecesse a vocês. Quer dizer, ele disfarçava muito bem, mas...

— Mas como você sabia? – Nicolas disparou, erguendo o maxilar num gesto de desafio – Marco, eu não te disse para onde ia hoje à tarde, mas você me buscou exatamente onde eu estava sem sequer me ligar ou mandar mensagem. Praticamente me arrancou de lá como se fosse um policial dizendo que me levaria para um “local seguro”. Saiu dirigindo aquele carro como se tivesse encarnado o próprio Dominic Toretto e despistou aqueles jipes que nos perseguiam de um jeito que eu só havia visto em séries da Netflix. – Ele uniu os dedos diante do rosto e deu a devida ênfase a cada situação para que o questionamento a seguir tivesse o devido peso – Então eu preciso saber. Quem é você?

A expressão do motorista nem se alterou. Pelo desenrolar do discurso do rapaz, ele já imaginava que aquela pergunta seria feita. Recostando o corpo contra o encosto da cadeira e desabotoando os dois primeiros botões da camisa para respirar melhor, encarou os olhos escuros de Nicolas e respondeu:

— Eu sou ex-agente da ABIN. – A voz dele saiu subitamente mais grave e cautelosa – Eu atuava na área de Proteção lidando com questões geopolíticas, ameaças terroristas e alguns episódios de espionagem estrangeira. Depois que eu saí, fui contratado como motorista por seu pai justamente devido às minhas habilidades como militar.

Nicolas sentiu seu corpo murchar na cadeira. Ele teve a nítida sensação de que uma enorme peça havia sido encaixada naquele confuso quebra-cabeças mas ainda não elucidava questões maiores, como o segredo que seu pai mantinha sobre seus negócios mais recentes, o motivo de ele ter contratado um ex-agente da agência de espionagem brasileira como motorista do próprio filho e o motivo de alguém querê-los mortos.

A confusão estava voltando, e junto com ela estava vindo uma tristeza pesada. O rapaz sentiu uma onda sufocante subindo por seu corpo, seus olhos já sinalizando que em breve transbordariam em torrentes, e seu queixo começou a tremer outra vez. Estava começando a perder o controle sobre si próprio quando uma vozinha gritou dos confins de seu cérebro que ele já tinha o suficiente por aquela noite. Ele precisava agora era de um tempo sozinho, apenas para chorar e deixar toda a toxicidade sentimental que lhe afligia naquele momento ir embora junto com as lágrimas. Levantando-se de súbito, virou-se e correu para um dos quartos sem dizer nada, fechando a porta atrás de si com um estrondo.

Marco apenas observou. Aquela conversa com Nicolas havia o deixado mais desnorteado do que a perseguição de momentos antes. Desde quando o jovem tinha essa atitude tão... intensa? O motorista conseguiu perceber uma força e uma determinação incríveis por baixo de toda aquela marafunda sentimental e daquele ar antipático típico dos pré-adultos na casa dos 20 anos. Uma força que talvez nem Nicolas mesmo soubesse que tinha.

Ao mesmo tempo, sentiu-se um pouco mal pelo rapaz. Tão jovem e já submetido a um trauma tão grande. Ninguém merecia passar por isso. E estar ali, acompanhando aquilo de perto, dava ainda mais peso à situação. Olhar nos olhos escuros de Nicolas e vê-los vermelhos e marejados era algo desestruturante. Por um instante ficou tentado inclusive a abraçá-lo e acalentá-lo, mas acabou se contendo. Será que deveria...?

Chega.

O motorista se obrigou a parar de pensar sobre isso. Aquela noite já havia sido bizarra o suficiente, e uma pesada carga sentimental havia sido trazida à tona. Ele não podia virar a madrugada enfiando ainda mais caraminholas na cabeça, pois sabia que assim que a adrenalina baixasse ele precisaria pensar nos próximos passos a seguir. Tantos os seus quanto os de Nicolas.

Balançando-a de um lado para o outro, levantou-se e voltou até a o fogão, servindo-se de um generoso prato de macarrão. Nada melhor do que uma boa refeição para distrair corpo e mente.

 

—X—X—X—

 

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>> Trailhawk-PortCom7 [GMT -3 | 22:24:36]: Hawk Sete para Cygnus.

 

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>> Cygnus-PortCom1 [GMT -3 | 22:26:02]: Prossiga.

>> Trailhawk-PortCom7 [GMT -3 | 22:26:55]: Delphinus foi neutralizado conforme planejado, mas Beta conseguiu escapar. Perdemos o Hawk Dois-Dois. Evidências devidamente destruídas.

>> Cygnus-PortCom1 [GMT -3 | 22:28:13]: Houve testemunhas?

>> Trailhawk-PortCom7 [GMT -3 | 22:29:41]: Não, mas Beta estava acompanhado pelo motorista em um sedã cinza. Eles nos despistaram e ainda não conseguimos rastreá-los.

>> Cygnus-PortCom1 [GMT -3 | 22:30:29]: Então se apressem! Novas movimentações estão sendo detectadas em toda a região Sudeste e precisamos finalizar os testes de sincronização do Prima com o Night Fury para colocá-los logo em operação. Não podemos correr nenhum risco de vazamento até lá.

>> Trailhawk-PortCom7 [GMT -3 | 22:32:07]: Estamos monitorando os locais que imaginamos que Beta possa frequentar. Vamos te comunicar assim que tivermos novidades.

>> Cygnus-PortCom1 [GMT -3 | 22:33:05]: Ótimo. Quando neutralizarem Beta, retornem para CNFA o mais rápido possível.

 

End transmission


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