Dear Mr. Nemesis escrita por Nekoclair


Capítulo 7
Capítulo 7




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Liquidating A Steadfast Typhoon. Scheme To Resolve All Wrongdoings.



Quinta-feira. Uma noite interminável na Torre de São Petersburgo.

Como o mar durante uma tempestade insaciável, o colchão se movia conforme o ir e vir do corpo inquieto que nele se encontrava deitado.

O homem adormecido virava para a esquerda e para a direita, revirando-se na cama, seu rosto retorcido enquanto suas mãos se agarravam desesperadamente ao lençol, como se esperando que isso de alguma forma o ancorasse ao mundo real e o impedisse de ser arrastado pelos pesadelos que, esta noite, investiam sobre ele com a força de uma maré de ressaca.

Quando foi enfim capaz de escapar dos pensamentos sombrios que haviam invadido seus sonhos, seu corpo despertou de repente e, em questão de segundos, suas costas voaram para longe do conforto macio do colchão. Sentado, o homem respirou fundo, e logo a seguir o fez uma segunda vez. E então uma terceira, por fim. Após finalmente desentrelaçar os dedos do lençol, usou as mãos para afastar o cabelo do rosto, grunhindo ao encontrar os fios cobertos por um suor gelado.

Seu batimento cardíaco ainda soava alto em seus ouvidos. Muito, insuportavelmente alto. Desconfortável.

Pelo menos o pesadelo havia servido a um propósito, pensou.

Foi enfim capaz de se decidir a respeito de um certo assunto em particular, o qual o vinha incomodando já há algum tempo. 

As coisas não podiam continuar do jeito que estavam, disso ele tinha certeza. Depois de ter um pesadelo daqueles, não restavam opções a não ser fazer algo a respeito da pedra que lhe vinha sendo um incômodo há tanto tempo, uma inconveniência que havia até mesmo encontrado o caminho para dentro de seus sonhos anteriormente pacíficos. 

 

—--

 

Era uma manhã bem cedo e o Sol brilhava de forma fervil do lado de fora, nuvens eventualmente filtrando sua luz e tornando-a mais suportável. Entretanto, embora o dia tivesse sido abençoado com um clima tão agradável, o clima dentro do cômodo era sombrio e tedioso. Não havia nem mesmo a sombra de um sorriso nos lábios do jovem.

Isso era de se esperar, no entanto.

Mesmo que Yurio fosse um gênio, tão brilhante quanto se podia ser, ele ainda era humano — e um adolescente, sobretudo —, então ele não sentia prazer algum em fazer o dever de casa. Afinal, não era como se ele realmente precisasse colocar seu conhecimento em prática. Fazer exercícios de matemática em uma hora daquelas do dia era simplesmente inútil, já que não estava agregando nada ao seu atual conhecimento. Ele preferiria gastar seu tempo com coisas mais úteis.

Depois de encontrar alguns livros do Victor estocados dentro de um armário na sala de estar, relíquias dos seus tempos de faculdade, Yurio vinha, nessas últimas semanas, passando todo o seu tempo livre com o rosto colado neles, e era assim que ele gostaria de estar neste momento.

Entretanto, sua promessa ao velho Yakov era um pensamento insistente e contínuo no fundo de sua mente, latejando sem parar a fim de não se deixar esquecer. E, infelizmente, seu professor achou que seria uma ideia ótima, maravilhosa atribuir nota aos trabalhos de casa como parte das “atividades extras” que se somavam à nota final.

Os exercícios estavam longe de ser difíceis, mas nem mesmo a batida explosiva da música que saía de seus fones de ouvido estava sendo capaz de aliviar seu tédio.

Yurio estava estudando já há quase uma hora, sem pausas visando terminar tudo o mais rápido possível, quando a voz de Victor ecoou pela casa. A princípio, o adolescente cogitou ter sido sua imaginação; ainda assim, tirou os fones de ouvido e aguardou para ver o que acontecia. Quando a voz de Victor foi ouvida uma segunda vez — desta vez mais clara por não haver nada no caminho, abafando-a —, Yurio empurrou a cadeira para longe da mesa e virou o corpo em direção à porta.

— O que foi? — ele gritou, nem mesmo se dando ao trabalho de se levantar.

— Pode vir aqui? Precisamos conversar.

Yurio respirou fundo e estalou a língua. Por mais que matemática fosse entediante e fazer exercícios fosse uma perda de tempo, ainda assim era mais proveitoso do que lidar com as babaquices do Victor. Quem sabe quanto tempo perderia tendo de ouvir aquelas conversas detestáveis às ​​quais Victor o submetia de vez em quando.

— Estou meio ocupado agora — disse, simplesmente, não pretendendo entrar em detalhes.

— É importante — a voz insistiu e Yurio se viu duvidando da veracidade daquelas palavras. Porém, a resposta de seu mentor não o havia deixado com muitas escolhas.

Após arrastar a cadeira pelo chão, o rangido resultante da ação agudo o suficiente para lhe causar arrepios, Yurio se levantou e caminhou até a sala, seus passos lentos e evidentemente sem pressa.

O que poderia ser desta vez?

Quando pisou na sala de estar, viu que Victor o aguardava no meio do cômodo, estático como se fosse parte da mobília. Ele tinha as duas mãos na cintura e um sorriso estampado no rosto, o qual ia de orelha a orelha. Enquanto isso, seus olhos — que eram de um azul suave, mas profundo e firme como o céu de verão no início da tarde — estavam olhando diretamente para ele, sem piscar e cheios de sua confiança habitual.

— Se for sobre a louça, já disse que vou cuidar dela mais tarde — grunhiu Yurio, coçando a testa e não se dando ao trabalho de esconder seu descontentamento.

Victor gargalhou, de leve a princípio, mas depois sua risada foi ficando cada vez mais alta, seu corpo se contraindo enquanto sua malícia corria livre em seu riso indomável. Seu sorriso se tornou malicioso e seus olhos foram obscurecidos pela sombra de seus cílios longos e claros. Yurio assistiu a tudo isso com uma sobrancelha erguida e uma expressão impassível no rosto, perguntando-se o que diabos havia de errado com ele desta vez, mas sem saber se realmente queria saber. Perguntar era o mesmo que se envolver, e não obrigado.

Victor abanou uma das mãos na frente do rosto, descartando o que Yurio havia dito anteriormente e enfim se recompondo. Yurio estava seriamente cogitando levá-lo a um neurologista, porque tinha que ter algo de errado com o cérebro dele.

— Eu tenho um plano! — Victor abriu os braços, um sorriso orgulhoso dançando em seus lábios.

Yurio não reagiu.

— Bem, que seja. Até aí nada de novo. Você tem um, tipo, toda semana. — Yuuri esperava ter soado tão entediado quanto ele se sentia por dentro.

A essa altura do campeonato, o adolescente já havia perdido completamente a esperança de ver uma sombra do que Victor havia sido quando ainda trabalhava para o Mestre. Ele devia ter adivinhado que todas as histórias que ouvira eram grandiosas demais para serem verdade, e que os capangas do velho não podiam estar falando sério sobre todas as conquistas alcançadas pelo Victor.

— Desta vez é diferente! — ele disse em voz alta, seus olhos radiantes.

Victor não parecia estar nem um pouco abalado pela falta de interesse mostrada por seu aprendiz, ou mesmo pela sua falta de fé em relação a ele em geral. Victor nunca parecia se importar, ou talvez ele fosse apenas distraído ao ponto de não perceber o que estava acontecendo — Yurio ainda não sabia dizer qual era o caso.

Yurio cruzou os braços e piscou lentamente enquanto encarava Victor, que até então não havia desviado o olhar dele sequer uma vez.

— Hum, okay, certo. — Yurio inclinou de leve a cabeça e batucou o dedo no braço, impaciente.

Não havia escapatória, havia?

Yurio suspirou profundamente, cansado e já se arrependendo do que estava prestes a fazer. A companhia de seu dever de casa seria muito bem-vinda agora, recebida de braços abertos e com um beijo em cada bochecha.

— Qual é o problema desta vez? — ele perguntou, enfim.

— Vou invadir a SOAP!

Por um segundo, Yurio achou que tinha ouvido errado. Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos, olhando fixamente para Victor, que, por sua vez, ainda sorria despreocupadamente como se tivesse acabado de anunciar que ia sair para um simples passeio no parque.

— Quê?

— A sede deles. Vou invadir.

Yurio ainda estava tentando compreender as palavras que haviam sido dito, juntando as peças e buscando o significado por detrás delas, quando sua mente começou a fazer perguntas, uma logo atrás da outra. Quando? Como? Por quê? Felizmente, Victor respondeu pelo menos uma delas por conta própria.

— É hora de começar a tomar ações mais drásticas.

Um arrepio percorreu sua espinha e Yurio se viu sorrindo.

Isso era real? As coisas iam finalmente começar a ficar interessantes? Victor enfim decidiu levar seu trabalho a sério?

Seu coração batia forte dentro do peito. Alto. Muito, muito alto.

Yurio não conseguiu mais se conter.

Como uma criança por demais animada, ele descruzou os braços e caminhou em direção ao seu mentor, seu professor, seu instrutor, sua inspiração. Seus olhos com certeza estavam brilhando e ele não tinha dúvidas de que suas bochechas estavam infladas de uma maneira infantil, mas ele não conseguia se importar com isso, não agora. Ele agarrou o braço do vilão e o puxou repetidamente, querendo saber mais, as perguntas saindo tão rápido de sua boca que Victor teve que pedir para ele ir mais devagar, o tempo todo rindo de sua excitação.

A resposta de Victor foi dada na forma de um dedo, o qual foi balançado bem diante de seu rosto.

— Para uma operação desse tamanho temos que reunir toda a equipe. Há muito a se discutir. Nenhum spoiler deve ser dado antes da hora.

 

—--

 

A operação LAST STRAW era um plano de duas fases. A principal consistia em invadir a sede da organização, mas a priori ele tinha outra ação a tomar: se preparar. Precauções eram necessárias, e para isso era essencial que ele coletasse dados suficientes por meio de cuidadosa investigação. Do contrário, o sucesso da invasão seria impossível mesmo em seus sonhos mais otimistas.

A primeira coisa a se fazer era atrair Katsudon, segui-lo e descobrir onde ficava a sede. Para isso, ele precisava de roupas, roupas que não confiava em ninguém além de Chris para escolher para ele. No entanto, como seu amigo tem estado bastante ocupado com o trabalho ultimamente, quando Victor o ligou foi informado de que a única vaga em sua agenda seria no dia depois de amanhã. A espera não era um problema; Victor já havia esperado até agora, qual seria a diferença em aguardar mais um ou dois dias, ou mesmo uma semana? Mais importante, ele precisava de Chris para ajudá-lo com suas roupas, além de para o dar algumas ideias sobre o que ele poderia fazer para que esse plano funcionasse.

Não havia lugar para fracasso, não desta vez. Ele iria utilizar de toda a ajuda que estivesse ao seu alcance.

Se por um lado Victor não se importava com o atraso em seus planos, Yurio, pelo outro, viu suas unhas roídas até a carne antes do fim do dia. O jovem assistente estava ansioso, sua inquietação evidente na maneira como ele não conseguia se manter parado, sempre andando pela casa e perguntando ao Victor se havia alguma coisa — qualquer coisa — que ele podia fazer para ajudar. Na maioria das vezes, não havia.

Victor se manteve majoritariamente ocupado, nunca se vendo sem coisas para resolver. Quando não estava trabalhando em alguma nova invenção ou arrumando o laboratório, ele passava o tempo verificando uma a uma as máquinas que ele havia construído até então, as quais haviam começado a ocupar um espaço considerável. Como Victor apenas desmontava aquelas que tinham algum problema grave ou impossível de resolver, o número de invenções amontoando-se em um canto do laboratório ficava cada vez maior.

Os dias passavam vagarosamente, tão lentos e enfadonhos que chegavam a ser insuportáveis. O pobre adolescente sofria, pois sequer tinha mais deveres de casa para mantê-lo ocupado.

Quando o domingo finalmente chegou e Chris e Masuda se juntaram a eles para jantar, Yurio estava mais radiante do que nunca, sorrindo tanto que quase parecia estar fora de si. Eram tão óbvias a sua ansiedade e inquietação que não havia como passarem despercebidas, e é claro que Chris se sentiu na obrigação de provocá-lo a respeito.

— Você vai levar ele pra Disney ou algo assim? — Chris perguntou, um sorriso brincalhão nos lábios.

Victor e Masuda riram, o segundo de forma mais discreta. Yurio, que não viu graça alguma, cruzou os braços e desviou o olhar enquanto franzia os lábios.

Depois de quinze minutos mais ou menos, quando eles finalmente se acomodaram em seus lugares ao redor da mesa da cozinha, a casualidade da conversa morreu para dar espaço aos assuntos mais urgentes que pairavam sobre suas cabeças. Todos sabiam que o motivo do encontro desta noite não era a pizza cuja chegada eles ainda aguardavam ansiosamente.

A fim de não delongar ainda mais o assunto, Victor colocou um pequeno dispositivo sobre a mesa, deixando-o à vista de todos. Era preto e tão pequeno que poderia facilmente ter passado despercebido se a mesa não estivesse vazia.

— É um rastreador — informou, caso alguém ainda tivesse dúvida.

Yurio queria apanhá-lo para ver mais de perto, mas se conteve. Mesmo ciente de que as criações de Victor não eram assim tão frágeis, temia que o menor dos toques pudesse dar cabo de sua única esperança.

 

—--

 

Yuuri percebeu que algo estava errado logo de cara.

Quando o alarme soou e ele foi atrás do Treinador, encontrou o vilão ansioso, mas nem tanto por causa da máquina que Yuuri havia acabado de quebrar com uma voadora. Ele simplesmente não parecia ver razão para se importar com ela.

Tudo foi resolvido rapidamente e o impasse entre eles não pareceu real, os socos do vilão carecendo de qualquer determinação. O plano do Treinador também tinha sido... aleatório, aleatório demais até para ele, e não se notava a presença de sentimento por trás de suas ações ou de suas palavras, as quais haviam soado tão rígidas que Katsudon se viu perguntando se seu nêmesis havia ensaiado de antemão. Era só que... Nada daquilo parecia com o Treinador, nada carregava sua marca.

Mas então o Treinador se virou para ele e disse que queria agradecê-lo, e Katsudon começou a se perguntar se tudo aquilo não teria sido apenas uma desculpa para vê-lo.

Além disso, agradecer pelo quê?

Antes que Katsudon pudesse dar voz às perguntas que estavam espiralando em sua mente, o Treinador se aproximou dele com passos rápidos e largos. Quando o agente percebeu, ele já se encontrava dentro de seus braços, o que só serviu para deixar Katsudon ainda mais confuso, seus pensamentos ficando ainda mais inquietos e perdidos do que antes.

“Ele percebeu quem sou?” Yuuri se perguntou, surtando internamente. Seus braços permaneciam rígidos ao lado de seu corpo.

Deveria abraçá-lo de volta? O que ele era suposto de fazer com as mãos? Era melhor afastar o Victor, ou puxá-lo para mais perto? O que estava acontecendo? Havia uma quantidade grande de perguntas pedindo para serem expressas, mas nenhuma saiu de sua boca, porque antes que ele pudesse decidir por onde começar, Victor — o Treinador? —  recuou. Ele tinha agora um largo sorriso estampado em seu rosto.

— Graças ao seu conselho do outro dia, eu finalmente consegui beijar o Yuuri!

Katsudon — Yuuri? — sentiu suas mãos esfriarem, então as fechou a fim de preservar seu calor e, por fim, escondeu-as atrás das costas, longe dos olhos do Victor. Ele não queria que ele as visse tremendo, ou percebesse que ele estava tão tenso que suas unhas estavam se cravando na pele.

— Se não fosse por você, eu talvez não tivesse chegado tão longe. Então, o que estou tentando dizer é que sou muito grato por tudo que você fez por mim. 

Yuuri sentiu um aperto no peito.

Ele olhou para baixo, vendo-se incapaz de encarar aqueles lindos e sinceros olhos azuis naquele momento. Esse segredo que ele vinha ocultando há tanto tempo estava se tornando cada vez mais doloroso, como se estivesse cavando um buraco fundo através de seu peito. Ele não tinha certeza de por quanto tempo mais ele seria capaz de manter essa mentira — ou talvez fosse mais certo dizer “desonestidade” — viva.

Victor continuou falando e falando sobre o Yuuri, desejando compartilhar tudo nos mínimos detalhes, completamente ignorante ao fato de que Katsudon esteve ao seu lado durante todos aqueles momentos. Mais do que timidez, que seria sua resposta usual a esse tipo de situação, Katsudon sentiu um sentimento de culpa queimar fortemente em seu íntimo, uma chama persistente que não dava sinais de se extinguir tão cedo.

Quando seu desconforto se tornou insuportável, Katsudon disse ao Treinador que precisava ir e fugiu rapidamente, sem olhar para trás sequer uma vez.

O Treinador não tentou impedi-lo.

 

—--

 

Victor manteve um olhar atento ao movimento do rastreador, suas ações semelhantes às de um predador faminto que se encontrava à espreita de sua ignorante presa, a qual transitava despreocupadamente pela cidade sem ter ideia de que seus passos estavam sendo vigiados.

Depois de mais ou menos trinta minutos, o ponto piscante finalmente estacionou e Victor se permitiu sorrir enquanto olhava mais de perto o mapa exibido no monitor. No entanto, dois segundos foi tudo o que levou para que aquele sorriso satisfeito desaparecesse de seu rosto, dando espaço a uma sobrancelha erguida e expressões confusas.

Aquele lugar... Lá não era Yu-topia?

Era como diziam: o mundo é realmente pequeno!

Quem diria que Katsudon era mais um rosto dentre a clientela do restaurante! E pensar que, em meio a todas as opções disponíveis em uma cidade movimentada como a deles, os dois nêmesis frequentavam o mesmo lugar! Era uma grande e agradável coincidência! Era como se o destino estivesse pregando uma peça neles, garantindo que suas vidas estivessem conectadas tanto dentro quanto fora do trabalho.

“Talvez eu devesse convidar Katsudon para jantar,” Victor pensou consigo mesmo, já imaginando a cena dentro de sua mente, como que ensaiando para uma peça. Seria uma boa forma de expressar de forma adequada sua gratidão, afinal, ele era verdadeiramente grato pela presença do homem em sua vida e queria que ele soubesse disso.

Ele não poderia ter pedido por um arqui-inimigo melhor, por uma companhia melhor e — inesperadamente — por um amigo melhor.

— Espera, — Victor interrompeu sua própria linha de raciocínio, outra questão atropelando seus demais pensamentos. — Isso quer dizer que eles se conhecem? Yuuri e Katsudon?

O vilão se virou e começou a andar sem rumo pela sala, permitindo que seus pés o levassem para nenhum lugar em específico enquanto ele colocava as peças que havia reunido até então lado a lado dentro de seu cérebro, ficando cada vez mais animado conforme observava a imagem se formando.

— Claro que isso quer dizer que eles se conhecem! — ele mesmo respondeu, animado, batendo palmas em um momento de empolgação.

Já que Yuuri trabalhava em Yu-topia e Katsudon frequentava o lugar, obviamente eles se conheciam! Céus, o mundo realmente era pequeno!

Victor queria rir em voz alta, ou baixinho para si mesmo, algo assim. Ele foi incapaz de conter o sorriso amplo que surgiu em seus lábios, sentindo-se de alguma forma muito, muito, muito feliz com a revelação. Ele tinha a impressão de que, se respirasse fundo e fechasse os olhos, seria capaz de ver algo colorido cintilando no fundo de sua mente, como um espetáculo de fogos de artifício, por exemplo.

— Pera… Então Katsudon sempre soube de quem eu estava falando?

Victor queria se sentir envergonhado por essa possibilidade, mas não teve tempo para isso, pois outro pensamento lhe ocorreu logo a seguir, atropelando suas preocupações anteriores e menos relevantes.

— Será que eles são na verdade mais do que apenas atendente e cliente?

A pergunta martelava em sua cabeça, barulhenta como uma noite de trovoada e insistente como uma coceira na parte traseira do pé que ninguém conseguia simplesmente ignorar. Victor deu uma volta pelo cômodo, um dedo repousando nos lábios que, de repente, mostravam-se bem pensativos.

Era por isso que Katsudon sabia com tanta certeza que as coisas dariam certo entre Victor e Yuuri? Porque eles na verdade eram amigos — sempre foram — e, por isso, Katsudon sabia de coisas que faziam com que ele não tivesse problemas para afirmar que seus sentimentos seriam devidamente retribuídos.

Um sorriso logo retornou ao seus lábios.

— Katsudon podia ter me contado!

Victor riu um pouco consigo mesmo, mas, apesar de sua “reclamação”, ele não estava realmente zangado por seu nêmesis ter escolhido esconder a verdade. Ele provavelmente apenas não sabia como dizer que eles se conheciam, ou talvez estivesse com medo da reação que obteria como resposta, temeroso de tornar as coisas estranhas. Afinal de contas, Katsudon tinha o péssimo hábito de pensar demais, sempre se deixando levar pelos menores detalhes.

No entanto, acima de tudo, ele se sentia verdadeiramente afortunado. As duas pessoas mais importantes para ele se conheciam e estavam intimamente ligadas... Talvez esse tenha sido o destino deles esse tempo todo.

Um suspiro profundo escapou por entre seus lábios sorridentes.

Victor se deitou no sofá e jogou os pés para o alto, descansando-os sobre uma pilha de almofadas macias. Em seguida, apanhou o celular para verificar as horas — já passava das cinco. O tempo passou rapidamente depois que permitiu que seus pensamentos vagassem livremente. Voltando ao aplicativo onde ele conseguia monitorar o rastreador, Victor ficou surpreso ao encontrar o ponto ainda piscando bem em cima de Yu-Topia.

Katsudon ainda não havia terminado de comer?

Bem, talvez Katsudon e Yuuri estivessem pondo o papo em dia, desperdiçando um pouco de tempo na companhia um do outro... Afinal, eles eram amigos, Victor recordou e seu sorriso se tornou mais largo.

Deixando o telefone de lado por um minuto, visto que poderia demorar uma hora ou mais para que Katsudon deixasse a casa do amigo, Victor apanhou um livro que repousava no chão, ao lado do sofá. Ao pegá-lo em mãos e olhar com atenção para a capa, percebeu que era um dos que comprou quando ainda estava na faculdade. Yurio provavelmente o havia deixado ali com a intenção de continuar sua leitura na próxima vez que tivesse algum tempo livre, se o marcador era algum indicativo.

Victor considerou suas opções e então deu de ombros. Abrindo o livro, ele olhou a página de cima a baixo, seus olhos percorrendo as palavras rapidamente, palavras estas que ele não havia esquecido por sequer um momento desde a primeira vez que leu aquele livro. Continuava sendo tão chato quanto da primeira vez, mas pelo menos serviu ao propósito de manter seu cérebro ocupado. Ele precisava que o tempo passasse depressa, e estar excessivamente consciente do relógio não faria isso acontecer.

O livro ajudou.

Quando ele enfim descartou o livro, cansado de ler sobre as lutas da comunidade moderna em uma metrópole altamente urbanizada, três horas haviam se passado. "Bom", comemorou enquanto resgatava o telefone de dentro do bolso. No entanto, quando ele olhou para o mapa, não pôde deixar de franzir perante a visão que seus olhos lhe exibiram.

O rastreador permanecia em Yu-topia.

Como podia ser?

Já passava das oito e não havia chance de Katsudon se demorar tanto na casa de uma pessoa, considerando sua personalidade. Mesmo que eles fossem os melhores dos amigos, seu nêmesis com certeza se preocuparia em estar sendo um incômodo depois de passar tantas horas seguidas na casa de outra pessoa.

Victor parou e olhou fixamente para o teto por alguns segundos.

— Okay, talvez se eles forem amigos de infância… — Victor se interrompeu e balançou a cabeça, livrando-se daquela hipótese. Isso era forçado demais até mesmo para seus padrões.

Mas então por que o rastreador dizia que Katsudon ainda estava em Yu-topia?

Será que ele estava doente? Teria acontecido alguma coisa? Seria melhor ligar para o seu nêmesis, mesmo que isso significasse expor seu plano em um estágio tão inicial?

Quais eram suas opções?...

Por quê, por quais razões o rastreador que ele escondeu no casaco de seu nêmesis diria que ele ainda não havia saído da casa de Yuuri?

A não ser que…

Victor jogou as pernas para cima e usou o impulso para se sentar adequadamente no sofá, seu corpo se movendo tão depressa que por um segundo viu o mundo rodar. Após encarar o celular por tanto tempo que quase abriu buracos na tela, Victor finalmente o desbloqueou.

Não foi difícil telefonar para aquela pessoa, já que seus dedos conheciam muito bem o caminho pelo teclado; eles tinham que saber, considerando quantas vezes Victor discou aquele número nos últimos meses.

 

—--

 

Yuuri estava relaxando em sua cama, balançando as pernas no ar ao ritmo da música que saía de seus fones de ouvido, quando seu celular começou a vibrar daquela maneira específica que fazia quando alguém estava ligando. Era o Victor, e isso pegou Yuuri de surpresa, já que geralmente ele ligava mais tarde, mais próximo de sua hora de dormir, por volta das onze ou onze e meia; certamente não às oito.

Por uma fração de segundo, Yuuri se perguntou se algo estaria errado, mas então percebeu que Victor provavelmente só estava sentindo falta dele ou algo do tipo. Seu nêmesis podia ser bem adorável às vezes — na maioria das vezes.

Com um sorriso de satisfação estampado nos lábios, ele aceitou a chamada.

— Oi, Victor — Yuuri cumprimentou, rolando na cama e deitando-se de costas. O teto era quase todo branco, exceto pelo tom amarelo suave proveniente da lâmpada pendurada sobre sua cabeça.

— Desculpe ligar tão cedo — Victor falou, sua voz suave, mas de alguma forma tensa. — Oi.

— Oi… — Yuuri repetiu e se sentou, suas sobrancelhas se franzindo levemente. — Aconteceu alguma coisa? Você está meio estranho. 

— Eu... queria te perguntar uma coisa, algo um pouco estranho.

O corpo de Yuuri de imediato se tornou ainda mais estático, mais rígido.

"Ele descobriu?" Yuuri se perguntou, mas balançou a cabeça logo a seguir a fim de se livrar da crescente ansiedade. Quando ele engoliu, a secura de sua garganta o deixou desconfortável. “Talvez ele só queira me convidar para sair de novo,” Yuuri disse a si mesmo, tentando utilizar de um pouco de otimismo para aliviar o peso que havia se acomodado em seu peito.

Yuuri murmurou para que ele prosseguisse e esperou até que Victor o lançasse sua pergunta.

— Alguém esqueceu um casaco no restaurante hoje?

O franzir das sobrancelhas de Yuuri ficou ainda mais proeminente. Aquelas palavras certamente não eram o que Yuuri estava esperando.

— É um terno preto — Victor acrescentou, induzido pelo silêncio de Yuuri. — De um amigo.

— Hum, não tenho certeza... Hoje, você diz? Não me lembro de ter visto nada largado quando estávamos arrumando o lugar. — Yuuri respondeu enquanto relembrava dos rostos que haviam aparecido hoje; ele sequer tinha certeza de ter visto alguém vestindo um terno preto.

— Tenho quase certeza de que está aí — Victor disse, e a confiança em sua voz foi suficiente para que Yuuri duvidasse de sua própria memória. Talvez alguém usando um terno preto tenha vindo, afinal. Talvez Yuuri simplesmente não tenha prestado muita atenção nele, ou talvez ele tenha vindo quando ele estava fora lidando com o Treinador.

— Está bem. Vou dar uma olhada — Yuuri disse, simplesmente. Não era como se procurar o casaco fosse matá-lo, e se alguém esqueceu algo no restaurante claro que ele gostaria que essa pessoa recuperasse seu pertence.

— Isso seria de grande ajuda, obrigado. — Yuuri pôde ouvir um sorriso em sua voz, o que o fez sorrir também.

Sentindo em suas entranhas que Victor ainda tinha algo a dizer, Yuuri esperou, mas por longos segundos ele foi deixado apenas com a companhia de um silêncio desconfortável. Sua paciência estava diminuindo cada vez mais, já que não gostava da atmosfera tensa que os havia cercado. Então, finalmente veio.

— Você pode procurar agora? — Victor parecia ansioso por algum motivo. Um pouco desesperado. Completamente estranho.

Ele tem franzido tanto o rosto ultimamente que não ficaria surpreso se marcas surgissem em sua pele, e Yuuri preferia não ter uma ravina correndo por sua testa. Yuuri se levantou e caminhou pelo quarto um pouco, pensativo, e então parou e jogou a maior parte do peso na perna direita.

— Sim, acho que posso — Yuuri respondeu, indiferente, mas uma pergunta se encontrava pendurada na ponta de sua língua: Victor não estava um pouco nervoso demais por causa de um terno? E um que, além disso, nem mesmo pertencia a ele. — Mas posso te perguntar uma coisa antes?

— Claro — a resposta de Victor veio nem mesmo um segundo depois.

— De quem é esse terno?

Silêncio. Um segundo, dois, três, seis, dez... Yuuri estava prestes a deixar escapar um suspiro quando finalmente recebeu uma resposta.

— Acho que te devo isso, pelo menos. Você pode apenas, por favor, não me julgar pelo que estou prestes a dizer? Não quero que você pense mal de mim por causa disso.

— Victor, você é um supervilão — Yuuri disse em um tom monótono, e ele esperava que isso bastasse para que ele entendesse seu ponto. Aparentemente foi, porque Victor respirou fundo, tão fundo que Yuuri pôde ouvi-lo do outro lado da linha, e finalmente trouxe a verdade à luz.

— É do Katsudon. Eu... coloquei um rastreador nele para descobrir onde fica a sede da agência dele.

Oh.

Yuuri não conseguia nem mesmo dizer que estava surpreso. No máximo, ele se perguntou quando Victor o colocou em seu casaco; provavelmente quando eles se abraçaram, percebeu amargamente logo a seguir. Decidiu que a coisa mais sábia a se fazer era dar cabo do assunto ali mesmo, não querendo se afundar ainda mais naquele tópico para o seu próprio bem.

— Deixa eu descer, talvez tenha caído em um canto ou algo assim.

— Obrigado — Victor agradeceu e ele parecia quase tímido; talvez fosse assim que alguém se sentia quando era pego em flagrante enquanto perseguia alguém. — O rastreador parou de se mover por volta das cinco — acrescentou por algum motivo. Talvez ele simplesmente não quisesse que a ligação ficasse silenciosa novamente.

Yuuri bateu o pé no chão e caminhou um pouco dentro de seu quarto, resmungando sobre estar descendo as escadas e fechando a porta de forma barulhenta apenas para tornar seu ato mais crível.

— Okay, estou aqui. Deixa eu ver.

Yuuri abriu o guarda-roupa, segurando o celular tão longe quanto possível de sua mão, a qual se mantinha ocupada ao vasculhar as roupas em busca de seu terno de trabalho. Só quando ele finalmente o encontrou e foi capaz de puxá-lo do cabide é que voltou sua atenção novamente para Victor.

— Encontrei. Estava pendurado atrás da porta do banheiro.

— Oh, entendo.

“Até agora tudo bem”, Yuuri pensou e começou a procurar pelo rastreador.

Ele correu levemente os dedos por todos os esconderijos em que conseguiu pensar, logo encontrando o rastreador atrás da gola de seu terno, perto de onde sua nuca estaria. Victor — de alguma forma — parecia realmente acreditar que Katsudon havia esquecido seu terno, a ideia do traje estar exatamente onde era suposto de estar nem mesmo tendo cruzado seus pensamentos aparentemente. Yuuri não tinha certeza do que deveria fazer agora, no entanto.

— Acho que este não foi o meu dia de sorte — Victor falou em meio a uma risada desconfortável.

Yuuri pegou o terno e o colocou sobre a cama. Era melhor não se livrar do rastreador por enquanto.

Então, ele teve uma ideia.

— Ele provavelmente vai vir procurar por ele amanhã. Vou ter certeza de entregar pra ele. — Yuuri sorriu ao cair na cama uma vez mais, o colchão balançando por causa do seu peso. — Devo deixar o rastreador? — Yuuri podia sentir seu sorriso ficando mais largo, e estaria mentindo se dissesse que não estava achando a situação engraçada.

— Se não for pedir muito — Victor disse do outro lado da linha, sua voz agora mais viva. Uma breve risada escapou da boca do homem, e Yuuri teve que conter seu próprio riso. Ele não se divertia tanto há um bom tempo.

— Será nosso segredo, então — Yuuri disse, e ele queria muito ver o rosto do Victor neste momento; certamente seria uma visão interessante. — Mas não me culpe se ele descobrir o rastreador.

— Eu nunca te culparia — a voz do Victor era como um miado contra sua orelha, um tanto provocativa, suave como veludo. — Você é tipo meu parceiro no crime.

Yuuri não conseguiu mais se conter.

— Sim, sim. Os melhores dos parceiros — Yuuri falou em meio a risos, seu corpo tremendo e lágrimas se acumulando nos cantos dos seus olhos.

Victor simplesmente riu também, com certeza pensando que isso não era nada mais do que eles flertando e brincando um com o outro. Mal sabia ele que a realidade era muito mais complicada e ridícula do que isso.

— Preciso ir agora — Yuuri disse, sabendo que se entregaria se as coisas continuassem por muito mais tempo. Havia um limite para quantas vezes ele conseguiria restringir sua boca indisciplinada e impedi-la de dizer coisas que não deveriam ser ditas, e ele já havia ultrapassado há tempos os limites seguros de seu autocontrole. — Falo com você mais tarde?

— Sim, claro! E então podemos conversar sobre as coisas de sempre.

— Mal posso esperar. — Yuuri sorriu para o celular, amorosamente. — Então...

Antes que Yuuri pudesse ter a chance de se despedir, foi interrompido por Victor.

— Ah, espera!

— Sim? — Yuuri ergueu uma sobrancelha e aguardou, imaginando o que poderia ser desta vez.

— Uma última pergunta — Victor solicitou.

— Okay…

— Eu estava me perguntando se você conhece o Katsudon? Vocês são... conhecidos? Ou talvez amigos? — Victor perguntou da forma mais casual possível, tentando não fazer alarde, mas falhando completamente. Ele parecia esperançoso, mesmo tentando soar indiferente.

Yuuri não sabia como Victor havia chegado a essa suposição, mas estava plenamente ciente de que dizer a coisa errada poderia trazer problemas mais tarde. O que ele faria se Victor sugerisse que os três saíssem juntos algum dia? Recusar uma ou duas vezes era fazível, mas havia um limite para quantas vezes ele poderia dizer “não” antes das coisas começarem a ficar desconfortáveis.

— Hum… Não posso dizer que o conheço. E como esse certamente não é o nome dele de verdade, é um pouco difícil saber de quem você está falando. — Yuuri achou sua resposta bastante satisfatória, se ele mesmo pudesse dizê-lo, e certamente boa o suficiente para que ele pudesse se esquivar dessa situação tão complexa.

— Tem razão — Victor respondeu depois de um tempo, parecendo um pouco desapontado.

Depois de assegurá-lo uma última vez de que Katsudon teria seu terno de volta quando fosse buscá-lo, Yuuri encerrou a ligação. Lançando um olhar para o casaco preto largado sobre a cama, ele correu os dedos pelo tecido distraidamente.

 

—--

 

Terça-feira. Uma hora de almoço tediosa em Yu-topia.

A hora de almoço tinha basicamente se encerrado e, exceto pelas poucas pessoas que já haviam se aventurado no restaurante naquela terça monótona, ninguém mais era suposto de entrar pela porta. Era o meio da semana e, consequentemente, o fluxo de clientes era bastante lento.

Os empregados — uma família de quatro pessoas — caminhavam pela loja, vassouras em mãos e panos pendurados nos ombros. Mesmo que não houvesse clientes a serem atendidos agora, nunca faltavam coisas para fazer, tarefas se acumulando assim que alguém desviava o olhar por um momento.

No entanto, uma dessas pessoas tinha outras coisas em mente, e seus pensamentos eram tão barulhentos que suas mãos, que deviam estar se ocupando com a limpeza das mesas, mal se moviam.

O homem olhou para o relógio, que estava pendurado na parede e tiquetaqueando a cada segundo que passava, seus olhos se arregalando quando ele percebeu que horas já eram.

Ele rapidamente pediu licença e correu escada acima. Ele se sentia culpado por sair quando ainda havia tanto trabalho a ser feito, mas tinha algo a resolver e não tinha como adiar esse assunto. Agarrando o casaco preto que manteve por perto desde o dia anterior, saiu com ele debaixo de um dos braços prometendo estar de volta em breve.

Ele já sabia o que iria fazer, então tudo o que faltava era colocar seu plano em ação.

Depois de caminhar a esmo um pouco, foi até o parque próximo e sentou-se em um dos muitos bancos. Puxando o casaco para o colo, vasculhou a gola até que o rastreador estivesse visível. Tirou uma foto e a anexou a uma mensagem.

"Sério?" ele escreveu no chat, logo abaixo da foto.

O destinatário dessa mensagem, claro, podia ser somente uma pessoa.

 

—--

 

Vendo seu plano terminar em um fracasso total e irreparável, o Treinador percebeu que teria que melhorar seu jogo se quisesse ter alguma chance de experimentar o sabor do sucesso.

Ele precisava de uma alternativa, um plano reserva, uma ideia brilhante que lhe desse o que ele queria.

A situação exigia ações desesperadas.

 

—--

 

Era quarta-feira quando Katsudon recebeu um aviso sobre as atividades suspeitas do Treinador. Ficou bastante surpreso ao descobrir que ele estava tramando algo uma segunda vez naquela semana, já que Victor geralmente se programava em torno de uma agenda semanal; ele precisava de tempo para trabalhar em suas invenções, afinal.

Mas trabalho era trabalho, então Yuuri permitiu que seus pés — e sua curiosidade — o guiassem à Torre de São Petersburgo, onde ele seria capaz de ver com seus próprios olhos o que seu nêmesis estava aprontando desta vez.

Ao chegar lá, ficou bastante surpreso com o que o aguardava, mas também um pouco decepcionado.

A invenção do Treinador parecia... um pouco estranha. Simples demais, como um prato de comida deixado sem tempero. Completamente insípido. Não teve nenhum impacto, e o drama da vez — que o Treinador geralmente chamava de motivação — tampouco parecia certo, não carregando qualquer importância ou significado ou peso. A única coisa que não estava fora do comum era a vestimenta do vilão. Graças ao seu alfaiate, suas roupas hoje eram tão elegantes e atraentes quanto normalmente o eram. Ele estava vestido com um sobretudo preto, com leggings azul-escuro e botas pretas estonteantes. Estava deslumbrante.

Katsudon não conseguia ignorar o sentimento de que algo estava errado. Ele podia sentir o cheiro fraco e figurativo de fumaça, amargo contra seu nariz e fazendo-o coçar. Havia um incêndio a caminho, ele tinha certeza, só não sabia de onde vinha ou quando alcançaria seus pés.

Do lado, Yurio sorria de forma quase bizarra, observando tudo com os braços cruzados na frente do peito. Seu comportamento só serviu para deixar o agente ainda mais desconfiado.

Como no início da semana, as coisas foram resolvidas muito facilmente, muito rapido, sem seu nêmesis mostrar qualquer resistência verdadeira. Era como se o Treinador não se importasse, desejando mais ver as costas de Katsudon saindo pela porta do que vê-las presas debaixo dele enquanto lutavam um contra o outro. Era de quebrar o coração, honestamente.

Estaria Victor se cansando dele?

Impelido pela despedida proclamada por seu nêmesis, que havia insistido em acompanhá-lo até a porta embora isso não fosse realmente necessário, Katsudon partiu.

Quando finalmente pisou no saguão do elevador, Katsudon sentiu algo nas profundezas de seu subconsciente, um impulso que foi incapaz de ignorar. Ele se virou assim que o elevador chegou ao andar do laboratório, pronto para pôr as palavras pra fora, todavia, quando seus olhos se encontraram, seu nêmesis fechou os dele quase que imediatamente. O vilão sorriu e acenou em direção ao seu arqui-inimigo, deixando Katsudon sem alternativa a não ser entrar no elevador e ir embora. Na descida, o agente tinha os dentes quase tão cerrados quanto os punhos.

Katsudon caminhou para baixo do sol escaldante, juntando-se à multidão que lotava as calçadas, o gosto amargo da derrota reinando em sua boca. Ele fez uma breve parada em um supermercado e comprou alguns doces, qualquer coisa açucarada sendo muito bem-vinda naquele momento. Ele então continuou o seu caminho, permitindo que seus pés o guiassem pelas ruas familiares.

Demorou nem dois minutos para que sua raiva e negação se transformassem em confusão.

Em uma esquina, completamente à vista apesar de tanto tentar se esconder em meio a um grupo de transeuntes, via-se um casaco preto. O Treinador se encontrava recostado à parede, folheando um jornal e fazendo o possível para não chamar a atenção para si; ele havia até mesmo acrescentado um chapéu ao conjunto antes de deixar a Torre, uma tentativa inútil de disfarçar os fios claros e chamativos de seu cabelo.

No entanto, seu melhor disfarce não estava nem perto de ser o suficiente, e naquele momento ele estava atraindo mais do que apenas a atenção de Katsudon.

— Você acha que aquele cara é um modelo? Ou talvez eles estejam gravando um filme! — uma garota fofocou com a amiga, cujo braço ela segurava com força contra seu corpo. O que era suposto de ser um sussurro acabou chegando ainda assim aos ouvidos de Katsudon, pois a voz da garota era bem alta.

— Eu não vejo nenhuma câmera — sua companhia respondeu enquanto olhava ao redor. Ao contrário de sua amiga, ela não parecia estar tão interessada no homem que havia roubado a atenção de todos.

— Estão escondidas, é claro! — A garota barulhenta deu uma risada e foi então puxada pela amiga, que parecia ser a única entre as duas que ainda se lembrava de que elas tinham um lugar para ir.

Seguindo o exemplo, Katsudon decidiu que era melhor que ele também partisse.

No entanto, não importava quantos quarteirões ele cruzasse, ou quantas esquinas ele virasse, aquela sombra chamativa continuava seguindo atrás dele, nunca ficando muito para trás. Katsudon começou a andar mais rápido, desejando pelo menos aumentar a distância entre eles, mas seu gesto foi inútil já que o Treinador imediatamente acelerou também seus passos, suas longas pernas não tendo problemas para acompanhá-lo.

Katsudon podia sentir um par de olhos grudados a sua nuca, e mais começaram a se virar em sua direção conforme as pessoas percebiam que era ele quem estava sendo seguido por aquele homem tão bonito.

Ele tinha um mau pressentimento sobre isso.

Depois de fazer outra curva, Katsudon aumentou sua velocidade mais uma vez e se jogou no meio da multidão, torcendo para que isso o permitisse finalmente desaparecer da vista do Treinador. Infelizmente, o par de passos não ficou para trás por muito tempo, já que o vilão começou a caminhar mais rápido logo após virar a esquina. Sem outra escolha, Katsudon parou abruptamente e se virou. Ele apontou em direção ao Treinador, que por sua vez estava olhando para ele com uma expressão cheia de surpresa, aparentemente não conseguindo acreditar que seu nêmesis tinha sido capaz de encontrá-lo.

— Por que está me seguindo? — Katsudon exigiu saber, seu dedo apontando acusadoramente para o homem diante dele, a distância entre eles insignificante.

A surpresa presente na expressão do Treinador era a parte mais chocante.

— Como você me notou? — Okay, esquece o que ele disse. Essa sim era a parte mais chocante.

A boca de Katsudon permaneceu aberta por alguns segundos; o tempo que ele precisou para colocar seus pensamentos em ordem.

— Como eu poderia não te ver?! — ele exclamou, por fim. — Você nem trocou de roupa!

Talvez Victor realmente estivesse precisando de um espelho... Como que ele conseguiu acreditar que seria capaz de passar despercebido? Os olhos se voltavam em sua direção até mesmo quando ele vestia as mais casuais das roupas; vestido daquele jeito, como as pessoas poderiam não olhar para ele?

Ele sabia que tinha sentido o cheiro de fogo chegando. Realmente tinha algo errado.

Katsudon cruzou os braços e respirou fundo, tentando relaxar os nervos. Ele estava tenso, e essa não era a melhor condição para se estar quando se tinha que lidar com alguém complexo como seu nêmesis.

— O que está havendo? — ele perguntou, enfim.

O Treinador pareceu pensativo por um breve segundo, mas então suas expressões se transformaram tão rápido quanto um batimento cardíaco. Parecendo mais calmo e olhando em direção aos pés, o homem se aproximou de Katsudon com um caminhar suave, parando apenas quando eles se viram próximos o bastante para permití-los um pouco de privacidade.

— Se estiver com tempo... Pode me ouvir? — ele sussurrou.

Katsudon sentiu seus ombros desabarem. Estava com a consciência pesada por ter assumido que Victor estava planejando alguma coisa, quando tudo o que ele queria era um ouvido amigo para escutar suas preocupações. Talvez fosse a respeito do Yurio, de novo. O garoto estava se comportando de maneira um pouco estranha hoje, agindo todo alegre e mostrando-se demasiadamente animado, tão fora de seu personagem.

Katsudon, agora completamente relaxado, pousou uma mão no ombro de Victor. Quando seus olhos se encontraram no pequeno espaço entre eles, Katsudon sorriu de forma suave.

— Claro.

O Treinador — Victor? Yuuri não tinha mais certeza — sorriu também. Eles permaneceram assim por algum tempo, tempo suficiente para que as pessoas começassem a olhá-los como se eles estivessem encenando uma peça destinada aos olhos do público. Forçando uma tossida, sentindo-se um tanto envergonhado, Katsudon convidou Victor para tomar uma xícara de café, uma desculpa para arranjá-los alguma privacidade verdadeira. Juntos, caminharam em direção a um dos muitos cafés dispostos nas ruas movimentadas do centro da cidade.

Depois de deixar Victor decidir pelo lugar, eles se puseram a se movimentar novamente, a curta distância até a loja parecendo mais um abismo do que um quarteirão e meio. Seus passos estavam em sincronia e os arredores carregavam consigo uma atmosfera tranquila e calorosa. Os dois homens caminhavam em silêncio, mas ambos com muito em mente.

O calor suave irradiando ao seu lado era familiar e hipnotizante, e Katsudon se viu caminhando em direção a ele sem nem mesmo pensar no que estava fazendo; estendendo a mão em sua direção, tentando alcançá-lo, desejando-o. Ele só percebeu o que estava fazendo quando sentiu o leve contato de pele contra sua mão. Infelizmente, este partiu rápido demais.

— Hum? — Victor murmurou uma interrogação clara, mas silenciosa, enquanto o olhava de cima. Os centímetros que os separavam nunca pareceram maiores.

Embora Victor se mostrasse um pouco confuso, ele parecia não ter se abalado, aparentemente não pensando nada a respeito do que acabara de acontecer. Enquanto isso, Katsudon queria morrer e esconder até mesmo suas cinzas, a fim de desaparecer completamente deste mundo, sem deixar nem um grama de seu ser para trás; se possível, levaria para o túmulo até mesmo as memórias que as pessoas tinham dele.

Acabar com sua própria existência certamente era a única opção que lhe restava depois de tentar segurar a mão do Victor.

Era assustador como alguns hábitos se prendiam a uma pessoa. Sem nem mesmo pensar, seu corpo havia se movido sozinho, buscando por aquele calor que só Victor era capaz de lhe proporcionar. Parecia certo, até que ele percebeu que não o era.

Com tais pensamentos correndo por sua mente, era impossível evitar de comparar Yuuri e Katsudon. Ambos eram a mesma pessoa, mas ao mesmo tempo eram indivíduos completamente distintos, cada qual com comportamentos e relacionamentos próprios. Duas máscaras carregadas por uma só pessoa. Uma mentira que Katsudon se perguntava por quanto tempo mais iria perseverar. Uma barreira que ele mesmo havia erguido, mas que agora começava a parecer mais com um obstáculo.

Quando chegaram ao café, Katsudon ainda não havia conseguido se acalmar e, se Victor percebeu a forma como suas costas se encontravam anormalmente retas e tensas, não deixou transparecer em seu rosto. Eles se sentaram em uma das mesas mais distantes da porta e se permitiram começar a conversa assim que fizeram o pedido — um café preto para Victor e um cappuccino para Katsudon, que ainda se via ansiando por algo doce, o gosto amargo dentro de sua boca não tendo desaparecido. Victor ficou bastante surpreso com a escolha de seu nêmesis, já que Katsudon sequer costumava colocar açúcar em seu café, mas felizmente manteve seus pensamentos para si mesmo.

— Então? — Katsudon perguntou quando o silêncio se tornou desconfortável demais para o seu gosto. Ele sabia que o silêncio era sua culpa, já que suas expressões provavelmente não eram das melhores no momento devido à turbulência dentro de sua cabeça, então nada mais justo do que ser ele a quebrar o gelo.

Mas quando Victor enfim abriu o bico, Katsudon quase duvidou de seus ouvidos.

— Yurio quer ser um agente secreto — disse Victor, entrelaçando os dedos e descansando a cabeça sobre eles. — Ele é orgulhoso demais pra admitir, mas a maneira como ele olha pra você? É como eu costumava olhar para o meu velho: com olhos grandes, brilhantes e cheios de admiração. 

— Quê?

Katsudon franziu a testa, pego de surpresa.

Estava o Treinador tentando lhe dizer que esse era o significado por trás do olhar estranho que Yurio havia lançando sobre ele mais cedo? Mas por que logo hoje, dentre todos os dias? Katsudon nem mesmo havia feito algo de especial desta vez.

— Tem certeza? — Havia dúvida na voz de Katsudon, e ele não se preocupou em escondê-la.

— Sim, tenho.

A única razão do silêncio que se sucedeu não ter sido desconfortável foi porque veio acompanhado dos pedidos, os quais foram trazidos por um jovem de uniforme verde. Assim que se viram sozinhos com suas bebidas, o Treinador adicionou um pouco de açúcar ao café e tomou um gole de sua xícara. Enquanto isso, Katsudon ainda tentava digerir todas as informações que haviam sido arremessadas sobre ele.

— Por que ele não disse nada?

— Tenta se colocar no lugar dele. Certamente não é fácil dizer ao seu mentor que você preferiria seguir os passos do nêmesis dele ao invés dos seus.

Katsudon foi forçado a admitir que suas palavras faziam algum sentido. Mesmo que ele quisesse negar a possibilidade que lhe foi apresentada — já que era por demais ridícula —, era bastante difícil fazer isso quando o Treinador apresentava argumentos tão convincentes.

— Tenho certeza de que Yurio apenas não sabe como me contar — acrescentou o vilão entre um gole e outro.

— E... Você está okay com isso?

— Não seja estúpido! Estou de coração partido!

O Treinador bateu sua xícara na mesa e fechou os olhos pelo mais breve dos segundos. Ele respirou fundo a fim de se acalmar e Katsudon observou atentamente a subida e descida do seu tórax. Atado pela sensação de que ainda não era sua vez de falar, Katsudon ficou quieto.

— Mas já que é você, vou permitir — disse o vilão, por fim. — Você pode levá-lo. Eu entendo porque ele te admira, afinal.

O sorriso que o Treinador lançou em sua direção lhe causou um dano consideravelmente grande; Katsudon apenas torcia para que não fosse irreparável. Enquanto se atentava à sua própria bebida, a qual permanecera praticamente intocada até então, o agente podia fazer nada além de rezar para que o sabor doce do cappuccino ajudasse seu coração a se acalmar.

— Entendo — foi tudo o que ele foi capaz de dizer.

— Além disso... Sobre o rastreador do outro dia, e sobre segui-lo mais cedo, desculpe.

O vilão baixou a cabeça, seu cabelo caindo para frente e cobrindo seus olhos. Katsudon se sobressaltou em sua cadeira, desejando alcançá-lo e fazê-lo parar, mas sem certeza de como fazer isso. Por hábito, moveu as mãos a esmo pelo ar, mas como nenhuma palavra saiu de sua boca, o gesto acabou sendo inútil.

— Eu queria saber onde fica a sede da SOAP pra poder ajudar o Yurio com o sonho dele. Mas, ainda assim, foi errado de minha parte fazer esse tipo de coisa, e espero que possa me perdoar por ter te seguindo. 

Com seu nêmesis soando tão honesto, tão verdadeiramente arrependido, como Katsudon poderia jamais pensar em usar o que havia acontecido contra ele?

Relaxando em sua cadeira, Katsudon coçou a cabeça por breves instantes. Não havia realmente nada que ele precisasse pensar a respeito, então as palavras vieram com bastante facilidade até ele. Ele bateu de leve no braço do Treinador, a fim de fazê-lo erguer a cabeça, e seus olhos se encontraram imediatamente.

— Okay, eu vou ajudar. Não se preocupe. E eu posso te perdoar por ter me seguido, só... Não faça isso de novo. 

— Claro! — Victor assentiu vigorosamente. — Então? E agora?

— Vou marcar uma entrevista com o RH. Yurio não deve ter problemas para ser aprovado. Ele tem potencial. 

Katsudon estava prestes a apanhar sua xícara quando sua mão foi capturada no meio do caminho. A mão de Victor era tão quente quanto o era em suas lembranças, e o coração de Katsudon batia tão forte que o ecoar de seus batimentos cardíacos alcançava seus ouvidos. Levantando o rosto, encontrou um par de grandes e brilhantes olhos azuis virados para ele.

— Muito, muito obrigado! — Victor agradeceu, e sua voz era tão calorosa quanto a mão que continuava a segurar a dele. O mais puro dos sorrisos também havia se espalhado por seus lábios rosados, roubando o fôlego de Katsudon e fazendo com que fosse impossível para ele desviar o olhar.

Recuando mesmo que com relutância, Katsudon sentiu sua mão esfriar imediatamente. Ele a fechou em torno da xícara fumegante, esperando que isso ajudasse a aquecê-la ao menos um pouco, e olhou para a bebida que já encontrava pela metade.

Seu coração continuava barulhento em seus ouvidos, e tudo que Yuuri conseguia pensar era que ele realmente amava demais aquele homem.

Partindo com o pretexto de ter outro compromisso à sua espera, Katsudon saiu após acenar timidamente para o homem que insistiu em pagar o seu café, e que o observou partir com o mais largo dos sorrisos cobrindo seu rosto.

 

—--

 

A primeira coisa que Victor fez quando retornou para casa foi contar ao Yurio sobre o incrível plano que ele havia orquestrado para descobrir a localização da SOAP, e também a parte que seu aprendiz estaria desempenhando em seu grande esquema.

Honestamente, sua expectativa era ser recebido por um acesso de raiva, algumas maldições direcionadas à sua pessoa e talvez até uma tentativa de assassinato; afinal, Victor não havia ainda conhecido alguém que desse mais importância a posição de vilão do que o adolescente mal-humorado que vivia com ele. Yurio sempre dizia, com orgulho e com a cabeça erguida, que um dia se tornaria um grande supervilão, o maior de todos, e que superaria por muito todas as conquistas prévias do Victor.

Ele mostraria ao Victor como se fazia, Yurio disse um milhão de vezes ao longo do ano.

No entanto, para a grande surpresa de Victor e contrariando todas as suas expectativas, Yurio recebeu a notícia relativamente bem; ou talvez fosse mais apropriado dizer que ele não estava nem aí para a tarefa da qual havia sido encarregado. Enquanto Victor explicava sobre a mentira que havia contado ao Katsudon e falava da entrevista que Yurio teria que ir por causa disso, o garoto nem mesmo se deu ao trabalho de desviar o olhar do celular. Fosse qual fosse o assunto do post que ele estava lendo no Twitter, pelo visto era mil vezes mais interessante do que qualquer coisa que Victor tivesse a dizer.

Victor não pôde deixar de achar tudo muito estranho. Pensou que encontraria maior resistência.

— Sério que você não está bravo?

— Porque estaria? — Yurio questionou, finalmente desviando o olhar do aparelho em suas mãos. Ele tinha uma sobrancelha erguida e uma expressão repleta de impaciência, que se direcionava à evidente ignorância de Victor. — É para a missão, não é? Para a infiltração. Vou apenas fazer o que preciso fazer. Nada fora do normal.

Ele não havia esperado uma resposta tão madura por parte dele.

Victor sorriu, sendo forçado a reconhecer o quanto seu pequeno e encrenqueiro aprendiz havia crescido nas últimas semanas. Em tão pouco tempo, a diferença já era gritante. O garoto realmente possuía um futuro brilhante pela frente.

— Além disso, sou seu assistente! Te ajudar com seus planos estúpidos é o meu trabalho! — Yurio acrescentou, apontando em direção a si mesmo, seu polegar tocando o meio do peito.

Naquele momento, Yurio era como um Sol ardente e implacável, um chama ardente e determinada pronta para queimar todos os obstáculos que se colocassem em sua frente. Acima de tudo, ele parecia estar feliz.

Ele finalmente seria útil, bem como sempre desejou.

Havia algo que somente ele podia fazer... Não tinha como Yurio não se sentir pelo menos um pouco especial por causa disso.

 

—--

 

No Instagram, um adolescente se viu enviando uma mensagem bastante rude — nada fora do habitual.

“Ei, porco. Quando vai me levar naquela entrevista? Já tem uma data ou coisa do tipo?”

A pessoa do outro lado, que não se deixou impactar por causa de uma provocação tão infantil, limitou-se a escrever uma resposta curta. Não adiantava arrastar essa conversa mais que o necessário, sendo melhor ir direto ao ponto.

"Estou trabalhando nisso. Não precisa ficar tão ansioso.”

Para Yurio, a mensagem de Katsudon soou como uma provocação, mas ele estava ciente de que essa não havia sido a intenção do porco. Katsudon era simplesmente idiota demais. Afinal, como mais ele poderia ter caído em uma mentira tão estúpida? Ele, Yuuri Plisetsky, do lado dos mocinhos? Sem chance! A própria ideia já o dava nojo. Entretanto, esse conhecimento por si só não foi suficiente para impedir que seu sangue fervesse quando Katsudon lhe enviou um emoticon piscando.

Aquele desgraçado...

Antes que sua ira tivesse chance de possuí-lo, Yurio digitou um “hahaha” e pressionou a tecla de enviar.

Era tudo uma questão de perspectiva, Yurio disse a si mesmo enquanto tentava se acalmar. Ele não estava rindo com o porco burro, mas dele. Do homem que tornou Victor o vilão inútil que ele era hoje. Da pessoa que, de certa forma, era responsável por destruir seus sonhos de infância. Dessa pessoa em específico que ele desejava que não fizesse parte de sua vida, e sobretudo da de Victor.

A fonte de seus problemas.

A pedra dentro de seu sapato, da qual ele mal podia esperar para se livrar.

— É, esse tipo de pensamento realmente ajuda. — Yurio suspirou, sentindo-se um pouco mais leve.

Yurio mal podia esperar para que a verdade viesse à tona. Ele riria abertamente na cara de Katsudon, alto e em bom som, e não tinha a intenção de se conter. Ele mal podia esperar para ver as expressões de choque do homem quando ele fosse atropelado pela verdade, quando descobrisse que tudo havia sido parte de um grande esquema para que Victor se livrasse da SOAP.

O doce sabor da traição e o amargo reconhecimento de que era tudo sua culpa... Isso sim era algo que ele gostaria de ver Katsudon experimentando!

Yurio se sentia como uma criança excitada na noite anterior a um passeio da escola.

Katsudon era tão, tão idiota que Yurio quase sentiu pena dos pais dele por terem dado à luz a alguém tão extrememante burro. Mas, na opinião do Yurio, aquilo era o que ele merecia depois de agir todo amiguinho do seu próprio nêmesis e de confiar nele tão cegamente. Karma, era assim que chamavam.

Olhando para o chat com um sorriso nos lábios, Yurio atentou-se ao seu “hahaha” e torceu para que ele soasse tão monótono quanto era pretendido.

Ele mal podia esperar para ver como esse drama se desenrolaria.

 

—--

 

Sexta-feira. Uma certa manhã, na calçada em frente à Torre de São Petersburgo.

Depois de revisitar o mesmo lugar tantas vezes em um período tão pequeno de tempo, o cenário à frente estava começando a se imprimir em sua retina. Mesmo que fechasse os olhos, ele tinha certeza de que ainda assim seria capaz de descrever o ambiente em detalhes, do tom do asfalto que cobria a rua até a forma como as rachaduras se espraiavam pelas paredes de concreto dos prédios ao redor.

Já era a terceira vez naquela semana que ele se via naquela posição: parado no meio de uma multidão agitada, observando o arranha-céu diante dele, o qual parecia perfurar o céu e mergulhar por entre as nuvens.

Porém, neste exato instante, as coisas não eram iguais a antes; pelo contrário, desta vez, seu motivo para ir à Torre de São Petersburgo poderia inclusive ser considerado um tanto inesperado, além de nem um pouco convencional.

Ele estava lá para apanhar um certo jovem, um assunto que ele esperava resolver rapidamente. Entretanto, o sucesso de suas intenções dependia exclusivamente da boa vontade de seu nêmesis.

 

—--

 

Katsudon subiu de elevador até o último andar, o toque de uma campainha anunciando sua chegada. Quando as portas se abriram, Victor já o aguardava no corredor, seus braços cruzados sobre o peito. Ele estava casualmente apoiando seu peso na parede e, quando seus olhos se encontraram, Victor sorriu e acenou com uma de suas mãos brevemente.

As roupas que Victor estava vestindo não eram nada de especial, apenas uma boa e velha camiseta e calça moletom, mas Yuuri ainda assim se viu admirando a vista. Os olhos de Victor brilhavam em um tom profundo de azul claro, mais belo do que o céu em uma doce memória de infância, e seu cabelo se encontrava um tom mais escuro que o habitual, parecendo levemente úmido e um tanto bagunçado, fios rebeldes dando as caras aqui e acolá. Ele cheirava bem, como se tivesse acabado de sair do chuveiro. Sério... Não importava o que Victor vestia, ou quão cedo era, ele sempre estava extremamente bonito.

— Por favor, entre — Victor disse enquanto se virava, gesticulando para que Katsudon o seguisse.

Caminhando dois passos atrás de seu anfitrião, o agente o seguiu até a sala de estar, onde Victor lhe disse para se sentar um pouco enquanto ele dava uma olhada no Yurio, para ver se o adolescente estava pronto para ir.

— Já volto. Fique à vontade.

Katsudon acenou com a cabeça. Ele podia sentir que seu corpo estava rígido, mas não conseguia relaxar ainda assim.

Ele se sentou na cadeira que estava mais próxima, mais ereto do que de costume, mantendo as mãos firmes e os punhos tensos sobre o colo. Ele olhou ao redor com a intenção de se distrair, mas o lugar não parecia nada diferente do que das demais vezes que esteve ali. Ele não tinha ideia de porque estava se sentindo tão nervoso, porém estava disposto a culpar Victor por aparecer diante dele daquele jeito tão cedo pela manhã. Certamente não era bom para seu coração.

Ele se perguntou por Makkachin, mas não conseguiu vê-la em canto algum. A cadela provavelmente estava descansando em algum lugar mais adentro na casa.

Quando seus ouvidos o alertaram do som de passos, Katsudon ergueu os olhos para encontrar Yurio e Victor diante dele. Seu corpo imediatamente relaxou e ele notou que um sorriso havia surgido em seus lábios antes que pudesse o conter.

Yurio estava tão ereto quanto Katsudon estivera poucos segundos atrás, vestindo um terno cinza, uma camisa branca e uma gravata que era tão preta quanto o céu em uma noite sem lua. Seu cabelo loiro rebelde também se encontrava mais arrumado do que de costume, preso atrás da cabeça em um rabo de cavalo curto. Ele parecia estar desconfortável, o franzir de seus lábios completamente visivelmente, e o homem ao lado dele tinha o sorriso mais orgulhoso que Katsudon já viu em seu rosto.

O sorriso do próprio Katsudon ficou mais largo quando ele olhou mais de perto o par à sua frente.

— Está elegante — falou Katsudon, por fim. Então, depois de deixar os próximos segundos passarem em meio a um silêncio desconfortável, ele acrescentou: — Mas por que está vestido assim?

Os olhos de Yurio se arregalaram e ele imediatamente se virou em direção ao Victor, que a essa altura já havia perdido a luta contra sua compostura e estava inclinado para frente enquanto ria baixinho. Katsudon coçou a lateral da cabeça, perguntando-se se deveria dizer algo ou se era melhor deixá-los resolver seus próprios problemas sozinhos.

Depois de pisar com força no pé de Victor, fazendo o homem pular de dor, o adolescente, irritado, virou-se e caminhou em direção ao seu quarto, fumegando pelas orelhas e batendo os pés no chão enquanto saía da sala de estar.

Quando Katsudon percebeu que apenas ele e Victor restavam no cômodo, deu um passo para mais perto dele, em direção ao seu arqui-inimigo, uma pergunta pendurada na ponta de sua língua.

— Por que você fez isso? — ele sussurrou.

— Parecia divertido — Victor respondeu, radiante.

Katsudon balançou a cabeça, suspirando dramaticamente perante as travessuras de seu nêmesis. Pobre Yurio. Não o admirava ele ter problemas de confiança.

Quando Yurio retornou poucos minutos depois, já havia se livrado da gravata e do terno, trocando-o por um casaco preto grosso com estampas de leopardo nos braços. Sua camisa branca também estava um pouco mais aberta, os primeiros botões tendo sido quase que arrancados enquanto Yurio corrigia seu visual. Seu cabelo ainda se encontrava preso, mas alguns fios despontavam aqui e ali, talvez em um gesto de rebeldia. Basicamente, ele parecia um delinquente.

Katsudon não tinha mais certeza se o garoto estava indo para uma entrevista ou para começar uma briga com os Recursos Humanos.

Com o relógio já batucando em seus ouvidos, o tempo os encurralando cada vez mais, Yurio e Katsudon partiram, Victor acompanhando os dois até o átrio e lhes fazendo companhia enquanto esperavam pelo elevador. Eles permaneceram em grande parte em silêncio, exceto pelas poucas palavras de provocação que Victor atirou esporadicamente na direção de Yurio.

Assim que o elevador chegou ao andar, Katsudon entrou e esperou. Yurio ficou parado, olhando para Victor de forma penetrante, o ar ao redor deles tão tenso que era quase sufocante. Nenhum deles disse uma palavra sequer.

Ao agente sobrou nada além de supor que uma despedida estava a caminho, uma última troca de palavras entre aprendiz e mentor. Por respeito, ele não apressou Yurio, permitindo que ele demorasse o quanto precisasse. Não havia como saber o que seria do relacionamento deles depois dessa entrevista, afinal de contas. Não era estranho que as palavras não estivessem vindo facilmente para ambos naquele momento, mas essas palavras ainda assim deviam ser ditas, ou então elas poderiam — iriam — se tornar um arrependimento em suas vidas.

Ele esperou, pacientemente.

Então, de repente e contrariando todas as expectativas que Katsudon havia criado, o adolescente sorriu largamente, um sorriso brotando em seu rosto e indo de orelha a orelha. Ele olhou para Victor, seus polegares erguidos com orgulho. Victor riu brevemente e acenou enquanto escondia um sorriso atrás de uma de suas mãos.

Katsudon não tinha tanta certeza de que tinha entendido o que estava acontecendo, mas pelo menos eles pareciam felizes, e no final isso era tudo que importava. Por isso, ele sorriu também.

 

—--

 

Depois de sair da Torre de São Petersburgo, Yurio manteve-se em silenciosa contemplação, rondando os olhos pela multidão agitada e esperando até que Katsudon lhe dissesse para onde seguir. Ele duvidava que o porco tivesse um carro, pois ele cheirava a transporte público, então provavelmente o próximo passo seria pedir um táxi ou talvez até mesmo, quem sabe, apanhar um ônibus.

— Bem, vamos? — o porco perguntou, soando amigável demais para o gosto do adolescente.

Mantendo seu papel em mente, Yurio se forçou a sorrir e anuiu a cabeça, caminhando para o lado de Katsudon e seguindo-o de perto enquanto o homem facilmente cortava caminho através da densa massa de pessoas que circulava no centro da cidade. Apesar de que cada uma dessas pessoas tivesse seu próprio destino, a maioria estava se encaminhando para o trabalho; a rotina enfadonha e cansativa de um adulto funcional. Uma das razões pelas quais Yurio queria tanto ser um supervilão era porque ele não queria se ver preso a uma rotina tão monótona. Ele queria que sua vida fosse sempre emocionante, e desejava ter a liberdade de fazer o que quisesse.

Nem um minuto havia se passado quando Yurio se viu olhando para o homem silencioso ao lado dele. Vestido em um terno preto, uma gravata feia pendurada na frente do peito, e com os fios escuros de seu cabelo devidamente penteados para trás, o porco não parecia lá muito diferente do bando de assalariados que lotavam as ruas. Todavia, ao mesmo tempo, a maneira como ele se movia e a força presente em seus olhos castanhos eram suficientes para separá-lo do resto.

Uma peça que não se encaixava lá muito bem no conjunto, mas que ainda assim caminhava em meio às demais fingindo ser uma delas, essa era a impressão que Yurio tinha ao olhar para Katsudon.

Enquanto o Treinador era como um Sol escaldante que convidava as pessoas a olhar para ele mesmo que isso fosse ferir seus olhos, Katsudon era como uma sombra silenciosa tomando conta do Sol e garantindo que sua luz não causaria nenhum dano irreparável, mantendo-o sob controle. Ou assim era suposto de ser. Para Yurio, no entanto, eles geralmente estavam mais para um meio-termo, com ambos fazendo um péssimo trabalho em cada uma de suas frentes. Eles eram como um dia nublado — tedioso e meia-boca.

Percebendo o quanto eles já haviam caminhado e enumerando todos os pontos de ônibus e táxis que eles haviam deixado para trás, Yurio começou a se perguntar se Katsudon estava planejando realizar todo o trajeto até a sede da SOAP a pé. Ou talvez alguém os estivesse esperando em uma das ruas menos movimentadas; essa também era uma opção.

Ele estava prestes a dar voz à sua pergunta quando Katsudon parou de repente.

Yurio analisou os arredores brevemente, confuso, procurando junto à rua algum sinal de um carro aguardando por eles. Katsudon, no entanto, indo contra suas expectativas, virou na direção oposta, dando as costas para a rua e caminhando em direção a um dos prédios altos e imponentes presentes no centro congestionado.

Quando percebeu que Yurio ainda não havia seguido atrás dele, Katsudon parou e se voltou em sua direção. Ele tinha uma sobrancelha erguida e uma mão descansando na cintura.

— Você não vem? Nós já chegamos.

Yurio estava completamente perdido, mas foi atrás dele mesmo assim.

O prédio ao qual eles estavam se dirigindo não era nem um pouco extraordinário, assemelhando-se muito a todos os outros que se encontravam ao seu redor; além disso, estava localizado a apenas dois quarteirões da Torre de São Petersburgo. O quartel-general do inimigo esteva realmente bem debaixo do nariz deles esse tempo todo? Ou isso era uma armadilha? As perguntas espiralaram sem parar dentro da cabeça do jovem, seus pensamentos correndo sem rumo e indo a lugar nenhum. Yurio concluiu que não tinha opção a não ser esperar para ver.

Quando eles adentraram o prédio, Yurio percebeu que ele era ainda mais normal do que ele havia imaginado inicialmente. Havia uma mesa em uma lateral, alguns sofás do outro lado da sala e os elevadores que levavam aos andares superiores se encontravam bloqueados por uma catraca, mantendo seu acesso restrito a pessoal autorizado.

Yurio não sabia o que pensar, mas seguiu atrás de Katsudon assim que ele começou a se mover novamente. Eles caminharam em direção à mesa, onde uma moça sorridente os aguardava.

— Bom dia, Katsudon. Tem negócios a tratar aqui hoje?

— Sim. Estou o acompanhando. Ele tem uma entrevista.

— Oh, é mesmo? Boa sorte, então — a moça disse, seu tom amigável.

— Obrigado. — Yurio não sabia o que mais dizer.

— Pode me entregar seus documentos por um momento? Preciso fazer o seu cadastro. 

Apanhando a carteira no bolso de sua calça, Yurio entregou todos os documentos que a moça havia pedido e manteve-se desconfortavelmente imóvel enquanto ela tirava sua foto. Ao seu lado, Katsudon assistia a tudo com um pequeno sorriso dançando em seus lábios, parecendo mais satisfeito com a situação do que deveria.

Depois que essas pequenas formalidades foram resolvidas, Yurio caminhou em direção aos elevadores, um pedaço de papel preso dentro de sua mão. Katsudon andava alguns passos à frente, olhando para trás de vez em quando para ver como Yurio estava e se ele o acompanhava adequadamente. Enquanto Katsudon parecia estar relaxado e despreocupado, Yurio estava ocupado lutando uma guerra contra si mesmo, fazendo o possível para manter seu papel em mente e para impedir que suas expressões o entregassem. No entanto, ele estava começando a se sentir nervoso demais para seu próprio bem — além de um tanto excitado pelo que estava por vir.

Ele olhou para baixo e esperou que isso bastasse para esconder seu sorriso malicioso.

Antes de entrar no elevador, Yurio bateu a parte de trás de um de seus sapatos contra o chão — um gesto discreto que não seria captado nem pelo mais atento dos olhares. Com o rastreador agora ativo e operante, era só uma questão de tempo até que Victor — não, até que o Treinador viesse até ele.

E então a diversão realmente teria início.

 

—--

 

Victor se encontrava deitado no sofá, comendo cereal de uma uma tigela e assistindo ao noticiário enquanto relaxava na companhia de sua cadela, quando seu celular começou a tocar. Makkachin imediatamente saltou do sofá, assustada pelo barulho, e Victor imediatamente se viu sentindo falta do calor que estava até então recostado em suas pernas. Sentando-se direito e apanhando seu telefone, Victor desbloqueou-o com um deslizar rápido de seu dedo.

Ele já sabia muito bem o que esperar, visto que esteve esperando por isso esse tempo todo. O alarme era para alertá-lo da chegada do sinal de Yurio, o rastreador que eles esconderam na sola de seu sapato avisando-o que aquela era sua deixa para subir ao palco.

Checando o relógio, Victor só conseguiu pensar: "Que rápido!"

Sem perder tempo, ele largou sua tigela sobre a mesa da cozinha — ele podia muito bem cuidar dela depois que voltasse — e foi em direção ao seu quarto para se trocar, substituindo as roupas de casa que estava vestindo por um terno azul marinho. Com seu novo visual impecável, seu cabelo penteado exatamente do jeito que ele mais gostava, ele tinha certeza de que estava tal qual um trabalhador qualquer, e estava certo de que seria capaz de se camuflar com sucesso em meio à multidão.

Após apalpar o volume em seu bolso a fim de se certificar de que não estava esquecendo nada, o vilão se dirigiu em direção ao átrio. O mais rápido que era possível, o elevador desceu até o térreo. E enfim, com confiança perceptível em cada um de seus passos, ele mergulhou de cabeça nas ruas movimentadas.

Do lado de fora, ele tinha um olho virado para a frente, observando os transeuntes que vinham em sua direção para que não colidisse com nenhum deles; o outro, enquanto isso, olhava para o celular, checando no mapa o lugar que era supostamente o seu destino: a sede da SOAP.

Quando seus passos enfim cessaram, ele se viu parado diante de um prédio comercial que, apesar de não ser tão alto quanto a Torre de São Petersburgo, era mais largo e volumoso. Sem se permitir um segundo sequer para se sentir surpreso com a completa quebra de suas expectativas, ele adentrou a construção.

Havia uma moça na recepção, e em cima de sua cabeça estava pendurada uma placa com o nome de todos os escritórios e serviços disponíveis. Localizado em três andares no meio do prédio, lá estava: SOAP, que na verdade chamava “Setor de Observação e Alerta de Perigo” aparentemente.

Agora que ele se via cara a cara com o nome da organização, percebia que ele não soava totalmente estranho. Katsudon deu a ele um cartão de visita quando se conheceram, não deu? Talvez seja por essa razão que o nome lhe dava uma coceira, a sensação bizarra e característica de um déjà-vu.

Depois de correr os olhos pelo quadro uma última vez, ele caminhou em direção à recepcionista, um sorriso encantador estampado nos lábios e olhos cheios de flerte. Ele precisava passar pela catraca, e tinha uma ideia de como fazer isso.

— Bom dia, em que posso ajudar?

— Um bom dia, de fato — Victor cumprimentou e então se apoiou sobre a mesa, tentando encurtar ao máximo a distância entre eles. — Fui convidado a ir ao “Ringue de Gelo”, a agência de moda no quarto andar — Victor mentiu, piscando lentamente com seus cílios compridos. Ela, no entanto, mostrou-se inabalada.

— Entendo. Pode me entregar seus documentos por um momento, por favor, enquanto ligo para avisá-los da sua chegada?

Victor congelou.

Certo... Documentos. E ligações. E dizer às pessoas que você estava chegando... Ele havia se esquecido completamente desses pequenos detalhes. Como ele possuía livre acesso dentro da Torre de São Petersburgo, por ser o proprietário e tals, não estava acostumado a essas formalidades banais.

— Oh, isso não é necessário — ele sorriu largamente.

A recepcionista simplesmente balançou os ombros.

— Regras da empresa.

O sorriso nos lábios da moça se manteve firme, profissional; enquanto isso, Victor estava começando a ter problemas para manter o seu sob controle. Aparentemente, seu plano não foi tão bem pensado quanto imaginava.

Victor se viu sem palavras, mas como a moça o observava com uma sobrancelha erguida e um olhar preenchido por crescente suspeita, Victor não teve alternativa a não ser forçar as palavras para fora, mesmo que ainda estivessem cruas em sua boca.

Ele tossiu, sentindo a garganta seca.

— Esqueci meus documentos em casa. Vou ir buscá-los e volto mais tarde — disse, por fim.

— Okay. Tenha um bom dia — ela respondeu, aquele maldito sorriso comportado ainda pendurado em seus lábios.

Victor lançou-lhe mais um de seus charmosos sorrisos, apenas por uma questão de orgulho, e foi embora. Teria que pensar em um plano B; talvez entrar pelo lado de fora, ou interceptar um entregador e fingir ser ele.

Bem, pelo menos agora ele sabia em quais andares a SOAP estava localizada — do sexto ao oitavo. Já era um começo.

Victor estava prestes a alcançar a porta que levava ao lado de fora quando uma mão pousou em seu ombro, fazendo-o parar e se virar. Um homem de meia-idade e com o cabelo tingido em um vibrante tom de laranja sorria para ele. A princípio, Victor franziu o rosto, descontente por ter sido abordado tão de repente e com tanta familiaridade, mas então viu que o homem havia acabado de sair de dentro do prédio e percebeu que talvez aquela fosse sua chance.

— Sim? — Victor sorriu de forma amigável, dando o seu melhor para ignorar a mão que continuava pousada em seu ombro.

— Você disse que queria ir para o “Ringue de Gelo”? Está interessado em ser um modelo? — O homem parecia animado, gesticulando com a mão enquanto falava em uma velocidade surpreendente; o fato dele não tropeçar em suas próprias palavras era uma conquista por si só. — Oh, eu não sou ninguém suspeito! Na verdade, eu trabalho lá, no Ringue. Sou Josh, um olheiro, e estava prestes a sair para minha ronda diária. Quem diria que eu encontraria uma jóia dessas sem sequer pisar no lado de fora!

O homem parecia realmente animado com sua descoberta, como Victor podia ver claramente na maneira como os olhos de Josh brilhavam como duas supernovas enquanto o olhavam de cima a baixo.

Ele ter sido convidado para esse tipo de trabalho não era nada fora de suas expectativas — afinal, ele tinha plena consciência de sua boa aparência e tinha seus pais a agradecer pela sua boa genética —, mas quem imaginaria que isso aconteceria em um momento tão conveniente.

— Então, gostaria de subir e tentar tirar algumas fotos?

— Isso seria perfeito! Mas... Eu não trouxe meus documentos.

O homem balançou uma de suas mãos diante do rosto, assegurando-o de que isso era irrelevante, e então Josh se virou em direção à recepcionista.

— Vou levar este daqui comigo, okay?

A moça simplesmente anuiu a cabeça, não se dando ao trabalho de oferecer uma resposta mais adequada. Em seus lábios, o sorriso se mantinha firme, o que estava deixando Victor ligeiramente desconfortável. Ela realmente não se importava com nada, e qualquer um podia ver isso em sua atitude.

Seguindo atrás do homem, Victor permitiu que Josh o desse acesso ao saguão do elevador e o acompanhou até o “Ringue de Gelo”. Com sorte, essa questão seria resolvida rapidamente, e então ele poderia se concentrar no que realmente importava.

A SOAP ainda aguardava por ele.

 

—--

 

No final, entre apertos de mão, apresentações, entrevistas, sessões de fotos e muita conversa fiada, Victor perdeu quase uma hora inteira do seu dia no Ringue.

Como esperado, a câmera amou ele, e os funcionários da agência ficaram todos entusiasmados com a possibilidade de Victor assinar um contrato com eles. Josh chegou quase ao ponto de se ajoelhar no chão, pronto para beijar seus pés se isso fosse o necessário para que ele os desse uma resposta positiva naquele exato momento. Tudo o que o olheiro queria era ouvi-lo dizer “sim”, e o mais rápido possível, temendo que o famoso supervilão, cuja presença nas notícias da semana era sempre uma certeza, firmasse um acordo em algum outro lugar. Victor o impediu de se submeter a tal humilhação, obviamente.

Antes de partir, Victor prometeu considerar a oferta — e ele não disse isso da boca para fora. Ele realmente tinha a intenção de pensar seriamente nessa coisa de modelo. Foi divertido, ele tinha que admitir. A ideia de posar de novo no futuro não era algo do qual ele desgostasse, contanto que fosse feito em horas mais apropriadas e não interferisse nas suas demais atividades.

Agora, no entanto, ele tinha uma questão mais urgente com a qual se preocupar. E já havia desperdiçado tempo demais.

Voltando à área dos elevadores, Victor apertou um dos botões e esperou. Porém, ao invés de descer, ele subiu e se encaminhou ao sexto andar.

E assim finalmente começou.

 

—--

 

Na SOAP, duas adolescentes — estagiárias que trabalhavam nos Recursos Humanos — conversavam com a secretária na sala de espera. Elas haviam acabado de chegar para os seus turnos e queriam se assegurar de ter a conversa em dia antes de terem que realmente começar a realizar algum trabalho de verdade.

— Você viu o episódio de ontem à noite?

— Sim... Foi decepcionante. E assim outro se foi, perdido para o abismo sem fim do Super Inferno — uma delas lamentou, fazendo bico e parecendo realmente abalada pelo que havia acontecido no programa. Pelas suas expressões, você pensaria que seu cachorro havia morrido, e não seu personagem fictício favorito.

— Mais uma vitória para os héteros, aparentemente — disse a secretária, seu tom apático.

Enquanto conversavam, o barulho da campainha do elevador alcançou seus ouvidos, mas morreu junto com o resto do ruído de fundo. Considerando o horário, não era de se estranhar que o elevador estivesse tão ocupado, pessoas subindo e descendo em um fluxo tão intenso que não sobrava sequer um segundo para que suas partes mecânicas repousarem; algumas pessoas estavam chegando para trabalhar, outras tinham documentos para levar para os outros andares, então não faltavam motivos para o elevador estar fazendo barulho.

Entretanto, quando um terno azul vibrante passou por elas, cabelo prateado balançando suavemente enquanto o homem caminhava com passos leves e rápidos, tornou-se impossível para as jovens ignorarem seus arredores por mais tempo.

Elas se calaram, observando cada passo do homem com grande expectativa. Ao que ele caminhava, mais e mais olhos se voltavam em sua direção, todos transbordando com reconhecimento. Assim que ele virou e desapareceu em um dos corredores, as três jovens se olharam com a boca aberta.

— Aquele não era o Victor Nikiforov? — perguntou uma delas, a primeira que conseguiu encontrar sua voz.

As demais simplesmente acenaram com a cabeça, suas bocas ainda entreabertas depois de ficarem sem palavras pela visão que havia acabado de refletir em seus olhos.

Virando aqui e acolá e ocasionalmente parando para ler as placas pregadas nas portas, o Treinador caminhou pelos corredores estreitos enquanto tentava encontrar seu caminho. Toda vez que alguém se aproximava demais, ele desviava o olhar e fingia ignorância, agindo de forma inocente sempre que pegava os olhos de alguém fixos nele. A pior parte era a falta de habilidade do vilão quando o assunto era furtividade. Embora estivesse fazendo seu melhor para não chamar a atenção, era evidente que não estava dando certo.

Não demorou muito para que o volume dos sussurros aumentasse, transformando-se em murmúrios incompreensíveis.

Alguns fingiam não ver a figura alta vagando pelo prédio.

— Vamos fazer de conta que faz parte da decoração — diziam a si mesmos enquanto olhavam para o lado oposto, desejando mais do tudo se manterem a parte daquela bagunça.

Outros, porém, conversavam entre si, tentando decidir o que deveriam fazer. Como essa situação não estava no Manual de Conduta da Empresa, estavam completamente perdidos.

— Alguém ligou para o Katsudon? — perguntou um senhor de bigode ralo, que parecia estar levemente impaciente, além de muito ansioso.

— Alguns tentaram. Continua caindo na caixa postal — um jovem explicou enquanto digitava em seu telefone.

Uma pergunta navegava pelo escritório, carregada pela maré inquieta que eram os sussurros ansiosos dos empregados, e ela era: em que tipo de emergência Katsudon poderia ter se metido para deixar seu celular desligado enquanto seu nêmesis perambulava pelo escritório da agência como se ali fosse seu playground particular?

— Será melhor ligar para outro agente? — alguns começaram a questionar.

 

—--

 

O relógio tiquetaqueava impacientemente na parede, o ruído do lado de fora soando muito mais interessante do que qualquer coisa que Yurio tenha sido obrigado a ouvir na última uma hora e meia. Ele tentou devanear uma vez, cogitando simplesmente ignorar tudo e qualquer coisa que os dois demais ocupantes do cômodo tivessem a dizer, o assunto sendo ou não a respeito dele, mas como ambos continuavam a pressioná-lo para que participasse da conversa, Yurio acabou se vendo incapaz de fazer como desejava.

Sentado na cadeira à sua direita, Katsudon sorria largamente enquanto jogava sobre Yurio todos os elogios que lhe vinham à mente, contando ao Celestino — quem quer que ele fosse — sobre o potencial que sempre enxergou no jovem adolescente.

— Ele tem tudo pra ser um grande agente! Um dos melhores — falou Katsudon, e Yurio desviou o olhar, fingindo não ter ficado nem um pouco feliz por causa daquelas palavras.

Infelizmente, assim como seu mentor, Yurio também não era um ator lá muito bom. Manter o constrangimento sob controle logo começou a ser uma tarefa complicada, suas bochechas ficando mornas e as palmas das mãos suadas.

Ele era frágil perante elogios; sempre foi, e não parecia que isso mudaria tão cedo.

 

—--

 

Depois de andar a esmo pelo que o Treinador considerou tempo demasiado, sem conseguir de forma alguma encontrar seu caminho, era de se esperar que ele começasse a se sentir desanimado por estar perdido há tanto tempo. Mesmo que a sede da SOAP fosse praticamente um labirinto, sua total incapacidade de alcançar o destino que almejava ainda foi um choque para ele.

O Treinador costumava ser alguém sereno, sempre com o mundo na palma da mão, mas mesmo assim ele havia, de alguma forma, conseguido se perder dentro de um escritório... Ele nunca poderia deixar Katsudon, Yurio ou Yuuri saberem disso. Seria mortificante demais.

Então, quando enfim viu um rosto que reconhecia, era de se esperar que se sentisse consideravelmente feliz.

O jovem — vinte e poucos anos nas costas, pele bronzeada e cabelo preto curto, um amigo próximo de Yuuri e alguém que Victor viu inúmeras vezes em Yu-topia — caminhava com fones nos ouvidos e uma pilha de papéis nas mãos, os quais seu olhos analisavam atentamente enquanto se direcionava para onde quer que estivesse indo.

Phichit — tinha quase certeza de que era assim que Yuuri havia o chamado — aparentava estar ocupado, e nem mesmo pareceu notar a presença do vilão, não dispondo de tempo para repartir sua atenção com outras coisas. Enquanto isso, mesmo com o Treinador desejando se sentir surpreso pelo fato de o amigo mais próximo de Yuuri ser um funcionário da SOAP, ele não tinha tempo para deixar o pensamento correr solto e se desmembrar em questões cada vez maiores, pois Phichit estava indo embora e deixando-o para trás, e o Treinador precisava ir atrás dele antes que perdesse de vista a única luz que conseguiu encontrar após tanto tempo.

Deixando uma distância considerável entre eles, o Treinador seguiu atrás do jovem, atento às pessoas ao seu redor, as quais não paravam de olhar para ele. Talvez seu disfarce não fosse bom o bastante, afinal. Não permitindo que sua recém-adquirida preocupação o distraísse, ele fez questão de não perder Phichit de vista.

Phichit virou à esquerda, depois à direita e finalmente à esquerda de novo, o tempo todo mantendo sua atenção reservada aos papéis que tinha em mãos. Victor foi atrás dele, seguindo-o da forma mais silenciosa que conseguia, fazendo o possível para se manter oculto. Sua vida, porém, seria mais fácil se as pessoas parassem de olhar fixamente para ele.

Quando o jovem enfim abandonou o corredor e adentrou em uma das salas, o Treinador acelerou seus passos a fim de ver a placa pregada na porta. Nela estava escrito: “Setor de Desenvolvimento e Manutenção”, o que fez surgir um sorriso nos lábios do vilão. Curiosamente, Phichit havia se dirigido ao exato lugar que o Treinador pretendia ir. Isso que era sorte!

Porém, antes que o Treinador pudesse seguir atrás de Phichit, invadir o laboratório e colocar a última etapa de seu plano em ação, alguém entrou em seu caminho.

O traje preto que o homem vestia era familiar até nos mínimos detalhes, dos botões do terno à forma como o tecido abraçava o corpo da pessoa em um ajuste perfeito, informando a qualquer um que fosse conhecedor do assunto que a roupa tinha sido feita sob medida para aquele indivíduo em específico. Era uma visão com a qual o Treinador se deparou inúmeras vezes nos últimos dois anos. Entretanto, antes mesmo que seus olhos alcançassem o rosto do agente, o Treinador já se viu com cem por cento de certeza que aquele homem — aquele agente — não era o seu nêmesis. Em volta de seu pescoço havia uma gravata borboleta, tingida em um tom sóbrio de roxo, de bom gosto demais para pertencer ao Katsudon.

O agente diante dele era jovem, tendo não mais que vinte anos, e seu sorriso quase dividia seu rosto em dois de tão largo que era. Ele tinha uma das mãos à frente, pairando no ar em uma pose pomposa.

— Parado! Nem mesmo mais um passo, a não ser que queira sentir a ira do Rei! — ele avisou, mas o sorriso em seus lábios não estava ajudando muito em fazê-lo parecer ameaçador.

O agente — Rei — jogou o cabelo para longe do rosto, dramaticamente, e então posou com seus dedos formando dois “J” por alguma razão; mas, como se percebendo que havia cometido um erro, ele rapidamente mudou para um único “K”.

— É o K. Style! — ele exclamou, por fim.

O Treinador estava se sentindo consideravelmente confuso, mas não sabia se queria fazer perguntas.

Mais importante, ele se viu incapaz de desviar o olhar daquela gravata borboleta. Por que Katsudon não podia vestir algo assim? Parecia muito melhor do que aquela coisa que ele estava sempre usando!

“Se ele tem opções, por que escolher a pior de todas?”, ele se perguntou, angustiado.

Alertado por seus sentidos aguçados, o Treinador deu um passo para o lado, esquivando-se do soco que veio em sua direção quando ele estava distraído sonhando acordado. O golpe não havia sido muito veloz, mas o vilão estava certo de que ele carregava uma força considerável visto o vento que zumbiu em seus ouvidos.

O Treinador olhou para frente e encontrou um par de olhos azuis acinzentados sorrindo para ele.

O agente estava saltando, esquerda, direita, esquerda, direita, os punhos erguidos e próximos ao corpo. O sorriso no rosto do Rei era tão confiante quanto o de Victor normalmente era. O Treinador o olhava com atenção, observando enquanto o agente lançava socos futilmente contra o ar à sua frente, talvez tentando parecer intimidante.

— Um boxeador, hum? — o vilão murmurou e se posicionou para a luta.

O Treinador não estava sorrindo.

Honestamente, ele preferia não ter que fazer isso. A ideia de ir contra alguém que não fosse Katsudon parecia errada, como se ele o estivesse traindo com outro agente. Porém, ele realmente não tinha escolha, já que precisava passar por ele. Alcançar o laboratório era uma questão de extrema importância, e ele já havia chegado longe demais para desistir agora.

Quando Rei lançou-lhe outro soco, o Treinador não perdeu tempo. Ele bloqueou, acolhendo o forte soco em uma de suas mãos como se não fosse nada. Rei imediatamente recuou e deu um passo extra para trás, fingindo não estar surpreso, mas sendo traído pelo olhar em seus olhos e pela oscilação suave de seu sorriso.

Uma segunda vez, ele foi para cima do vilão diante dele, mais rápido, mas não o suficiente. Victor acertou seu braço, empurrando-o para fora do caminho, e deu um passo à frente, depois outro, até que a distância entre seus rostos fosse mínima. Alarmado, o agente deu um passo para trás, tentando escapar daquela perigosa proximidade, mas seu nervosismo apenas o fez tropeçar em seus próprios pés e cair de bunda.

O Treinador olhou o jovem de cima, olhos azuis gélidos e sem um pingo sequer de pena, e concluiu que aquele era o fim da luta.

Ele não tinha dado nem dois passos para longe do jovem caído quando algo veio em sua direção uma vez mais, silenciosa e rapidamente. O Treinador se esquivou bem a tempo, escapando por um triz da lâmina que quase cortou sua bochecha ao meio.

Virando-se por completo, encontrou o agente de pé novamente.

— Aonde pensa que vai? Isso ainda não acabou. — Rei continuava sorrindo.

Dentro do aperto de sua mão havia uma gravata borboleta, a qual havia dado ao agente a centelha de coragem que ele estava precisando para continuar insistindo nessa luta sem sentido. Ele parecia orgulhoso de si mesmo, determinação ardendo fortemente em seus olhos.

 — Desistir no meio de uma briga não é muito o estilo do J... K.!

— Então isso é uma arma — o Treinador murmurou, sua voz um pouco apenas mais alta que um sussurro, seus olhos observando de perto as lâminas finas e discretas posicionadas em ambas as extremidades da gravata. — Isso é perigoso.

— Certamente que é!

Rei não enrolou mais e foi novamente para cima do vilão.

Balançando a gravata borboleta do jeito que estava, era claro como uma tarde límpida de verão que Rei tinha a plena intenção de cortar o vilão e fazê-lo sangrar por todo o chão. Felizmente, ele não era muito rápido. Além disso, quanto mais o agente se movia, mais cansado ficava, e Rei já estava começando a exibir as consequências de seu estilo de combate, o qual consistia em uma quantidade elevada de movimentos desnecessários, tornando-o nem um pouco prático, especialmente em uma luta contra alguém que era evidentemente mais forte do que ele.

Logo, seus movimentos começaram a ficar mais lentos.

Não demorou muito para que Rei se visse completamente ofegante, suor escorrendo pela lateral de seu rosto e descendo em direção ao pescoço. Enquanto isso, o Treinador ainda se mostrava inabalado, seu batimento cardíaco somente um pouco mais rápido do que normalmente o era.

Um se curvando sobre o estômago, uma dor aguda perfurando suas entranhas; o outro com os braços cruzados enquanto esperava pacientemente para que seu oponente recuperasse o fôlego. Olhando para eles naquele momento, alguém poderia se perguntar quem era realmente o mais jovem entre eles.

Ainda assim, aquela lâmina continuava sendo um problema.

O Treinador endireitou as costas e alongou os braços enquanto aguardava o Rei se recuperar. Se não fosse cauteloso, poderia acabar com um corte atravessando seu peito — ou pior, poderia arruinar seu belo rosto.

“Talvez não seja tão ruim assim Katsudon não ter uma gravata dessas”, o Treinador não disse, mantendo seus pensamentos para si mesmo.

Coloque uma arma dessas nas mãos de alguém tão veloz quanto Katsudon e até o Treinador teria seus dias contados; ou assim seria se seu nêmesis realmente tivesse a intenção de acabar com ele, ou mesmo de lhe causar algum ferimento grave. No momento, os dois estavam satisfeitos com o jeito que as coisas eram atualmente, ou seja, decidir o resultado das lutas após trocar alguns socos e chutes. Não havia sentido em exagerar ou tornar a luta desnecessariamente longa e cansativa.

Então, talvez, a gravata borboleta acabasse se tornando mais uma decoração do que qualquer outra coisa se fosse entregue ao Katsudon. Uma decoração bonita, estilosa e perigosa.

Mas acidentes sempre podiam acontecer. Ele queria mesmo correr esse risco?

Ele iria realmente querer correr o risco de ser cortado acidentalmente no meio de uma luta? Iria querer correr o risco de ter de ver Katsudon em meio a um ataque de ansiedade, surtando por fazer algo que não pretendia? Victor realmente queria correr o risco de que Katsudon o deixasse porque era incapaz de encarar a cicatriz que ele mesmo havia deixado em seu nêmesis? Claro, esse era o pior cenário possível. Provavelmente nada disso aconteceria. Mas… E se?

No final, Victor foi incapaz de decidir se queria ou não que seu nêmesis tivesse aquele tipo de arma em mãos. Deveria ter esperado por isso. Nunca que um dilema tão grande poderia ser resolvido tão facilmente.

Alheio ao monólogo interno do Treinador, Rei respirou fundo uma última vez antes de voltar à sua posição de luta. Ele parecia pronto para continuar tentando por quanto tempo fosse necessário, mesmo que seu suor se transformasse em sangue. Um sorriso confiante permanecia em seu rosto, e isso apenas servia para mostrar o quão teimoso ele era; e também o quão orgulhoso e estúpido para não reconhecer a hora de desistir.

O Treinador não teria alternativa além de encerrar essa luta ele mesmo, aparentemente.

Quando outro golpe veio até ele, a lâmina cintilando sob a iluminação do corredor, o Treinador desviou-o com um chute. A gravata borboleta saiu voando, escapando das mãos do agente e caindo no chão, rolando até finalmente parar em um canto afastado de ambos.

Um momento de silêncio.

O Treinador esperava que isso bastasse para fazer o jovem agente desistir. Infelizmente, ele logo percebeu que não seria assim tão simples. Rei ainda tinha o olhar fixo na gravata borboleta, suas intenções claras em seus olhos.

Todavia, antes que seu oponente pudesse tentar recuperar a arma, o Treinador tomou a iniciativa e se colocou entre o agente e a gravata. Rei não pareceu nem um pouco feliz com isso, e a essa altura ele já havia se esquecido completamente de manter um sorriso nos lábios. Ele franzia o rosto, e o olhar intenso que ele estava lançando em direção ao vilão era como um grito ensurdecedor, repetindo: “Não acabou, não acabou, não acabou.”

— Sai da frente! — Rei gritou, sua voz surgindo no fundo de sua garganta, alta e explosiva.

Rei tentou dar-lhe um soco, mas já estava cansado demais para causar qualquer dano real. Foi mais uma ação impulsionada por sua irritação do que qualquer outra coisa.

Ele mesmo causou sua própria derrota.

Os olhos do Rei se arregalaram e, quando percebeu, já estava voando depois de ser atirado no ar. O Treinador o havia arremessado como se ele não pesasse mais do que uma pena. O mundo deu uma volta e o agente fechou os olhos quando viu o chão se aproximar. Victor observou sua reação atentamente, e conseguia somente pensar em como aquela era prova mais do que suficiente da falta de experiência do Rei.

Segurando-o pelo colarinho, o Treinador se certificou de que o jovem agente não se machucaria desnecessariamente com o impacto; afinal, não havia razão para machucá-lo seriamente.

Rei ficou tão chocado com o que havia acontecido e com sua derrota humilhante que nem mesmo tentou se levantar. Seu corpo não tinha mais forças e seu ego havia sido completamente despedaçado. Ele apenas ficou lá, com as costas apoiadas no chão duro e os olhos fixos nas luzes do teto.

Sua boca parecia ser a única parte dele que ainda tinha energias para se mover.

 — Eu posso ter perdido hoje, mas na próxima... — Ele parecia abalado, entristecido pela sua própria fraqueza e inexperiência.

— Tenho certeza que vai encontrar um vilão que vai entender sua força, alguém contra o qual terá prazer em lutar. Assim como foi comigo — Victor disse, indiferente, interrompendo Rei enquanto passava por cima de seu corpo.

Ele não tinha motivos para escutar o que o jovem tinha a dizer, pois só havia uma pessoa que o Treinador desejava ter como oponente e ele não tinha a intenção de abrir exceções.

A luta hoje foi uma exceção, uma anormalidade inevitável nos esquemas da vida. Não haveria uma segunda vez.

Além disso, Rei podia até ser forte, mas ele claramente não tinha a resistência ou a velocidade de Katsudon. Uma luta mais longa contra ele teria sido simplesmente entediante, além de uma perda de tempo maior ainda. Victor, entretanto, decidiu que não havia porque pisar mais ainda em seu ego — não havia razão para destruir o sonho de uma criança — então permaneceu quieto e apenas adentrou o laboratório.

 

—--

 

Phichit estava discutindo com seus companheiros de equipe sobre as atividades que tinham que terminar ao longo do dia, repassando o planejamento de cima a baixo, quando a porta do laboratório se abriu, atraindo a atenção de todos.

Phichit, que esta semana estava atuando como líder substituto enquanto seu superior estava ausente devido a uma conferência — um teste para ver como ele se saía na posição antes de sua promoção ser oficialmente assinada e tornada realidade —, virou-se imediatamente e xingou baixinho, irritado pela interrupção. Ele só esperava que não fosse mais um estagiário perdido, ou alguém perguntando se eles queriam que trouxesse mais café do Starbucks.

Por alguma razão, as pessoas tinham a impressão de que os funcionários do laboratório eram movidos a cafeína e que precisavam ser reabastecidos de tempos em tempos ou ficariam sem bateria. E, bem... Talvez esse até fosse o caso para a maioria dos demais, mas Phichit era mais do tipo que preferia um chazinho, então a suposição meio que o incomodava.

Porém, ao invés de um adolescente nervoso por ter virado uma curva errada enquanto buscava seu caminho, ou um empregado que se sentia tão em casa que simplesmente invadia o lugar quando e como bem entendesse, a visão que o cumprimentou quando se virou foi completamente diferente de tudo o que ele havia antecipado.

Todos encararam o elefante na sala, que estava estudando seus arredores de maneira despreocupada, ainda parado junto à porta. Todos tinham muito a dizer, Phichit tinha certeza, mas ninguém parecia ter coragem de dar voz às palavras. Pelo jeito, Phichit teria de ser aquele a quebrar o gelo.

— Victor — ele começou, mas então se calou ao se dar conta de seu erro. Ele balançou a cabeça e tentou uma segunda vez. — Treinador, o que está fazendo aqui?

O Treinador sorriu, mas seus olhos permaneceram sóbrios.

— Estou no meio de uma operação muito importante. Não precisa se preocupar comigo. Só não fique no meu caminho, okay?

Phichit se perguntou se essas palavras eram supostas de ser uma ameaça.

Quando um de seus colegas segurou seu braço, suas mãos tremendo ligeiramente enquanto implorava para que lhe dissesse o que deveriam fazer nessa situação, Phichit percebeu que sim, aparentemente as palavras do vilão deveriam ser interpretadas como uma ameaça.

Ele, entretanto, não estava nem um pouco assustado — talvez porque via o Treinador primeiro como Victor, o namorado de seu melhor amigo, e depois como o vilão encrenqueiro ao qual todos na cidade estavam tão familiarizados; ou talvez porque ele sabia que o Treinador não machucava as pessoas, pelo menos não intencionalmente; ou talvez ele simplesmente estivesse cansado demais, não conseguindo se importar com mais nada após ter passado tantas noites seguidas em claro tentando finalizar o projeto que lhe daria a promoção que tanto almejava. Ele estava bastante inclinado a acreditar ser a terceira opção.

Neste momento, não havia nada que ele desejasse mais do que voltar ao trabalho. Ele não tinha tempo para lidar com Victor e, além disso, esse era o trabalho do Yuuri, não o dele.

— Beleza. Posso voltar ao trabalho? — Phichit perguntou, dando de ombros, e o Treinador ergueu uma sobrancelha em resposta. — Minha promoção depende desse projeto — explicou, por fim, apontando para os documentos sobre a mesa.

A falta de preocupação de Phichit abalou visivelmente o vilão, que o ficou encarando com a boca aberta até ser enfim capaz de encontrar suas palavras. O Treinador forçou uma tosse seca, tentando disfarçar a falta de compostura que havia demonstrado anteriormente.

— Tudo bem! Vou apenas fazer minhas coisas enquanto você faz as suas!

— Okay — Phichit respondeu, indiferente. Então, ele olhou ao redor, para as expressões atordoadas de seus colegas. — Vocês ouviram. De volta ao trabalho, pessoal.

Seus colegas se entreolharam, perguntas estampadas em seus rostos, mas nenhum deles teve coragem de ir contra as ordens de seu líder interino. Além disso, o Treinador havia dito que não havia problema, então não devia dar em nada... Certo? Quando o olhar impaciente de Phichit os encontrou uma vez mais, todos esqueceram as suas preocupações anteriores e voltaram ao que estavam fazendo antes da entrada do Treinador no recinto. Naquele momento, Phichit parecia ser uma ameaça maior do que o supervilão que estava perambulando pelo laboratório.

Caminhando pelo cômodo, o Treinador não se conteve e abriu todos os armários e gavetas com que cruzou. Documentos confidenciais, plantas de projetos e experimentos futuros, relatórios de avarias encontradas nos equipamentos... Ele olhou tudo, mas sem se atentar verdadeiramente ao conteúdo, tratando todos aqueles documentos como se não fossem mais importantes do que os panfletos entregues nas ruas do centro da cidade.

Phichit tentou manter sua atenção concentrada no que tinha em mãos, mas se viu incapaz de desviar o olhar do Treinador por muito tempo — especialmente quando ele estava sendo tão barulhento. Ele se perguntava o que exatamente ele podia estar procurando.

Qual era a dele?

Phichit balançou a cabeça. “Tenho que terminar este projeto para ser promovido”, ele repetiu dentro de sua mente, não parando até que fosse capaz de manter seu foco no lugar certo. Estudando os documentos sobre a mesa, ele recalculou alguns ângulos do guarda-chuva para que a estrutura acomodasse o impacto de uma bala. Então, ele pediu a dois de seus colegas para que executassem uma simulação no computador enquanto ele verificava a densidade do tecido.

Havia ainda muito a ser feito. Eles não haviam construído até agora um protótipo para ver como as conexões se saiam perante o estresse causado pelo peso — estaria muito pesado? Seria melhor começar a pensar em alternativas para tornar os materiais mais leves, ou melhor esperar para ver como o protótipo se comportava?

— Não tenho tempo a perder — falou a si mesmo enquanto o Treinador se movia atrás dele, tentando várias vezes abrir um armário que estava claramente trancado. Ele balançava a porta sem parar, o barulho tão alto que se tornava distrativo.

Um nervo pulsou irritado na têmpora de Phichit.

— Tenho que focar minha mente nisso aqui — murmurou, pegando a calculadora e se certificando de que os dados no papel estavam corretos. Não havia espaço para erros.

O Treinador continuou sacudindo as portas, teimoso. Quando o barulho finalmente cessou, Phichit suspirou de alívio, pensando que ele havia desistido. Infelizmente, esse não era o caso. O Treinador caminhou até um de seus assistentes, que estava trabalhando no computador junto de outro de seus colegas, e perguntou se eles poderiam lhe emprestar a chave.

O jovem se virou em direção ao Phichit, seus olhos implorando por ajuda e silenciosamente perguntando se devia ou não entregar ao supervilão a chave do estoque. Estava claro que ele não desejava tomar essa decisão ele mesmo, já que não queria ser responsabilizado pelo que quer que acontecesse a seguir.

— Minha promoção… — Phichit sussurrou, como um mantra.

Ele respirou fundo, tentando ignorar tudo o que estava acontecendo ao seu redor. Então, ele se dobrou sobre a mesa, até que suas costas estivessem curvadas de uma forma que certamente doeria mais tarde se ficasse naquela posição por tempo demais. Ele queria encolher seu mundo, até que fosse apenas ele e os papéis à sua frente.

Com régua e lápis em mãos, ele começou a esboçar o chapéu do guarda-chuva, adicionando anotações por toda a planta e preenchendo as bordas do papel com informações relacionadas ao protótipo — como: medidas, detalhes e observações que teriam que ser levadas em consideração posteriormente no projeto. Era apenas um esboço, então não precisava ser perfeito, mas Phichit ainda assim se viu caprichando o máximo possível.

— Não sei… — ele ouviu a voz de seu jovem colega dizer de algum lugar atrás dele. O jovem estava claramente desconfortável, encurralado como um rato que tentava escapar das perigosas garras de um gato ágil.

— Vou apenas dar uma olhada rápida — insistiu o Treinador.

— Mas…

Phichit suspirou alto e, ao endireitar as costas, bateu com os cotovelos na beirada da mesa. Um arrepio percorreu sua espinha, seu cotovelo doendo horrores e latejando por causa do impacto. Ele fechou os olhos por um momento, cerrando os punhos em torno do lápis que tinha em mãos e, quando abriu os olhos novamente, notou que todos estavam olhando para ele, o Treinador incluso.

Aparentemente, estava pedindo demais quando desejou paz para poder trabalhar.

Phichit se virou, seus olhos vermelhos. Visto que já havia sido interrompido, decidiu que era melhor simplesmente lidar com o problema em mãos para poder voltar ao trabalho o mais rápido possível.

Ele se levantou e caminhou em direção ao Treinador, encarando-o durante todo o curto percurso. Ele esperava que seu descontentamento estivesse devidamente claro na carranca presente em seu rosto.

— Apenas me diz logo o que você quer — Phichit exigiu saber, apontando para o vilão com a régua que ele esqueceu de largar sobre a mesa quando se levantou de seu lugar. O lápis também permanecia com ele, preso dentro do aperto de sua outra mão.

Phichit segurou a régua próxima ao rosto do supervilão, a ponta quase que colada ao homem, pairando ameaçadoramente bem acima de seu nariz. Enquanto isso, o cientista descansava sua outra mão na cintura, um gesto que normalmente pareceria relaxado, mas que estava sem dúvidas passando uma impressão inteiramente diferente naquele momento.

O Treinador ergueu as mãos diante do corpo, defensivamente. Ele quase parecia assustado.

— Estou em uma operação importante — ele repetiu, inclinando-se para trás a fim de colocar alguma distância entre a régua e seu rosto, como se temendo que uma lâmina pudesse surgir de repente na ponta. Apesar dos lábios do vilão estarem sorrindo, seus olhos não estavam.

— Seja mais específico. Quanto mais cedo você terminar, mais cedo vou poder voltar ao meu trabalho.

Phichit traçou o contorno do rosto do Treinador com a régua, não o deixando escapar. O sorriso de Victor vacilou por um momento.

— Este é um momento importante da minha carreira e não quero começar a ter uma opinião negativa sobre você só porque entrou no meu caminho na hora errada.

O Treinador piscou, claramente confuso pela sua declaração, e permaneceu com os lábios bem fechados. Embora o vilão não se mostrasse inclinado a falar o que quer que estivesse em sua mente, Phichit não tinha planos de deixá-lo manter as coisas para si por mais tempo. Ele tinha certeza de que isso acabaria se transformando em um problema ainda maior — uma dor de cabeça insuportável — a longo prazo se o deixasse ficar quieto.

— O que foi? — o cientista perguntou, impaciente.

O Treinador engoliu em seco e ergueu ligeiramente as mãos, as quais ainda pairavam no pequeno espaço entre eles.

— Eu estava apenas… — ele começou, mas as palavras logo morreram em sua garganta, recusando-se a sair.

Embora o Treinador não tivesse chegado a quebrar contato visual, ele virou o rosto o máximo que foi capaz. Ao que o vilão caiu em silêncio novamente, Phichit se viu impaciente e ergueu uma sobrancelha, incitando o vilão a dar continuidade à sua explicação.

— Estava me perguntando como você podia ter uma opinião positiva quanto a mim, só isso. Afinal, sou um supervilão — respondeu, por fim.

— E é o namorado do meu melhor amigo — Phichit respondeu apaticamente, revirando os olhos.

O Treinador corou de leve, nunca, nem mesmo em seus sonhos mais doidos, tendo esperado ser recebido por aquelas palavras. Mas não era só surpresa e constrangimento que tomaram conta dele; o vilão também se viu desconfortável pelo sentimento de culpa que se assentou em seu peito. O fato de Phichit aparentemente não ser contra o seu relacionamento com o Yuuri, estando inclusive pronto para lhe oferecer o benefício da dúvida apesar dele ser quem era, também não ajudava a aliviar o peso em sua consciência.

Alguns dos funcionários presentes no laboratório se viraram na direção deles, apenas por um breve instante e movidos por uma curiosidade incontrolável, mas eles tinham plena noção de que era melhor não se meter naquele assunto. Eles rapidamente se ocuparam e voltaram ao trabalho, alguns inclusive tampando seus ouvidos com música alta, tudo para se certificar de que não ouviriam uma palavra sequer sobre o que Phichit e o Treinador tivessem a dizer um para o outro. Às vezes, ignorância era uma bênção.

Ao observar o homem constrangido à sua frente, Phichit sentiu sua raiva se esvair. Permitindo que seu corpo se acalmasse, ele baixou a régua e enfim pôs um fim à sua ameaça. O Treinador relaxou de imediato, um suspiro de alívio escapando por seus lábios.

— E então? — Phichit indagou, e não havia necessidade de perguntar sobre o que ele estava se referindo.

Percebendo que já havia tomado muito do tempo escasso de Phichit, e também desperdiçado muito do seu próprio, o Treinador optou por ir direto ao ponto.

— Tem algo que preciso destruir.

 

—--

        

Yurio e Katsudon haviam acabado de terminar os assuntos que tinham a tratar na SOAP e se encontravam agora rumando em direção à saída, percorrendo os corredores labirínticos do escritório enquanto discutiam o desempenho do jovem na entrevista.

— Você se saiu muito bem — Katsudon elogiou.

Ele olhava para o adolescente ao seu lado com olhos que brilhavam tanto quanto a superfície de um lago cristalino refletindo a luz do sol, expressões repletas de felicidade e orgulho. O agente chegou a dar alguns tapinhas nas costas de Yurio como forma de congratulação, um gesto ao qual o garoto não soube ao certo como reagir.

— Sem chances deles não reconhecerem as suas habilidades! E o seu cérebro! Acho que ninguém nunca tirou uma nota tão alta no exame de admissão, e você é tão jovem também! Viu como o Celestino estava surpreso?

Katsudon riu de leve ao se lembrar da sobrancelha de Celestino se erguendo cada vez mais enquanto ele corrigia o exame de Yurio sem usar a caneta vermelha sequer uma vez. Não havia nenhuma resposta errada, nem mesmo uma vírgula fora do lugar.

Yurio virou o rosto quando Katsudon começou a afogá-lo em elogios, esperando que isso bastasse para esconder o leve rubor que pintou suas bochechas.

— Só um idiota teria errado aquelas perguntas — murmurou, ainda desviando o olhar. No entanto, contrário às suas palavras, ele na verdade estava se sentindo bem orgulhoso de si próprio por ter obtido um resultado tão bom no exame, já que algumas das perguntas lhe deram considerável trabalho.

Se Yurio fosse mais honesto, teria que admitir que hoje foi exaustivo de uma maneira que ele não havia antecipado. Neste exato momento, ele não queria nada além de ir para casa e tirar uma longa e agradável soneca, talvez inclusive dormir até a hora do jantar. Não conseguia se importar com seus livros, ou com seus estudos... Sentia que merecia tirar um tempo para si mesmo e relaxar pelo menos uma vez na vida.

Eles continuaram seguindo em direção à saída, caminhando lado a lado. Katsudon aparentemente não conseguia pensar em outras coisas para falar sobre, visto que não parava de elogiar Yurio de todas as formas possíveis, nem mesmo tentando pular para outro assunto. Yurio estava começando a se sentir por demais envergonhado, então fez a única coisa que sabia que com certeza permitiria que o tópico da conversa mudasse.

— Obrigado — disse, timidamente.

Imediatamente, os olhos de Katsudon se arregalaram. Ele parecia tão surpreso que podia levar alguém a pensar que era a primeira vez que ele ouvia o garoto dizer aquelas palavras — e talvez realmente fosse o caso, Yurio percebeu logo a seguir.

Yurio desviou o rosto uma vez mais, dessa vez sem nem pensar em disfarçar o gesto.

— De nada — respondeu Katsudon.

Yurio tinha certeza de que, naquele exato momento, Katsudon possuía um sorriso extremamente gentil em seu rosto, e ele nem precisava estar cara a cara com ele para saber desse fato. Ele foi plenamente capaz de sentir isso em seus ossos através do arrepio que percorreu sua coluna quando as palavras do agente alcançaram seus ouvidos.

“Só falei aquilo porque preciso fazer com que isso tudo pareça real”, Yurio não disse. Esses pensamentos pertenciam somente a ele.

Ele não tinha intenção de mudar de lado. Para que o plano de Victor fosse bem-sucedido, ele precisava continuar com sua atuação por um pouco mais de tempo, e essa era a única razão pela qual ele manteve seus pensamentos rudes para si mesmo — não porque ele estava na verdade se sentindo um tanto feliz pelas palavras gratificantes que o agente havia compartilhado com ele hoje, ou por todo o cuidado e carinho que ele demonstrou para com ele ao longo do dia. Não estava se sentindo emotivo. Óbvio que não. Ele apenas não podia permitir que Katsud... que o porco suspeitasse de qualquer coisa. Isso era tudo.

A curta viagem através da sede da SOAP acabou se tornando silenciosa após aquela breve troca entre eles, já que Katsudon aparentemente captou a dica, mas por um quarto de segundo Yurio se viu perguntando se teria sido melhor se tivesse ficado calado e permitido que Katsudon continuasse o elogiando. Pelo menos naquela hora ele tinha algo para manter sua mente ocupada. Agora, ele não tinha alternativa se não lidar com seus próprios e incômodos pensamentos.

Ele se perguntava se Victor já havia terminado as coisas do seu lado do plano.

Observando os arredores, constatou que nada parecia estar acontecendo. Não havia caos brotando em canto algum e as pessoas aparentavam estar vivendo suas vidas como de costume. Talvez o plano de seu mentor na verdade não fosse a total destruição da sede, mas algo mais pontual. Ele se viu desejando que Victor tivesse sido mais específico a respeito de suas intenções, pois Yurio se encontrava agora atormentado pela sua curiosidade.

Quando viraram em um dos muitos corredores, Katsudon avistou um de seus colegas na outra ponta do corredor. Só pelas expressões que surgiram em seu rosto, Yurio foi capaz de dizer que eles eram bastante próximos.

— Phichit!

— Hey!

O homem acenou e caminhou na direção deles. Yurio permaneceu estático ao lado de Katsudon, sem pronunciar uma palavra sequer de reconhecimento sobre a chegada do homem. Phichit ergueu uma sobrancelha enquanto encarava o adolescente.

— Quem é o gremlin? — perguntou.

— Gremlin?! — Yurio parecia perplexo, e sua voz sem dúvidas refletira isso.

Katsudon riu brevemente, mas preferia não ter de lidar com o temperamento ruim de Yurio, nem agora nem nunca, então se conteve o máximo que pôde.

— É um conhecido meu. Levei ele para uma entrevista — explicou Katsudon.

— Tenho certeza de que se saiu bem mal — Pichit sorriu e se reclinou em direção ao adolescente, tentando intimidá-lo com sua altura. Yurio, orgulhoso do jeito que era, não recuou ou desviou o olhar.

— Ele se saiu muito bem, na verdade. Tenho certeza que ele vai receber uma oferta para se juntar ao próximo grupo de estagiários — falou Katsudon e sorriu gentilmente para Yurio, que infelizmente não teve opção além de ser submetido a essa tortura desta vez.

O corpo de Yurio estremeceu e ele sentiu uma mistura de calor e fraqueza preenchê-lo por inteiro. Ele sabia que aquele sorriso maldito o deixaria doente, mas não achava que seria assim tão ruim.

Phichit simplesmente anuiu, claramente desinteressado. Então, ele se virou de volta na direção de Katsudon.

— A propósito, você desligou o celular durante a entrevista?

— Claro.

— Imagino que não tenha olhado ele ainda... — Phichit apoiou as mãos nos quadris e sorriu levemente.

— É, não olhei não.

Houve uma pausa. Então, Katsudon franziu a testa, as expressões em seu rosto mostrando que ele finalmente começava a perceber que algo tinha acontecido.

— Por quê? Eu deveria? O que houve?!

Suas perguntas soavam ansiosas, mas continham ainda assim apenas uma pequena fração da turbulência que ele estava sentindo. Ele fez menção de pegar o celular, mas Phichit rapidamente ergueu as mãos e o parou antes que ele pudesse apanhar o dispositivo dentro do bolso.

— Vê isso depois com calma. Mas deve ter um monte de chamadas perdidas — explicou Phichit, tranquilamente, pelo jeito acostumado a lidar com a ansiedade do amigo, conhecendo por isso a melhor forma de lidar com ela.

— O que aconteceu? — Katsudon perguntou. Mesmo que tenha concordado em olhar o telefone mais tarde, não havia chances dele aceitar continuar no escuro sobre o que estava havendo por mais tempo, fosse qual fosse a situação.

— Bem, veja bem... Victor esteve passeando por aqui hoje.

— Quê?! — A voz de Katsudon se elevou em um oitavo, atraindo a atenção das pessoas próximas.

Yurio assistia a tudo em silenciosa contemplação, um sorriso surgindo em seus lábios e lá firmando moradia, sem intenção de partir tão cedo. Era isso, certo? Era provavelmente bem o que ele estava pensando. O plano, seja ele o que for, foi um sucesso.

— Por quê?! — Katsudon perguntou. Yurio não sabia dizer se ele estava mais surpreso ou confuso, mas a expressão em seu rosto era impagável.

Phichit deu de ombros e balançou a cabeça após suspirar alto. Agora que Yurio o olhava mais atentamente, notou que Phichit parecia estar cansado — como se não dormisse bem há dias e, também, como se tivesse acabado de ser envolvido em um drama exaustivo.

— Você vai descobrir bem em breve — disse Phichit, por fim, mas não deu mais detalhes. — Tenho que ir agora para entregar alguns papéis pro Celestino e pra dar a ele algumas atualizações. Falo com você mais tarde.

Katsudon claramente não estava satisfeito com a resposta que Phichit lhe ofereceu, mas sabia que era melhor não segurar seu amigo por mais tempo quando ele parecia ter tanta coisa para fazer. Ele se despediu do colega e observou Phichit desaparecer atrás de uma parede depois que ele virou no final do corredor.

Yurio observou Katsudon por um tempo, atentamente, as mãos enfiadas nos bolsos.

— Seu namorado? — o garoto perguntou e Katsudon se sobressaltou, aparentemente chocado que alguém pudesse ter esse tipo de impressão sobre seu relacionamento com Phichit.

— Um bom amigo — assegurou Katsudon, não querendo que esse mal-entendido se transformasse em problemas maiores no futuro.

Yurio não duvidou de sua resposta, já que sua reação havia sido uma resposta por si só. Ainda assim, ao observar o agente ao seu lado, que estava fugindo de seu olhar como se estivesse escondendo algum tipo de segredo, foi incapaz de ignorar a vontade de continuar bisbilhotando.

— Mas você está saindo com alguém. —  Não era uma pergunta.

Katsudon enrubesceu e se escondeu ainda mais, como se temendo que a verdade estivesse refletida em seus olhos castanhos-escuros. Como Yurio não parava de encará-lo, teimoso e mostrando nenhuma intenção de desistir, Katsudon se rendeu.

— Sim — admitiu, por fim.

Katsudon não falou quem era a pessoa com quem estava saindo, mas isso não importava, afinal Yurio com certeza não conheceria a pessoa de qualquer maneira. Provavelmente era alguém do trabalho, ou alguém que ele conheceu em algum outro lugar. Entretanto, mesmo que a identidade da pessoa fosse um mistério, Yurio ficou bastante satisfeito só de saber que havia alguém já ocupando esse lugar especial dentro do coração do porco. Se havia algo que o adolescente sempre temeu, era que Katsudon e Victor pudessem de alguma forma — por mais ridículo que a ideia soasse — se apaixonar um pelo outro.

Mesmo que Victor estivesse atualmente interessado em outra pessoa, Yurio nunca foi capaz de afirmar com segurança que o coração de seu mentor não vacilaria ao menos um pouco se acontecesse de Katsudon dizer que possuía sentimentos por ele. Mas se Katsudon também estava apaixonado por outrem, então a chance de seu maior medo se tornar realidade era muito baixa, quase impossível.

Ele podia relaxar, finalmente.

— Estou feliz por você — Yurio disse, virando-se para Katsudon. Havia até um sorriso pendurado em seus lábios.

Katsudon mostrou-se um tanto impactado com suas palavras, sua reação imediata tendo sido tossir e olhar para o lado. Então, o agente gesticulou para a frente e eles silenciosamente retomaram a caminhada, alcançando o elevador pouco depois.

A descida foi silenciosa, um estranho desconforto pairando no ar entre eles. A situação deixou Yurio um tanto quanto confuso, mas ele não se viu pensando no assunto por muito tempo, pois, na realidade, ele não se importava.

Havia outras coisas em sua mente agora, como Victor.

Surpreendentemente — ou não —, assim que pisaram fora do prédio, foram recebidos pela visão do exato homem que estivera ocupando os pensamentos de Yurio. Ele olhou para os dois com um sorriso radiante nos lábios, o qual atravessava seu rosto de orelha a orelha. Ele se encontrava recostado à parede atrás dele e se mostrava bastante orgulhoso de si mesmo, a jaqueta azul de seu terno pendurada casualmente em um de seus ombros. Ele estava basicamente posando e algumas pessoas estavam até parando para dar uma olhada, talvez achando que ele estava no meio de uma sessão de fotos ou algo do tipo.

Yurio sorriu, sua excitação quase que insuportável. Ele fechou as mãos em punhos quando as sentiu tremer. Havia muitas coisas que ele queria perguntar, como o que diabos Victor havia feito afinal de contas, já que nada parecia estar fora do habitual nem dentro nem fora do prédio.

A não ser que ele tenha falhado. Entretanto, o tal de Phichit havia dito claramente que Victor tinha feito algo...

Yurio tinha perguntas, uma quantidade muito grande delas.

Incapaz de se manter calado por mais tempo, a turbulência de seus pensamentos demais para ele conseguir suportar, Yurio se pôs a caminhar em direção ao Victor. Porém, ele não deu nem dois passos quando viu as costas de Katsudon surgirem diante dele, o agente caminhando mais rápido graças ao seus passos mais largos.

— O que você fez? — Katsudon perguntou, roubando as palavras da boca de Yurio. Ele parou bem diante de seu nêmesis e o olhou de cima a baixo com suspeita.

Yurio se juntou a eles bem quando Victor se afastou da parede, endireitando-se logo a seguir. Ele ainda estava sorrindo, de forma tão brilhante que alguém poderia se cegar se o encarasse por muito tempo. Aquele sorriso, no entanto, estava fazendo surgir em Yurio o desejo de socá-lo diretamente na fuça por algum motivo desconhecido.

Yurio estava com um mau pressentimento.

Cantarolando um cântico de vitória, o vilão enfiou as mãos nos bolsos. Yurio e Katsudon observavam com atenção cada um de seus movimentos, os quais não carregavam nem um pingo de pressa. Era evidente que ele estava se divertindo com a situação, e apreciando a expectativa que estava cultivando nos dois.

Quando ele finalmente puxou as mãos para fora, jogou neles o que quer que estava carregando dentro dos bolsos. Pequenos pontos azuis cercaram Katsudon e Yurio, que assistiram a cena com expressões igualmente confusas. Ambos estenderam as mãos e apanharam um bocado do confete — era feito de tecido, perceberam.

Tecido... Em um tom extremamente familiar de azul...

Yurio e Katsudon pelo jeito chegaram à mesma conclusão, e ao mesmo tempo, porque ambos imediatamente ergueram os olhos e encararam o vilão diante deles com olhos arregalados igualmente cheios de descrença. Enquanto isso, Victor — não, o Treinador puxou uma lâmina do bolso e deu um passo à frente, em direção ao Katsudon, que não teve tempo de escapar por causa de seu estado de confusão. O Treinador agarrou a gravata que o agente estava usando e a cortou ao meio.

— Vou deixar esta aqui em melhores condições, caso você queira guardá-la de recordação — disse o Treinador com uma piscadela.

Yurio se viu sem palavras. Ele devia ter sabido que permitir que suas expectativas crescessem dessa maneira não podia acabar bem. Ele se sentia enganado e envergonhado por ter participado de um esquema tão ridículo. E pensar que ele até fingiu estar interessado em se tornar um agente como o maldito porco...

Enquanto isso, Katsudon ainda não tinha conseguido absorver o que havia acabado de acontecer. Afinal, fora demais para se digerir de uma vez só. Ele olhava para frente com expressões apáticas, sem reagir e quase que não piscando, sua boca ligeiramente aberta.

Victor, o Treinador, bem, tanto faz... Ele continuava sorrindo largamente, parecendo orgulhoso como se tivesse acabado de matar o presidente.

Sem falar mais uma palavra sequer — já que ele não tinha realmente mais nada a dizer — Victor passou por eles, indo em direção ao caminho que levava à Torre de São Petersburgo. Ele ainda estava cantarolando, sua alegria contagiando a melodia suave e incompreensível que saia de sua boca.

— Vamos, Yurio. Hora de ir pra casa — ele chamou, olhando por cima do ombro quando percebeu que seu aprendiz ainda não tinha se movido e seguido atrás dele.

Yurio piscou e, não vendo outra opção, foi atrás de seu mentor. Seu sangue ainda fervia em suas veias, e sua mente ainda não tinha sido capaz de se acalmar após ser forçada a reconhecer a verdade por trás da situação.

Dentre todas as perguntas que ele desejava verbalizar, uma era dirigida a si mesmo.

Por quê? Por que ele se permitiu acreditar no Victor?

 

—--

 

Os dias que se seguiram passaram rápido demais, Victor ainda se sentindo leve por causa da felicidade que vinha sentindo desde o sucesso da Operação LAST STRAW.

A sensação de retalhar todas aquelas gravatas, o tecido se desfazendo sob seus dedos, fora tão bom que ele se via revisitando a memória dentro de seus sonhos quase todas as noites. Naquela hora, ele estava se sentindo tão feliz, tão realizado, que nem mesmo o olhar de reprovação de Phichit ao vê-lo destruir completamente seu estoque de gravatas foi capaz de estragar seu humor.

Foi como um sonho que se tornou realidade. Uma solução para um problema que o vinha incomodando há muito tempo.

Nos últimos dias, tudo que Victor conseguia pensar era que cor Katsudon escolheria a seguir, para sua nova gravata, aquela que substituiria a coisa horrenda que ele costumava vestir e da qual Victor estava tão aliviado por poder enfim se livrar.

A visão daquele azul horroroso pendurado ao redor do pescoço de Katsudon, estragando completamente a sua beleza... Victor não fazia nem ideia de como ele tinha permitido que aquilo permanecesse por tanto tempo.

Mas agora emergia uma próxima questão, uma nova fonte de preocupação: estava tudo bem em confiar que Katsudon não faria uma segunda escolha ruim?

Para ser completamente honesto, Victor não tinha fé no senso de estilo de seu nêmesis. Certo, sim, claro. Katsudon estava sempre usando as mesmas roupas quando se encontravam — um terno de trabalho, uma camisa branca e sapatos pretos, todos fornecidos pela SOAP — então ele não tinha como saber de que forma seu nêmesis se vestia em suas folgas, porém, alguém que andava em público com um gravata tão horrível quanto aquela estava basicamente pedindo para ter seu bom senso questionado. Por isso, estava dentro do direito de Victor fazer essa suposição, pelo menos na opinião dele.

Felizmente, uma ideia lhe ocorreu uma noite, durante um de seus sonhos.

No sonho, eles estavam lutando de uma maneira que em nada diferia de seus confrontos habituais. No entanto, em meio à familiaridade da situação, havia algo fora do comum, algo que sua própria mente havia adicionado ao cenário — uma gravata turquesa, com um padrão simples e geométrico impresso no pano em finas linhas brancas. Simples, mas bela. Profissional, mas elegante. Além disso, mais importante que tudo, parecia perfeita nele.

E, assim, Victor se decidiu. Ao invés de arriscar que uma segunda tragédia ocorresse ao permitir que Katsudon escolhesse a nova gravata, Victor devia simplesmente tomar essa decisão ele mesmo, através de um presente. Uma forma de compensação, ele o chamaria.

O único problema era como fazer Katsudon vir até ele — ele se via agora sem ideias para planos, tendo gastado todas as suas ideias naquelas improvisações da última vez. Victor considerou perguntar ao Yurio e ver se ele tinha alguma sugestão para compartilhar com ele, mas era difícil fazer isso já que seu aprendiz se trancou em seu quarto desde aquele dia e até agora se recusava a sair quando Victor se encontrava em casa. O porquê dele estar fazendo birra, Victor não tinha ideia.

Mas bem quando as coisas começaram a ficar escuras, uma luz apareceu diante dele.

Ele estava conversando com Yuuri no Whatsapp, combinando o próximo jantar deles, quando percebeu o quão tolo ele vinha sendo esse tempo todo. Por que ele simplesmente não convidava Katsudon para jantar? Eles eram próximos ​​o suficiente para que o convite não parecesse assim tão estranho, e isso lhe daria a oportunidade perfeita para entregar o presente. Era perfeito!

Então, sem perder mais tempo, Victor enviou uma mensagem para seu nêmesis. Ele provavelmente usou mais emoticons em seu texto do que deveria, mas estava entusiasmado demais com a situação para se importar; além disso, Katsudon nunca pareceu se importar com sua excitação fora de escala.

Eles agendaram o encontro — “Não, não era um encontro. Eles iam apenas se encontrar na casa de Victor para almoçar juntos”, o cérebro de Victor forneceu — e Victor ligou para Chris logo a seguir. Ele precisava que a exata gravata que viu em seu sonho ganhasse vida e não confiava em ninguém além de seu melhor amigo para ajudá-lo nessa importante missão.

No fatídico dia, uma segunda-feira até então monótona, Victor fez questão de esconder o pacote debaixo de uma das almofadas do sofá, onde ficaria escondido até a hora certa. Perguntou ao Yurio se gostaria de se juntar a eles, mas o garoto simplesmente bateu a porta enquanto saía do apartamento, pretendendo ficar o mais longe possível “daqueles dois idiotas”, como costumava chamá-los.

Quando a campainha tocou, um sorriso brotou no rosto de Victor. Ele estava animado, tanto que quase não conseguia se manter parado. Ele mal podia esperar para ver a expressão no rosto de seu nêmesis. Ele se perguntava quão estranho seria ver a camisa de Katsudon sem nada pendurado na frente dela.

E se ele na verdade sentisse falta da visão daquela gravata maldita? Isso sim seria uma grande ironia da vida.

Ele se perguntava se Katsudon estava irritado com ele por causa do que ele tinha feito. Na ocasião, Victor deu no pé antes que seu nêmesis pudesse processar a situação, então perdeu sua reação quando ele foi enfim capaz de ligar os pontos. Ele só esperava que ele não estivesse muito zangado, caso fosse esse o caso...

Quando Victor finalmente abriu a porta, ele se viu com grandes expectativas do que encontraria do outro lado — expressões zangadas, uma camisa branca aparentando estar nua demais, um sorriso estranho mas familiar. Porém, no fim, a visão que o saudou foi um choque. A última coisa que Victor esperava era ver aquela maldita e horrorosa gravata azul, mas ainda assim lá estava ela, pendurada ao redor do pescoço de seu nêmesis, que por sua vez estava acenando para ele com um sorriso debochado no rosto.

Demorou um pouco até que Victor encontrasse suas palavras, pois ele estava ocupado demais apontando para a gravata de forma acusadora, não restando tempo para que ele colocasse seus pensamentos em ordem.

— O que é isso? — Victor perguntou, sentindo-se traído.

Estava abatido, tanto quanto uma criança que, após ganhar seu brinquedo mais desejado no Natal, teve-o roubado e quebrado no primeiro recreio em que decidiu levá-lo para a escola, os valentões rindo de sua cara e de sua ingenuidade enquanto pisoteavam nos sonhos e esperanças da pobre criança.

Qual era o significado disso? Por que então ele se deu ao trabalho de fazer todas aquelas coisas?

Ele estava tendo dificuldade em acreditar em seus próprios olhos, simplesmente porque preferia negar o que eles estavam o mostrando do que lidar com a trágica realidade que estava bem na frente do seu nariz. A gravata havia voltado para assombrá-lo.

Victor ainda estava no meio de sua crise quando Katsudon decidiu que era sua vez de tomar iniciativa naquela pequena dança deles. Deu um passo adiante, e Victor se viu por demais fora de si para reagir a tempo.

De repente próximo — próximo demais —, Katsudon deslizou um dedo pelo peito de Victor, movendo-o lentamente e com a pressão exata. O vilão sentiu um arrepio percorrer suas costas e, enquanto se encaravam, Victor se viu perguntando se seu nêmesis estava olhando-o de forma sedutora ou se era somente impressão; esse tipo de provocação não era incomum entre eles, já que muitas vezes faziam esse tipo de coisa durante suas lutas, só que desta vez parecia ser pra valer. Ele não havia percebido que Katsudon havia se tornado um ator tão bom, e em tão pouco tempo!

Victor ainda estava processando o calor que estava explorando seu torso quando notou que o rosto de Katsudon estava se aproximando. O vilão congelou, de alguma forma tenso demais para se mover. Katsudon levou os lábios ao seu ouvido e Victor estremeceu uma segunda vez quando sentiu a respiração de Katsudon contra a pele fina e delicada de sua orelha. Definitivamente não era assim que ele esperava descobrir que tinha ouvidos sensíveis...

Então, uma voz veio, o volume apenas um pouco mais elevado que de um sussurro.

— Eu tenho mais umas cinquenta lá em casa. Uma pena pra você.

Victor precisou de um segundo para absorver aquelas palavras — só foi capaz de compreender seu significado quando Katsudon deu um passo para trás — mas, quando finalmente o fez, pôde fazer nada além de lamentar.

Ele não via que Victor tinha feito tudo aquilo por ele?

Victor era incapaz de aceitar que seu próprio nêmesis vestisse algo de tão mau gosto.

Antes que Katsudon fosse embora, Victor se certificou de entregar seu presente, o qual ele aceitou após alguma insistência por parte de Victor, mas não sem se mostrar bastante surpreso e ligeiramente culpado. O vilão torcia para que aquele presente o fizesse abrir os olhos. Talvez seu nêmesis fosse capaz de fazer escolhas melhores após ver de perto o que Victor havia preparado para ele.

Ele ousava acreditar que ainda havia esperanças para o futuro.


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Notas finais do capítulo

Oi, gente! Da pra acreditar que já tamos em novembro? Assustador. Enfim...
Capítulo grande. O meu eu de hoje tava xingando um pouco o meu eu do passado por não ter quebrado esses caps finais ao meio, mas é... Não vou mudar agora xD Mas acho que meu maior choque foi ver essa referencia a spn que eu coloquei nesse cap ano passado, e se vc não sabe do que eu estou falando well só digo que queria ser vc (eu nem spn vejo, mas o tumblr me força a série goela a baixo aiai).
Deixem comentários se puderem! Esses caps finais tão punk e incentivo seria bem vindo hehe
Até mês que vem!



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