Conte as Estrelas escrita por Matheus Braga


Capítulo 6
Capítulo 4




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Foi impossível determinar a quantidade tiros disparados. Estampidos altos e secos ecoaram pela noite escura, sobrepondo-se uns aos outros, e tudo que Nicolas conseguiu fazer foi cobrir os ouvidos e abaixar-se entre o banco e o painel do sedã. Parecia estar ouvindo uma queima de fogos de artifício diabólica, destrutiva, cujo som atroador ecoava entre o muro da refinaria e as serras que circundavam o local como explosões infinitas. O motorista, ao lado, congelou-se momentaneamente de pura estupefação.

Foram cinco ou seis segundos que pareceram durar uma eternidade, e logo seguiu-se um silêncio profundo. Tirando a mão de cima dos ouvidos e arriscando um olhar por cima do painel com a respiração pesada, o cenário que Nicolas vislumbrou era terrível demais para ser colocado em palavras. O corpo dilacerado de Leonel estava recostado contra a lataria do SUV preto, caído sentado junto à roda traseira e com os olhos ainda abertos, e os seguranças estavam esparramados pelo asfalto como sacos de batata em trapos.

Uma sensação sufocante subiu pela garganta do rapaz, como se cristais de gelo pontiagudo engolfassem seu esôfago e se acumulassem em sua traquéia. O ar lhe faltou nos pulmões, os olhos marejaram e um filme perturbador começou a passar por sua mente. O mundo parecia estar girando fora do eixo, nada mais parecia fazer sentindo, e a única reação que seu corpo esboçou foi um miado baixinho:

— Pai...

O grito de alarme do motorista veio logo na sequência.

— Puta merda!

Os homens que haviam saído do Jeep Renegade apontavam todas as armas para o Opirus. Com reflexos rápidos e precisos como os de um felino, o motorista engatou a ré e afundou o pé no acelerador. O motor rugiu alto e o veículo arrancou depressa. Viram os homens abaixando os fuzis com visível frustração e sentiram o carro ganhar embalo, mas logo houve um baque surdo e o sedã parou de repente, Nicolas e o motorista tendo os corpos jogados contra os bancos. O ruído quebradiço de vidro estilhaçado e lataria amassada preencheu o ar por alguns instantes, e logo se deram conta de que haviam batido em algo.

Massageando o pescoço e virando-se para trás, o motorista perdeu toda a cor do rosto. Iluminada pela luz vermelha da única lanterna que ainda se mantinha acesa após a colisão, a frente de um segundo Jeep Renegade estava colada à traseira do Opirus como uma caveira espectral a assombrá-lo. O SUV havia se aproximado com os faróis apagados e não havia sido notado até então.

Nicolas começou a ofegar. Aquilo não podia ser real. Estavam dentro de algum filme, ou estava sob efeito de alguma droga, qualquer coisa, mas aquilo definitivamente não era real. Sentiu seu corpo entrando em colapso. Sua respiração estava cada vez mais pesada, seus olhos estavam ardendo e pareciam querer transbordar em lágrimas a qualquer momento, suas mãos balançavam no ar descontroladamente como as de um boneco de posto e tudo que ele queria era sair dali. Em algum recanto obscuro de seu cérebro brotou o reflexo de abrir a porta do carro e correr para longe, mas antes mesmo que o pensamento se convertesse em atitude ele sentiu as mãos fortes do motorista segurando seus braços. Dividindo olhares rápidos entre os retrovisores e os homens à frente que já apontavam as armas para o veículo outra vez, ele disse em tom firme e autoritário:

— Fique abaixado.

E empurrou Nicolas com força para baixo, fazendo-o se encolher entre o assento e o painel. Engatando a marcha do sedã novamente, pressionou o acelerador contra o assoalho e o Opirus partiu, destracionando as rodas dianteiras e chiando alto os pneus. Os homens à frente já estavam com os fuzis em riste e prontos para atirar, mas o motorista alcançou a chave de seta do veículo e empurrou-a com força para frente, acendendo os faróis altos. A abundante luz branca que brotou dos faróis ofuscou a visão dos homens por tempo suficiente para que o sedã desviasse da primeira rajada de balas. Com um forte golpe de volante à direita, o motorista jogou o carro contra o barranco às margens da via e sentiu as rodas subindo pelo terreno acidentado, o para-choque destroçando violentamente pequenos arbustos à frente.

Estalos altos recenderam pela lataria quando uma segunda rajada de tiros atravessou o teto do veículo e foi se perder no estofamento do banco traseiro. Nicolas gritou, com os olhos apertados para não ver o que se passava. Ouviram quando mais tiros foram disparados e alguns projéteis atingiram o porta-malas, mas o sedã agora contornava o primeiro Jeep Renegade correndo em diagonal pelo barranco e algumas balas se perderam na noite. Com outro golpe de direção, o motorista alinhou o carro com a via novamente e acelerou ainda mais, exigindo toda a cavalaria do motor.

Estavam ganhando velocidade em uma descida suave e mais à frente já vislumbravam os contornos de uma rotatória, mas não demorou para que os faróis dos dois Jeeps aparecessem no retrovisor. Sabendo que precisava entrar à direita mas não podendo se dar ao luxo de reduzir sua velocidade, o motorista resolveu arriscar algo diferente. Passou direto pela entrada da rotatória e contornou-a em sentido contrário, fazendo a traseira do veículo deslizar de lado e auxiliá-lo em sua manobra.

Abaixado como estava, Nicolas apenas ouvia o rugido potente do motor, o chiado dos pneus e sentia o balançar constante da carroceria. Sua cabeça estava um turbilhão, mil e uma coisas se revirando em sua mente ao mesmo tempo como dinamites numa betoneira, e ele não conseguia pensar em nada. Queria apenas que tudo aquilo acabasse logo e ele pudesse dar um jeito de sumir.

O motorista, ao lado, estava extremamente concentrado na via à sua frente. Avaliava cada centímetro de asfalto e parecia ter entrado em algum tipo de transe, como se ele e o veículo tivessem se tornado um só. Ele executava manobras impossíveis e guiava o pesado sedã sobre aquela pavimentação horrível como se conduzisse um trem sobre trilhos, passando direto por lombadas e buracos e mal os sentindo. Os Jeeps, menores e mais ágeis, vinham se aproximando rápido, e o motorista precisava pensar em algo para se livrar deles.

Após uma descida suave à frente, ele sabia de uma forte curva à direita. Era impossível para o Opirus fazê-la a mais de 60 quilômetros por hora, e ele viu aí a sua oportunidade. Aliviando um pouco o pé no acelerador para que os Jeeps chegassem mais perto, guiou o sedã para o lado direito da via e abriu espaço para que um dos Renegade emparelhasse à esquerda. Ele ainda teve tempo de ver o homem que estava sentado no banco do passageiro do Jeep verde empunhar uma arma e tentar posicioná-la para fora da janela, mas já estava iniciando a descida e precisava frear. Pressionando o pedal com força, sentiu o ABS do Opirus segurando-o vigorosamente antes da curva enquanto o outro veículo passava direto pela cerca que margeava a via e ia se perder dentro da mata adjacente. Nicolas e o motorista ainda conseguiram ouvir um som longínquo de impacto. Era bem provável que o Jeep havia atingido alguma árvore grossa após sair da pista, e era ainda mais provável que ele não voltaria a segui-los.

Mas ainda havia o segundo Jeep. Após fazer a curva fechada, o motorista do sedã pôde acelerá-lo morro acima em direção ao bairro Recanto da Lagoa, mas o outro veículo o seguiu de perto. Em alguns momentos o pequeno SUV pareceu tentar abalroar o Opirus pela lateral do para-choque traseiro, como se quisesse fazê-lo perder o controle da direção e rodar, mas não conseguiu chegar perto o suficiente para executar a manobra.

Passaram voando pela rua principal do pequeno bairro, assustando algumas pessoas que estavam sentadas em um bar, e seguiram morro abaixo em direção à rodovia MG-040. Abaixado como estava, Nicolas sentia uma euforia cada vez maior a consumi-lo. Forçando a si mesmo a permanecer de olhos fechados, tentava adivinhar pelo balançar da carroceria do sedã e pelos sons que ouvia o que se passava à volta, mas, ao mesmo tempo, estar de olhos fechados era a brecha que seu cérebro precisava para reviver os acontecimentos perturbadores que ele havia testemunhado momentos antes. O motorista arrancando-o da festa, as mensagens estranhas do pai na noite anterior, os misteriosos Jeeps verdes surgindo do nada, o pai sendo fuzilado como em um filme... A cabeça do jovem estava em parafusos, sem saber como processar todas aquelas informações e sensações. Seu cérebro parecia queimar como se estivesse sendo fervido em óleo quente, mas um suor frio brotava da raiz de seus cabelos e corria-lhe pela fronte. Uma tremedeira estranha percorria sua espinha de cima a baixo, mas uma catatonia estranha paralisava-lhe a alma. Uma falta de ar horrível o agoniava e o fazia buscar ar como um peixe fora d’água, mas seus pulmões hiperventilavam como uma usina eólica. Ele era naquele momento uma total contradição, e só queria que aquilo tudo acabasse.

— Já sei. – A voz do motorista foi ouvida num sussurro.

Sem saber o que fazer e tentando ainda se manter – mesmo que apenas em parte – racional, Nicolas arriscou um olhar de canto para ele.

— O quê? – Sua garganta conseguiu pronunciar.

O motorista não respondeu, empertigando-se no banco e ajeitando as mãos em volta do bonito volante amadeirado. Conferindo rapidamente os retrovisores, sutilmente conduziu o Opirus para o lado esquerdo da via e deu espaço para que o Renegade emparelhasse à direita. Entretanto, o outro veículo não o fez. Provavelmente percebendo que o motorista do sedã tentaria jogá-lo para fora da via como fizera com o outro Jeep, o motorista do SUV manteve-se exatamente atrás do sedã como uma espécie de reboque indesejado.

Nicolas viu seu motorista bufando de frustração e tensão enquanto encarava o outro veículo pelo retrovisor, mas ele ainda não havia se dado por vencido. A via à frente se dividia em uma bifurcação, e o motorista vislumbrou uma nova chance de escape. Pressionando o acelerador com mais força e fazendo o Opirus ganhar ainda mais velocidade, ele foi prontamente acompanhado pelo Jeep.

E era exatamente com isso que ele estava contando.

Percebendo o SUV se aproximando ainda mais rapidamente da traseira do sedã, o motorista pisou no freio com os dois pés e segurou o volante com força. O Opirus embicou para frente, quase raspando o para-choque dianteiro no chão, e começou a perder velocidade com espantosa rapidez. Percebendo que não conseguiria frear a tempo de evitar uma colisão, o condutor do Renegade verde desviou para a direita por puro reflexo.

E entrou à direita na bifurcação.

Derrapando sobre faixas de cascalho que haviam rolado da saída de um sítio, o Jeep deslizou pela via e foi enroscar-se numa touceira de grama alta. Aproveitando a deixa, o motorista do Opirus acelerou novamente. Dobrou à esquerda e seguiu velozmente na direção da MG-040, logo sumindo da vista de seus perseguidores.

 

—X—X—X—

 

O céu fechava-se em nuvens escuras quando o sedã parou silenciosamente numa rua deserta e escura de um distrito de Mário Campos. Alcançando um pequeno controle que estava dentro do porta-luvas, o motorista abriu o portão de uma chácara e guiou o veículo propriedade adentro. Parou-o debaixo da varanda que contornava uma modesta casinha amarela e enfim desligou o motor. Nicolas permanecia encolhido entre o banco do passageiro e o painel, mas agora parecia ter entrado num estado quase catatônico.

Suspirando com uma nítida pontada de tristeza, o motorista soltou o cinto de segurança e anunciou:

— Chegamos.

Mas o rapaz não moveu um milímetro sequer. Retraído como estava, assim permaneceu. Percebendo que ele não sairia dali por esforço próprio, o motorista desceu do veículo e contornou-o, abrindo a porta e puxando Nicolas para que ele ficasse de pé.

— Venha. – Ele chamou – Vamos entrar.

O jovem não opôs resistência, mas também não fez muito esforço. Parecia ao motorista que estava conduzindo um moribundo pelo corredor de um hospital. Se bem que devido aos últimos acontecimentos, Nicolas de fato era praticamente um moribundo. Adentraram a casa e o jovem tratou de se jogar no primeiro sofá que viu pela frente, cobrindo o rosto com uma almofada. O tsunami de sentimentos confusos que revirava sua mente ainda precisava desaguar e ser devidamente interpretado.

O motorista entendeu que Nicolas precisava de um tempo apenas para si e pôs-se a avaliar o local. Era uma casa de fim de semana com apenas cinco cômodos, mas muito organizada e até mesmo elegante. A sala por onde haviam entrado era conjugada à cozinha, com um balcão simples dividindo os dois espaços, e ao lado ficavam dois quartos e o banheiro. Chegando até a janela da cozinha, percebeu um quintal arborizado se estendendo até os fundos da propriedade e lá longe, no limite do horizonte, percebeu os fachos longínquos dos faróis dos carros que transitavam pela MG-040 àquela hora da noite. O local era afastado e bastante discreto, e ele enfim pôde respirar fundo.

Seu estômago roncou. Contraindo a barriga, se deu conta de que não comia nada a várias horas e olhou em volta. A fruteira da cozinha estava vazia, mas na geladeira e nos armários ele encontrou o necessário para preparar um jantar modesto. Separando os ingredientes e deixando-os sobre a pia, foi até Nicolas.

— Vou fazer alguma coisa para comermos. – Ele disse, a meia voz – Está com fome?

O rapaz não respondeu. Estava com a respiração irregular e, apesar da almofada que lhe cobria o rosto, nitidamente lutava para não chorar. Era uma visão de cortar o coração.

— Vou fazer macarrão. – O motorista prosseguiu, sem esperar uma resposta – Se precisar de alguma coisa, me chame.

E voltou para a cozinha, tirando o paletó e a gravata e concentrando-se no preparo da refeição. Colocou a massa para ferventar numa panela com água e passou logo para o molho. Picou uma cebola em pedacinhos bem pequenos e os colocou para dourar com algumas fatias fininhas de bacon e um pouco de manteiga, acrescentando depois um talo de alho poró cortado em rodelas e uma colher de açafrão. Quando tudo já estava bem douradinho, virou a massa sobre o molho e misturou tudo, fazendo subir um cheiro gostoso de alho pelo ambiente.

Ele estava começando a se servir quando ouviu um barulho vindo do balcão. Virou-se e viu Nicolas de pé apoiado sobre a divisória do ambiente, sem parecer saber o que fazer. Depondo o prato que segurava sobre a pia, o motorista se empertigou e fez a única coisa que lhe veio à cabeça.

— Quer conversar? – Perguntou.

O rapaz balançou a cabeça de um jeito incerto. Estava visivelmente atordoado e até um tanto desligado, e o motorista sabia que seu estado de espírito não melhoraria tão cedo. O máximo que ele poderia fazer era oferecer ao mais jovem um pouco de conforto e apoio. Um ombro para chorar, talvez.

— Você... – Nicolas começou a fazer um gesto na direção dele, mas parou a mão a meia altura e ergueu os olhos embaçados – Eu...

— Pode falar, Nicolas. – O motorista caminhou até o jovem e conduziu-o até a mesa, fazendo-o se sentar e sentando-se ao lado dele – Estou aqui por você.

O rapaz pareceu um tanto desconfortável. Lágrimas rolaram pelo rosto dele e foram se perder no desenho bem feito de sua barba. O motorista afagou-lhe o ombro.

— Põe pra fora. Vai te fazer bem.

— Eu... – Nicolas enfiou as mãos entre as pernas, um gesto de total acanhamento – Eu... não lembro seu nome.

O motorista corrigiu sua postura na cadeira, de sobrancelha erguida e parecendo um tanto indignado, mas permaneceu calado e apenas suspirou. Não era o momento para fazer objeções. Nicolas precisava de amparo e de um bom ouvinte, e ele era o único disponível por ali. Inspirando fundo e massageando de leve o ombro do rapaz outra vez com a mão, apenas disse:

— Marco Severo. – Ele escolheu um tom suave e imparcial – Mas pode me chamar só de Marco.

Nicolas ergueu o corpo e encarou-o. Ele sabia que era alguma coisa com M. Mas não era isso que importava agora.

— Tudo bem. – Ele assentiu, com olhos vermelhos e lacrimejantes e contendo à força uma tremedeira no queixo – Então por favor, Marco. Me conte o que acabou de acontecer. Eu tenho o direito de saber.


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