Conte as Estrelas escrita por Matheus Braga


Capítulo 3
Capítulo 1




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A batida era quase orgásmica. O som grave do baixo reverberando pelas paredes, as luzes estroboscópicas coloridas que pareciam pulsar como entidades vivas, o álcool que parecia ter evaporado das bebidas e esquentava o ambiente. Corpos em movimentos enérgicos, balões de gás hélio voando aleatoriamente pelo local, copos erguidos no ar e línguas se digladiando em bocas pelos cantos.

 

But it’s going through my mind

That she’s always in your mind

While I keep you there in mine, oh I...

 

A atmosfera estava bastante carregada. Vapor de gelo seco, suor que brotava de corpos quentes, confetes metalizados de cores infinitas, o odor adocicado da maconha. Era um universo único e vibrante, não parecia haver realidade fora daquele recinto. Era como estar dentro de um caleidoscópio gigante, paredes de vidro girando, girando, girando, sem a menor perspectiva de parar.

 

I’m now at doubt

That heart has ever been found

So wait patiently

Don’t you come back to me?

 

Já havia virado rotina. Eram duas, três vezes por semana. Os mesmos rostos, a mesma vibe, o mesmo clima efervescente. Baseado, música alta e muita tequila. Era contagiante, acalorava por dentro, era...

Sei lá... Vazio? Fútil, talvez?

Já não era a primeira vez que Nicolas se pegava pensando nisso. Às vezes ele sentia que sua vida agora era como uma locomotiva correndo desenfreada por trilhos infinitos, parando esporadicamente em algumas estações mas logo seguindo adiante com velocidade estonteante.

Casa, faculdade, festinha, casa, faculdade, festinha, casa...

Sim, era como um trem desgovernado soltando vapor pelos cilindros, batendo os puxavantes com força enquanto se dirigia velozmente em direção a...

Exatamente! Em direção a quê?

O pensamento ecoava por seu cérebro como o próprio apito de sua locomotiva metafórica, mas apenas uma parte dele escutava. A Skol Beats que descia por sua garganta naquele momento parecia anestesiá-lo um pouco, deixá-lo leve e um tanto solto. Com os braços erguidos e vez ou outra bagunçando os próprios cabelos, Nicolas apenas deixava seu corpo instintivamente seguir o ritmo das batidas da música.

 

I’m now at doubt

That heart has ever been found

So wait patiently

Come back to me, to me

 

Um braço foi passado por seu pescoço, mas ele sequer percebeu de quem era aquele membro. Com seus amigos de costume, estava ocupado demais entre bebericar sua cerveja, dar um trago e rir alto sem razão alguma.

Ou talvez houvesse razão, ele não sabia bem.

Era seu 20º aniversário.

E apesar de já ter atingido a maioridade dois anos antes, só agora ele sentia que estava amadurecendo de fato. Reforçava esta idéia o fato de ainda não ter recebido sequer uma mensagem, ligação ou cumprimento de parabéns. Nenhuma felicitação, nenhum tapinha nas costas. Nem de sua família, nem dos amigos da escola, nem dos amigos do rolê. Mas isso vinha com a idade mesmo, não é? As pessoas vão envelhecendo e se desapegando das maçantes convenções sociais, certo?

Ele sempre havia ouvido que os “20 anos” são os melhores anos da vida de alguém, a única coisa é que ele não sabia como. Afinal, ele estava mesmo no caminho certo? Ele ainda não tinha certeza sequer das suas próprias paixões. Ele queria sair, ver o mundo, viajar o quanto pudesse e experimentar coisas novas, mas também queria se decidir por uma profissão e construir carreira, se estabelecer na vida por mérito próprio. Queria conhecer pessoas diferentes, ser popular nas redes sociais e se cercar de amigos, mas também queria seu próprio tempo para descobrir mais sobre si mesmo, interpretar melhor suas ambições e conhecer melhor suas qualidades e defeitos.

Tinha certeza absoluta que estava passando pela famosa “crise dos 20”. Sua cabeça às vezes se confundia espontaneamente com os mais variados pensamentos conflitantes, e ele sentia que hora ou outra iria gritar.

E havia um agravante a mais nessa história: seu pai. O grande Leonel Machado Galvão. O empresário, filantropo, super bem sucedido empreendedor imobiliário. Nicolas nem se lembrava de sua mãe, pois ela havia morrido quando ele ainda tinha dois anos de idade, e seu pai era sua única referência de família. Ele nunca havia sido presente de fato na vida do rapaz, sempre trabalhando, viajando e, mesmo quando estava em casa, ocupado demais com os negócios.

Sendo assim, o sentimento que se revirava dentro de Nicolas, ainda mais evidente depois dos dezoito anos, era o de que ele era uma peça solta no espaço. De que ele ainda não havia encontrado seu lugar no universo. Como uma pecinha de Lego perdida embaixo do sofá enquanto o restante do set está montado sobre o aparador da sala. E talvez essa fosse a razão pela qual ele fazia questão de se manter constantemente ocupado com várias coisas sem tanta importância: para preencher a mente e evitar dar lugar à confusão de seus pensamentos.

A música havia acabado e outra tão agitada quanto havia sido emendada na sequência, e Nicolas permaneceu imerso na vibe dançante em que estava. Dividindo os comandos racionais de seu cérebro entre continuar dançando, continuar bebericando sua Skol Beats, dar um trago ou outro no beck que passava de mão em mão e continuar flertando com o vento, ele quase não sentiu seu celular vibrando no bolso de sua calça. A batida da música era envolvente e parecia correr por suas veias como algum tipo de substância fluida, entorpecendo-o tanto quanto a maconha que ele tragava. Ao sentir o telefone tremendo, pegou-o e leu o nome na tela.

Pai.

Ele não tinha nem como atender àquela ligação. Teria de sair do bar e procurar um lugar silencioso para retornar a chamada. O pensamento mal havia acabado de se formar em sua cabeça quando uma notificação do WhatsApp apareceu no visor do celular.

onde vc tá?

A mensagem enviada pelo pai era simples, o que era um tanto estranho. Nicolas destravou a tela e digitou:

com o pessoal

Seu pai levou menos de três segundos para responder.

quero vc em casa agora.

Leonel não costumava ser esse tipo de pai. Ele não costumava ser praticamente nenhum tipo de pai, na verdade. Ele quase não perguntava a Nicolas sobre os locais que ele frequentava, ou as pessoas com quem ele saía, ou qualquer outro detalhe que a vida social do rapaz pudesse ter. Para Leonel, era suficiente perguntar ao filho se o dia havia sido bom e receber um “Tudo bem” vazio como resposta.

Nicolas se sentiu incomodado, mas de um jeito estranho. O pai nunca havia sido incisivo daquela forma com ele antes. Nem pessoalmente, nem por sinal de fumaça, muito menos por mensagem. Para isso, algo inesperado devia ter acontecido. Ele enviou:

tá tudo bem?

Ao que o pai devolveu:

depois a gente conversa. vai pra casa.

O rapaz resolveu não questionar. A estranheza inicial estava aumentando e sua cabeça estava começando a girar. As incontáveis cervejas que ele havia tomado com certeza também estavam colaborando com isso.

— Tá fffudo ok, Nick? – Uma loirinha ao lado dele apoiou-se em seu ombro, tentando ler a conversa na tela.

Ele discretamente voltou à tela principal do aplicativo.

— Está, sim. – Nicolas não conseguia lembrar o nome dela. Era Amanda ou Fernanda? – Mas tenho que ir embora.

— Aaaaah, sério? – A voz dela estava engrolada – Ainda está fffedo...

O rapaz olhou as horas no celular. Passava pouco das onze da noite. Se comparado ao horário habitual com que ele costumava chegar em casa – duas, três horas da manhã – realmente estava cedo. Mas aquele sentimento estranho ainda o inquietava, e ele não estava disposto a discutir com o pai.

— Eu realmente preciso ir. – Ele disse, depositando a garrafa de cerveja que segurava no balcão mais próximo.

Depois de se despedir rapidamente de seus amigos, caminhou para fora do bar e seguiu em direção ao elevador. Estava no 23º andar de um prédio qualquer no centro de Belo Horizonte e dali tinha uma visão magnífica da Avenida Afonso Pena ricamente iluminada logo abaixo, mas Nicolas não estava contemplativo a ponto de reparar nisso. Enquanto esperava, destravou a tela do celular outra vez, abriu o WhatsApp e clicou sobre o contato Motorista.

traz o carro

As portas do elevador logo se abriram e o jovem entrou, escorando-se na parede do fundo e fechando os olhos. Sentia a cabeça pastosa, como se tivesse enfiado cinco litros de manteiga derretida pelos ouvidos. O caleidoscópio em que ele parecia ter se enfiado até momentos atrás ainda podia ser sentido. Ele sentia os alto-falantes retumbando no último volume, os canhões de luz dançando aleatoriamente enquanto coloriam o universo com jorros luminosos, os confetes metalizados esvoaçando e se embolando em seu cabelo, a fumaça doce recendendo pelo ar...

Ele ergueu as mãos e massageou as maçãs do rosto, suspirando, tentando trazer sua cabeça de volta à realidade, mas seus olhos estavam ficando pesados. Concentrou-se na música ambiente do elevador, apenas para ter com o que ocupar a mente.

 

...I'm the one who wants

To love you more

Can’t you see I can give you

Eveything you need?

Let me be the one

To love you more

 

Era uma balada romântica, bem diferente da música ensurdecedora que estava tocando no bar mais acima. Nicolas não fazia a menor idéia de quem cantava aquilo, mas se lembrava de ouvir uma versão daquela música regravada por João Paulo e Daniel em algum karaokê barato. Música boa, mas de gente velha.

O sino do elevador apitou e as portas se abriram, indicando que havia chegado ao térreo. O rapaz saiu e caminhou em direção à portaria cautelosamente, como se contasse cada passo, pois sua cabeça enevoada parecia querer rolar à frente do corpo. Lá fora, como de praxe, estava o elegante Kia Opirus estacionado rente ao meio-fio e seu motorista aguardando de pé junto ao veículo.

— Boa noite, senhor. – Ele cumprimentou quando Nicolas se aproximou, abrindo a porta traseira do sedã para que o rapaz entrasse.

O jovem sentou-se no banco traseiro e sentiu o corpo afundando contra o estofamento, o que o proporcionou um pequeno e muito bem-vindo alívio. O motorista contornou o sedã e assumiu seu lugar ao volante. Nicolas o viu movendo a alavanca do câmbio até a posição D e sentiu o veículo partindo. Àquela hora da noite não havia trânsito, e o imponente Opirus cinza-chumbo rodava mansamente pelas ruas da capital mineira. No banco de trás, lutando contra o sono que se abatia sobre ele, Nicolas ainda refletiu mais algumas vezes sobre as mensagens do pai.

De alguns anos para cá, Leonel parecia estar cada vez mais ocupado. A construtora da qual era presidente e acionista majoritário, a Machado Galvão S.A., parecia seguir na contramão das crises financeiras que se abatiam sobre o país e experimentava uma crescente onda de prosperidade, acumulando consecutivos empreendimentos imobiliários privados de altíssimo valor e inúmeras concessões de obras públicas de infraestrutura, e não eram raras as vezes que o empresário precisava viajar para outro estado ou país e Nicolas ficava sozinho em casa.

Não que seja muito diferente com ele por aqui, o rapaz pensou. No mínimo apareceu alguma viagem de última hora e ele quer bancar o papai preocupado com o filhinho desamparado.

Foi o último pensamento nítido que se formou na mente dele antes que ele recostasse a cabeça contra o banco e caísse num sono pesado. Só acordou quando sentiu o veículo finalmente parando diante de sua casa, num condomínio fechado nos arredores de Nova Lima. O motorista desceu e contornou a traseira do sedã, vindo abrir a porta para Nicolas.

— Chegamos, senhor.

O jovem passou as mãos com força no rosto para desamarrotá-lo e espantar um pouco da lombeira, enquanto girava o corpo e saía do carro. A noite estava fria, o céu nublado e uma fina garoa caía como uma cortina leve, bastante convidativos para um chocolate quente e uma boa noite de sono. Nicolas ajeitou a roupa, enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta e pôs-se a subir as escadas da entrada, pensando se compensava ou não preparar um lanche para si àquela hora.

— A propósito, senhor, feliz aniversário. – O motorista proferiu lá de trás, num tom amistoso.

O rapaz parou onde estava, momentaneamente sem saber como reagir àquilo. Seu motorista havia mesmo lhe desejado feliz aniversário? A primeira – e única – pessoa a lhe dar os parabéns naquele dia havia sido seu motorista? Desde que ele havia começado a trabalhar para Leonel, quase dois anos antes, Nicolas trocara no máximo meia dúzia de palavras com ele. Não por antipatia, ou má vontade ou qualquer coisa assim, mas por preguiça mesmo. A função dele era levar Nicolas para onde ele bem entendesse sem questionar, e não ser o amigo de bate-papo no trânsito ou seu psicólogo particular ou qualquer coisa assim. Não havia necessidade de conversarem entre si.

Havia?

Nicolas se virou já com a boca entreaberta para responder, mas sem saber sequer o que dizer. No entanto, percebeu que o motorista já havia voltado para o carro. O exótico Kia Opirus agora se afastava silenciosamente em direção à garagem. O rapaz piscou algumas vezes enquanto via as lanternas traseiras do sedã se afastando, tentando decifrar a interrogação enorme que havia se formado em seu cérebro, mas acabou dando de ombros. Virou-se e terminou de subir as escadas, entrando em casa. Tirando seus All Star brancos e deixando-os de qualquer jeito ao lado da porta da sala, rumou para a cozinha e decidiu comer um cereal, pois já sentia a larica começando a bater. Depois iria tomar um banho rápido e dormir.

Aquela noite havia sido um tanto... estranha.


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