Conte as Estrelas escrita por Matheus Braga


Capítulo 4
Capítulo 2




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A manhã estava horrorosa. As nuvens que cobriam o céu ainda não haviam se dissipado, e a claridade forte do sol da manhã que passava por elas iluminava tudo com uma irritante luz branca. Além disso, o calor se misturava à umidade do ar e deixava um mormaço medonho pairando sobre o mundo, o que era uma combinação bastante convidativa a sentar num canto escuro e esperar pela morte.

A indisposição que se abatia sobre Nicolas quando ele finalmente se levantou era impossível de ser descrita em palavras. Seu despertador havia tocado mais de vinte minutos antes e havia sido maravilhosamente arremessado contra a parede, mas não havia como diminuir a intensidade da luz que entrava pela janela. Com os olhos pesados e usando apenas sua boxer cinza e uma camiseta branca, o rapaz se arrastou até o banheiro para lavar o rosto e escovar os dentes.

Tudo parecia irritá-lo, tudo parecia incomodá-lo. A exagerada claridade branca da manhã, a sensação de secura nos olhos e na boca, a cabeça que parecia lotada com uma tonelada de algodão fofo, a fome colossal que lhe corroía o estômago, a ereção matinal que escapava da cueca e lhe cutucava o umbigo. Tudo estava horrível, ele só queria sumir. Debruçando-se sobre a pia, colocou o rosto debaixo da torneira e deixou a água fria aliviar um pouco daquelas sensações ruins. Era como sentir uma lâmina de gelo raspar em suas bochechas, mas estava funcionando. Finalmente um pouco mais desperto, desceu as escadas para o primeiro andar e procurou algo para comer.

Seus cereais estavam no lugar de sempre, lógico, mas ele de repente quis algo diferente. Procurando nos armários, achou um pacote de torradas com manteiga e o pegou, depondo-o sobre a bancada da cozinha. Na geladeira encontrou um pote de cheddar cremoso e uma garrafa de suco de laranja e pegou-os também. Ele sentia que precisava de algo mais substancial do que uma simples tigela de cereais para mantê-lo de pé naquele dia pavoroso. Nicolas logo preparou para si algumas torradas com cheddar e serviu-se de um copo de suco. Sobre a fruteira da bancada havia algumas nectarinas e ameixas bastante apetitosas, e num impulso o rapaz pegou três delas. Colocou tudo num prato e rumou para a sala, sentando-se no sofá.

Ligando a televisão, zapeou rapidamente entre os canais apenas para constatar que não havia nada de interessante sendo exibido àquela hora da manhã. Em um dos canais da HBO passava Ponte para Terabítia, outro do NatGeo mostrava algo aparentemente incrível sobre o acasalamento das baleias beluga, o jornal do SBT falava algo sobre o desvio de aeronaves no aeroporto de Confins durante a madrugada e na Rede Globo a jornalista Monalisa Perrone falava sobre a crise em algum país do Oriente Médio. Nicolas acabou deixando na Fox, que exibia uma maratona de Os Simpsons.

Ele nem prestou atenção ao desenho, na verdade. Ocupou-se apenas em comer e deixar sua cabeça preencher-se com vários nadas. Vez ou outra se pegava pensando em seu pai e nas mensagens que ele havia mandado na noite anterior, ou nos amigos da balada, ou na faculdade, ou sobre o que ele queria de fato fazer com sua vida, mas forçava-se a manter a mente vazia. Ele já sabia que os efeitos da leve ressaca que sentia seriam seus companheiros fiéis naquele dia e não aceitaria nada além deles. Já tinha certeza que passaria o dia todo com cara de fuinha e, sinceramente, não estava nem aí.

Terminando de comer as ameixas, levantou-se e foi para a cozinha para lavar o prato e o copo que havia usado. A empregada havia tirado 15 dias de férias, e ele não se importava tanto em realizar essas pequenas tarefas. Depondo os utensílios na pia e jogando fora os caroços das frutas, acabou reparando em algo. Pela grande janela da cozinha ele tinha uma bela vista de todo o quintal arborizado dos fundos da propriedade, e lá no meio algo lhe chamou a atenção.

Seu motorista estava sentado de costas para a casa num banquinho colonial bem debaixo da frondosa quaresmeira. Numa pose bastante elegante, estava de pernas cruzadas enquanto lia o jornal do dia e tomava café, e Nicolas não pôde deixar de notar o bonito terno cinza-chumbo que ele usava – exatamente da cor do Kia Opirus que ele dirigia. Estava esperando Nicolas se arrumar para levá-lo para a faculdade.

O rapaz piscou. Ele se lembrava ao menos do nome dele? Era alguma coisa com M. Márcio, Marcelo, Murilo? Lembrou-se da noite anterior e do momento em que seu motorista lhe desejou feliz aniversário, e de repente o rapaz se sentiu um pouquinho mal. A despeito de sua preguiça – ou seria antipatia mesmo? – habitual, o motorista sempre o tratara com muita educação. Mesmo ainda acreditando que era apenas por ele estar sendo pago para isso, Nicolas não pôde deixar de fazer um breve autoexame de consciência. Pensando bem, seu motorista vinha sendo provavelmente a pessoa mais presente em sua vida nos últimos tempos. E se bobear, a que o tratava melhor. Todos os dias ele lhe desejava um “bom dia”, sempre esperava pontualmente para levá-lo e buscá-lo de qualquer compromisso e sempre lhe desejava uma “boa noite” quando voltavam para casa.

Nicolas podia tentar ser um pouco mais amigável, pelo menos.

Eu estou amolecendo, ele pensou. Essa maldita crise dos vinte está me deixando sentimental.

Terminando de lavar os utensílios que havia usado, o rapaz enxugou as mãos e voltou para seu quarto. Ao final do corredor do andar de cima, percebeu a porta do quarto de seu pai aberta e notou a cama impecavelmente arrumada. Era bastante provável que Leonel houvesse passado a noite fora. Nicolas não ficou surpreso. Balançando a cabeça, entrou em seu quarto e começou a se arrumar.

Tirando a camiseta que usava e ficando apenas de cueca, demorou-se um minuto na frente de espelho. O jovem não se considerava um exemplo de beleza masculina, mas achava sua barba certinha e seu maxilar quadrado muito bonitos. Gostava de seus lábios finos e de seu topete alto, mas de uns tempos para cá vinha se achando um tanto magro. Nada que algumas aulas de natação não resolvessem. Pelo menos, ele julgava, ainda tinha o suficiente para “se manter no mercado”.

Vestiu uma camiseta cinza e calça de brim escura bem simples e calçou seus Converse brancos. Colocou seu relógio Casio prateado no pulso e vestiu uma jaqueta de jeans preto, passou um pouco de perfume no pescoço e depois enfiou os cadernos em sua mochila e conferiu as horas. Foi até o banheiro e passou um pouco de pomada no cabelo, penteando-o como de costume, e escovou os dentes na sequência.

Já arrumado, pegou sua mochila e desceu, não se surpreendendo nem um pouco ao sair pela porta e já encontrar o vistoso Kia Opirus parado ali, com o motorista de pé logo ao lado.

— Bom dia, senhor. – Ele cumprimentou-o, já abrindo a porta do sedã para que Nicolas entrasse.

O rapaz se aproximou com passos cadenciados, revivendo em sua mente os pensamentos que havia tido apenas alguns minutos antes. Deveria retribuir o cumprimento? Passar direto como sempre fazia? Ou devia...

— Sabe onde está meu pai? – A boca de Nicolas praticamente falou sozinha quando ele chegou até o veículo, e essa pergunta foi tudo que ela conseguiu formular.

Uma breve expressão de surpresa passou pelo rosto do motorista, mas ele logo se recompôs.

— O senhor Leonel passou a noite fora cuidando de negócios. – Ele respondeu – Aparentemente surgiu um imprevisto e ele passará o dia todo ausente.

Nicolas assentiu, mordendo o lábio, e adentrou o sedã. O motorista fechou a porta e contornou o carro, assumindo seu lugar ao volante e pondo o Opirus em movimento.

Qual é o nome dele, cacete?, a mente do rapaz estava berrando enquanto ele tentava se lembrar desse detalhe tão pequeno.

Acabou não se lembrando.

 

—X—X—X—

 

O dia foi pavoroso. Nicolas teve uma aula de estruturas metálicas tão tediosa que quase pulou pela janela do quarto andar, e a prova de concreto armado que veio logo em sequência não colaborou em nada para melhorar seu humor. As aulas pareciam escorrer tão vagarosamente quanto geléia na sarjeta, e ele estava louco para sair correndo.

A coisa só começou a ficar interessante perto do horário de almoço, quando uma notificação no Whatsapp chamou-lhe a atenção.

after dps da aula lá em casa, partiu??, um tal de João postou em um grupo qualquer.

Com um pequeno sorriso se formando nos cantos da boca, Nicolas respondeu:

partiu :D vai ter open?

só absolut e jose cuervo, rsrsrs, a resposta veio em poucos segundos.

Nicolas se endireitou, animado. Depois disso, ele acabou nem prestando tanta atenção ao fim da aula de normas técnicas. Ele acabou nem prestando atenção ao resto do dia, na verdade. Almoçou e passou a tarde na faculdade, como de costume, para montar as apresentações de alguns trabalhos que ainda estavam pendentes e aproveitar os poucos momentos livres para se questionar se engenharia era mesmo algo que ele queria para a vida.

Já passava das seis quando finalizou sua apresentação de slides para a próxima aula de projetos e sacou o celular do bolso, perguntando no grupo:

tem alguém subindo pra casa do João? :/

Ele logo foi respondido por alguns colegas e marcou com Natália, que morava algumas ruas abaixo da faculdade e iria para o after na casa do João com o carro do pai. Encontraram-se em um ponto de ônibus na avenida principal do bairro e partiram. Enquanto trocavam amenidades e evitavam falar sobre as aulas, Nicolas lembrou-se de mandar mensagem para seu motorista avisando que não precisaria buscá-lo. Pegou seu celular outra vez e digitou:

não vou pra casa hj, não precisa me esperar

Feito isso, jogou o aparelho dentro da mochila e tentou esquecer que ele existia, já colocando sua mente e seu corpo no modo Party.

João morava numa elegante casa de estilo modernista no bairro Mangabeiras, bem próximo à Praça do Papa, e da área de convivência no terraço onde estava rolando o after era possível enxergar praticamente toda Belo Horizonte iluminada mais abaixo. A música alta que tocava era uma mistura de pop e techno com graves bem marcados que por si só já seria capaz de alucinar os presentes, mas Nicolas percebeu logo ao chegar que algumas mãos mais ágeis já trocavam cachimbos e balinhas pelos cantos.

O desenrolar era sempre o mesmo. Fazer uma social no início, aceitar uma cerveja da mão de alguém, se enturmar numa rodinha e dançar, pegar mais cerveja, dar um trago em um beck que alguém magicamente tirava do bolso, dançar mais, beber mais, dar outro trago, beijar uma boca que se oferecia, dançar, beber, um looping contínuo de loucura e curtição.

A iluminação daquela noite estava tendendo para o vermelho. Celofanes haviam sido colocados sobre os holofotes do terraço, imergindo o ambiente numa luxuriosa dimensão escarlate que acalorava corpo e mente e deixava os presentes em um estado quase inebriante. O reverberar da música fazia fundo àquelas sensações maravilhosas e parecia funcionar como combustível para os ânimos alheios.

 

If you wanna fight

Bite your tongue before you explode

Don’t let this get out of control

You don’t want me to leave you alone

 

Nicolas estava com seus amigos de sempre, em sua rotina de sempre, tentando desligar a mente como sempre. Segurando uma Budweiser gelada com a mão esquerda, estava se atracando com uma moreninha em um canto. Segurava-a com força pelas costas enquanto a beijava e sentia as mãos dela subindo e descendo entre suas pernas. A língua dela tinha uma textura suave e um sabor doce e parecia dançar dentro da boca dele ao ritmo da música que tocava. Ele não a conhecia e sabia que depois daquela noite nunca mais a veria, mas isso não era nem de longe um problema. O que mais interessava a ele naquele momento era apenas uma boa chupada regada a cerveja.

As mãos ágeis da moça já haviam inclusive lhe alcançado o zíper da calça e brincavam com ele. Interrompendo o beijo, Nicolas recostou-se contra a parede, certificando-se de que ninguém os olhava naquele momento, e deu mais um gole em sua Bud. Fechando os olhos, apenas sentiu a bebida gelada descendo por sua garganta e aguardou. Sentiu quando a fivela de seu cinto foi solta e o botão de sua calça foi aberto. Sentia uma pulsação deliciosa começando a subir por sua virilha e...

Parou.

As carícias de repente pararam. Intrigado, o jovem abriu os olhos apenas para se deparar com uma situação extremamente improvável. A morena bonita com quem estava ficando agora estava de pé ao lado dele, estática como um poste, e olhava um tanto assustada para um homem de terno cinza que havia magicamente se materializado ali e os encarava com certa intensidade. Apesar da meia luz e da confusão de corpos que inundava o ambiente, Nicolas reconheceu-o de imediato.

— Me desculpe, senhor. – Seu motorista disse – Mas preciso que venha comigo.


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