Dear Mr. Nemesis escrita por Nekoclair


Capítulo 5
Capítulo 5




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Reliable Enemies Can Often Rewrite Destiny

 

Sexta-feira. Em um canto remoto de um conhecido parque, duas silhuetas assistiam ao pôr do sol.

O céu estava pintado de vermelho, tons de azul e roxo eventualmente marcando presença e dando certo alívio ao calor que preenchia o horizonte. Devido à partida do Sol, a temperatura havia caído consideravelmente na última meia hora, entretanto, algumas pessoas mesmo assim permaneciam no parque. O cenário era bonito demais para se deixar passar despercebido.

Uma família de três — uma mãe e seus dois filhos — caminhava ao redor dos canteiros de flores, sorrisos nos rostos e vozes alegres. Enquanto isso, um senhor de idade lia seu jornal, aproveitando da quietude marcante das últimas horas do dia e descansando as pernas, sentado em solitude sob a cobertura de um poste de luz. Em outro banco, o qual se encontrava posicionado em um canto mais isolado do parque, encontrava-se um casal.

O casal observava o céu, olhos fixos no Sol que, em meio a sua despedida, lentamente se movia rumo ao horizonte. Em breve, uma Lua radiante tomaria seu lugar e a temperatura cairia, brisas meramente desconfortáveis tornando-se capazes de causar o bater de dentes. Porém, no momento, as roupas quentes que ambos vestiam eram mais do que suficientes para manter o frio afastado. Entretanto, mesmo que a temperatura ambiente fosse nada além de amena, um dos homens sentados no banco ainda assim sentia suas mãos geladas, dedos tão rígidos que temia que um movimento em falso poderia trincá-los. 

Não era de seu feitio deixar-se abater de tal maneira, tendo sempre se considerado uma pessoa firme e mais do que suficientemente apta a lidar com qualquer obstáculo que se colocasse em seu caminho — mas aparentemente enganara-se esse tempo todo. Ele deixou de considerar a mais simples, antiga e irrefutável das verdades, aquela a qual não devia nunca ser ignorada e muito menos esquecida: mesmo o mais resistente, experiente e condecorado dos guerreiros jamais será invencível em campo de batalha, pois sempre haverão frestas em sua armadura. Ou seja, por mais forte que alguém se julgue ser, algumas coisas sempre vão ser difíceis, pois todos levam consigo sua dose de fraquezas.

Ao que um arrepio desceu pela espinha do homem, uma mão imediatamente agarrou a sua — forte e quente, uma presença acolhedora. Um calor agradável se instaurou em seu peito, um suspiro aliviado escapando de seus lábios logo a seguir. Sua cadela se aninhou em sua perna, atraindo sua atenção, e após afagar os pêlos macios e castanhos do poodle ele se sentiu ainda melhor. Então, quando um polegar começou a desenhar círculos nas costas de sua mão, decidiu que estava no paraíso.

Com um segundo suspiro, ele se permitiu mergulhar em seu passado.

 

—--

 

O motivo pelo qual Victor se tornou um vilão não era nem especial nem grandioso.

Ele simplesmente nunca percebeu que havia outras opções.

 

—--

 

Quarta-feira. Uma manhã bem cedo em São Petersburgo, Rússia.

A campainha tocou e o familiar ding-dong ecoou ininterruptamente pela casa até que o homem alcançasse o hall de entrada.

Quando a porta foi aberta, duas pessoas se viram encarando uma à outra em silenciosa contemplação. Um era um homem de meia-idade, o cabelo já ralo e grisalho nas laterais; o outro era uma criança de seis anos, que segurava com tanta força a alça da mochila pousada ao lado de seus pés que os nós dos dedos de suas mãos pequeninas já se encontravam brancos.

O homem tinha certeza de que nunca havia visto esse garoto em sua vida, e também não tinha ideia de qual era o seu nome ou o que ele estava fazendo diante de sua porta. No entanto, apesar disso, o homem sabia exatamente quem o garoto era; era impossível olhar para os cabelos sedosos e levemente prateados que cobriam a cabeça do menino e não conectar os pontos.

O homem olhou para o menino com espanto, seus olhos arregalados enquanto ele o olhava de cima a baixo. Sua boca se abriu e assim permaneceu, pois não sabia como reagir ou o que pensar perante aquela situação.

Quando o menino lhe estendeu um papel, o homem o aceitou sem pensar duas vezes. Ele desejava nada além de entender o que estava acontecendo, e qualquer dica era bem-vinda. Ele rapidamente correu os olhos pelo papel, cujo conteúdo o pegou de surpresa. Era um contrato — um certificado de adoção — e no final da página lá estava, a sua assinatura, a qual ele não lembrava de ter assinado, mas que tinha certeza de ser realmente sua

O homem coçou a cabeça, confuso.

Agora, tinha mais perguntas e ainda menos respostas.

 

—--

 

Victor teve uma educação muito rígida. Sua rotina era dura, com muitas regras e um relógio constantemente tiquetaqueando em seus ouvidos enquanto ele tentava dar conta de sua agenda sempre lotada. Havia lições com um tutor no início da manhã, aulas de artes marciais à tarde e, à noite, Yakov se sentava ao lado dele em sua cama e falava sobre as notícias, sobre o que vinha acontecendo ao redor do mundo, e pedia sua opinião sobre alguns tópicos.

Era cansativo e ele tinha que admitir que não era bem o que desejava para si mesmo.

— Você não pode apenas ler um livro pra mim? — o menino de seis anos perguntou uma vez.

Ele sentia falta dos dias em que seu pai pegava seu livro favorito na estante e o lia para ele, sua voz preenchida de tamanha emoção que ninguém acreditaria que já era a quinquagésima vez que ele relia aquela mesma história entediante sobre as aventuras de Urso e seus amigos. Mas, diante da pergunta de Victor, Yakov simplesmente rosnou e disse-lhe para parar de falar besteiras, que ele era quem sabia o que era melhor para Victor e para sua educação.

O pequeno Victor nunca mais pediu tal coisa.

Os primeiros meses foram os piores, pois o garoto ainda não tinha sido capaz de abrir seu coração ao pai adotivo. Houve muitos silêncios longos e as refeições eram especialmente quietas e desconfortáveis. Nenhum dos dois parecia saber o que fazer com a situação — a situação deles. Um relacionamento foi imposto a ambos pelo falecido Sr. Nikiforov e eles não tinham ideia de como lidar com ele.

No início, Victor tinha muitas perguntas. Por exemplo, quem era Yakov Feltsman para seu pai? E, não havia mais ninguém que pudesse o acolher? Mesmo sendo jovem, Victor não era estúpido e tinha certeza de que Yakov não era um cidadão comum. Havia algo de suspeito nele, e os homens que às vezes iam até sua casa para conversar sobre negócios não pareciam do tipo que andariam livremente sob a luz do dia.

No entanto, não demorou muito para que o incomum se transformasse em seu novo normal.

Victor era jovem, então ele se acostumava com as coisas rapidamente.

Com o passar do tempo, o menino começou a achar que seu dia a dia não era tão ruim assim. Mesmo que houvesse uma série de regras vinculadas a cada uma de suas ações e uma educação espartana esperando por ele todos os dias, Yakov não era realmente uma pessoa ruim — ele tinha quase sete anos quando percebeu o lado mais gentil de seu pai adotivo, dez meses após o primeiro encontro dos dois. Na verdade, Yakov estava sempre preocupado com ele, com o seu bem-estar; ele apenas não era bom em demonstrar seus sentimentos de amor paternal.

De repente, Victor percebeu que não estava nem aí se Yakov era uma pessoa suspeita ou não.

Os anos foram passando e, conforme foi crescendo, Victor foi se dando conta de uma parte importante de sua personalidade: gostava muito de estar no centro das atenções.

Toda vez que alguém notava suas conquistas ou o parabenizava pelas medalhas que ele começou a juntar assim que recebeu permissão para participar de torneios marciais, seu rosto ficava vermelho e seu peito se enchia de orgulho. Nas vezes em que ouviu os funcionários de Yakov fofocando sobre seus feitos, ele sempre ficava feliz com a atenção que estava recebendo. E caso descobrisse que alguma reclamação estava sendo espalhada a seu respeito, Victor se esforçava para transformar essas críticas em elogios.

Victor gradualmente se tornou um jovem esforçado e, em pouco tempo, ele se viu mais e mais curioso a respeito dos negócios em que Yakov estava envolvido. Ele ansiava saber, sua curiosidade imparável como uma coceira que ele era incapaz de esquecer.

— Por favor, deixa eu ir com você, — Victor pediu a Yakov uma noite, encurralando seu pai adotivo assim que ele chegou em casa após um longo e cansativo dia de trabalho.

Yakov torceu o nariz e ergueu uma das sobrancelhas. Então, ele balançou a cabeça com veemência, uma negativa silenciosa mas concreta. Quando Victor decidiu insistir um pouco mais no assunto, recebeu também uma recusa verbal.

— Por que eu deveria fazer isso? Você tem que se concentrar na sua própria vida, não na minha.

Victor franziu os lábios e se trancou dentro do quarto. No entanto, esse não foi o fim.

Ele sabia o que queria, e era ver que tipo de coisas mantinham Yakov tão ocupado o dia inteiro. Ele queria saber quem eram as pessoas que iam à casa deles às vezes, e em que tipo de trabalho seu pai adotivo atuava com aquela personalidade rígida dele. Ele também se perguntava se dessa forma ele descobriria como Yakov e seu pai se conheceram, que era algo sobre o qual ele ainda estava sendo mantido no escuro.

Na noite seguinte, Victor encurralou Yakov mais uma vez. Novamente, ele contou a seu pai adotivo sobre seu desejo e, de novo, foi recebido com um "não".

No dia seguinte, a mesma coisa.

Essa cena se repetiu durante toda aquela semana.

Depois de dez dias, a conversa deles finalmente apresentou algum tipo de mudança.

— Por que você quer tanto assim ir comigo? — Yakov perguntou, já cansado dessa rotina na qual eles haviam caído. Além disso, estava preocupado que isso estivesse distraindo Victor de seus estudos.

— Estou curioso! Quero saber mais coisas.

— Essa não é uma razão boa o suficiente.

Yakov balançou a cabeça e passou reto por ele, sem olhar para Victor novamente. Victor foi atrás dele, não permitindo que a distância entre eles crescesse mais do que três passos.

— Só estou fazendo o que você disse! Perseguindo conhecimento!

— Isso é diferente, — Yakov respondeu, rigidamente.

— Como que é diferente?! Por que você é tão contra me levar lá?

— Porque tenho obrigações para com seu pai! Cuidar de você... Me certificar que você vai ter uma vida boa e justa... Ter certeza de que você vai entrar em uma universidade de prestígio... Mas levar você para o meu trabalho não é uma delas!

— Meu pai nem está mais aqui! — Victor gritou, cerrando as mãos. Ele sentiu seus lábios tremerem ao que as palavras passaram por eles. — E quanto às suas obrigações para comigo?

Victor foi quem saiu de cena primeiro dessa vez, trancando-se no quarto e não saindo nem quando deu a hora do jantar. Ele sabia que havia falado demais, dito coisas que não pretendia dizer, mas as quais não conseguiu conter, e isso era frustrante. Quando Yakov bateu em sua porta já passava das dez da noite. Victor disse para ele entrar e eles conversaram, de pai para filho, a conversa se entendendo por quase uma hora inteira.

— Você tem certeza disso?— Yakov perguntou, finalmente.

Ele não parecia feliz, nem um pouco, mas parecia estar pronto para chegar a um acordo se fosse realmente necessário. Além disso, em qualquer caso, Victor era um garoto inteligente demais e certamente já sabia com que tipo de coisa Yakov vinha se envolvendo todos esses anos.

A resposta de Victor foi uma afirmativa, a qual não continha um grama de incerteza.

Então, como seu presente de aniversário de doze anos, Yakov levou Victor com ele para o Covil — com uma desculpa do tipo "traga seu filho para o trabalho" — para conhecer seus capangas e, finalmente, ser permitido um vislumbre da verdade.

Victor não ficou tão chocado com o que encontrou, achando mais engraçado que todo mundo chamasse Yakov de "Mestre'' do que se preocupando que seu pai adotivo estivesse aparentemente envolvido na produção e comércio de todos os tipos de armamentos.

Acima de tudo, ele estava feliz, e Yakov percebeu isso.

— Você quer vir de novo qualquer dia desses? — Yakov perguntou quando eles estavam no carro, voltando para casa depois de um dia que pareceu ter sido mais longo do que o habitual.

Victor anuiu com a cabeça, seus olhos grandes e brilhantes. Ele achou tudo bastante interessante, e sua curiosidade o impulsionava adiante. Além disso, ele era uma criança, era curioso e não tinha mais nada para fazer de qualquer maneira.

Daquele dia em diante, Victor começou a sair com Yakov assim que o Sol começava a aparecer no horizonte, carregando seus livros dentro de uma mochila para estudar enquanto o seu pai dava conta do trabalho que havia programado para fazer pela manhã. À tarde, os capangas de Yakov o ajudavam com treinamento de combate, as técnicas subindo de nível e se tornando mais complexas e poderosas do que qualquer coisa que ele já tivesse aprendido até então — para ele, era como um desafio.

Victor tinha quatorze anos quando venceu pela primeira vez uma luta contra um dos capangas mais jovens do grupo, e os elogios e aplausos que lhe foram dirigidos foram os melhores. Seu sorriso era tão largo que ele teve medo que deixaria marcas.

Yakov observava tudo de longe e sorria o tempo todo, cheio de orgulho pelo filho. Quando ele correu em direção ao homem, Victor não teve nenhuma dúvida em seu coração. Ele prontamente pediu para entrar no grupo.

— Tem certeza de que é isso que você quer?

Yakov estava com uma sobrancelha levantada e expressões que mostravam que ele não tinha tanta certeza de que esse era o caminho certo a seguir. Ele parecia em conflito, pensativo. Suas expressões deixavam claras o quão incomodado, e preocupado, essa conversa o estava deixando.

— Ser um vilão significa que todos vão olhar para você e estarão contra você. Esta vida... Ela pode ser bastante solitária quando você não tem as pessoas certas ao seu lado.

Embora as palavras de seu pai carregassem um peso inegável, Victor não tinha dúvidas do que queria.

— Sim, tenho certeza! — Victor respondeu, confiante, antes que seu velho pudesse tentar fazê-lo desistir, apresentando vários argumentos válidos sobre porque ele deveria mudar de ideia.

Ele não estava disposto a voltar atrás.

Ser um vilão... A ideia parecia incrível, e Victor já sentia seu corpo tremer só de imaginar como seria ter tanta gente de olho nele um dia.

Suas expectativas queimavam em seu peito com a força de mil sóis.

 

—--

 

Sentado em seu escritório no Covil, Yakov tentava fazer seu trabalho, mas não conseguia de jeito nenhum se concentrar na pilha de papéis que aguardavam sua assinatura. Ele suspirou profundamente e colocou a caneta de volta na mesa. Enquanto coçava o pescoço, Yakov contemplou seu cansaço; ele mal podia esperar para voltar para casa e ter seu merecido descanso.

Subitamente afligido pela sensação de estar sendo observado, ele rapidamente ergueu a cabeça. O que encontrou foi um rosto, familiar e jovem, olhando para ele de dentro de uma das muitas fotos que ele mantinha em sua mesa. Ele estendeu a mão para o porta-retratos e sorriu melancolicamente para os dois homens exibidos na foto — ele próprio, ainda na flor da idade com seus trinta e cinco anos, e o falecido Sr. Nikiforov. Ambos jovens, ambos sorridentes, ambos vivos.

Yakov virou sua cadeira para longe da mesa e relaxou um pouco as pernas, esticando-as pela primeira vez em horas. Seu sorriso desapareceu e a melancolia que tomou conta de suas expressões pesou em seu rosto.

Ele verdadeiramente sentia falta do homem, e essa perda não era algo que ele um dia seria capaz de superar completamente.

Seu primeiro encontro com o Sr. Nikiforov aconteceu há cerca de trinta anos, em uma quarta-feira ensolarada que Yakov tinha certeza de que nunca seria capaz de esquecer. Ele tinha acabado de chegar ao Covil — tão cedo que nem mesmo o Sol tinha dado as caras ainda — quando percebeu que não estava sozinho. Havia um homem, alto e magro, vestindo um longo casaco preto, um lenço azul brilhante e um chapéu da cor da noite. Por causa do cabelo branco, Yakov inicialmente o confundiu com um senhor de idade; no entanto, quando o homem se virou e eles finalmente ficaram cara a cara, ele se deparou com expressões radiantes e olhos azuis cheios de vida.

"Herói", ele chamou a si mesmo.

Herói, também conhecido como Sr. Nikiforov, era um agente secreto que trabalhava para uma das maiores organizações de luta contra o crime na Rússia, e ele aparentemente não sabia que segredos eram supostos de ficar escondidos nas sombras.

— Achei que seria apropriado me introduzir brevemente, já que nos veremos bastante a partir de agora — explicou o homem, despreocupado, ao ser confrontado sobre seu motivo de estar ali, caminhando pelo Covil como se o lugar fosse sua própria casa.

Yakov ficou sem palavras. Ele não sabia o que fazer perante a situação louca para a qual subitamente se viu arrastado, nem o que pensar do homem estranho que viera apenas para cumprimentá-lo.

O homem parecia carregar o Sol em seu sorriso, e havia tanta confiança em sua postura que Yakov deu um passo para trás na primeira vez que se encontraram.

Herói... A pessoa que foi designada para ser seu nêmesis daquele dia em diante, a pessoa que era suposta de ter sido uma pedra em seu sapato, a pessoa que acabou sendo uma presença essencial em sua vida. Um melhor amigo. Uma luz para sua escuridão.

A rivalidade amigável dos dois rapidamente se transformou em amizade profunda, tudo graças à personalidade radiante do Herói e a sua insistência contínua.

Quando Yakov percebeu, eles já estavam trabalhando ao redor das agendas um do outro, mantendo o outro informado sobre qualquer imprevisto e saindo para beber sempre que surgia a oportunidade. Yakov foi até convidado para o casamento do Sr. Nikiforov, uma celebração importante que ele insistiu em compartilhar com seu nêmesis. Aquele dia ainda deixava marcas em sua memória — a noiva estava linda com seus longos cabelos trançados, e seu bom amigo parecia ainda mais radiante do que de costume. Era uma pena que sua esposa tivesse tido de partir alguns anos depois, morrendo na mesa de cirurgia logo após o parto. Aqueles dias foram particularmente sombrios, e demorou um pouco para que o Herói se recuperasse do choque.

Com a ajuda de amigos e parentes, e graças ao fato de Yakov sempre se programar conforme a sua agenda, agora ainda mais cheia, o Sr. Nikiforov conseguiu de alguma forma criar seu filho até a idade de seis anos, quando também foi levado por uma doença, deixando o pequeno Victor sob seus cuidados.

Sua morte ainda pesava em seu peito, e todos os dias Yakov era aflito pela sensação de que sua carreira como supervilão perdeu grande parte de seu significado depois que ele foi deixado para trás por seu nêmesis. Ele nunca foi capaz de encontrar alguém como ele para preencher o vazio, mesmo depois de tantos anos, e ele duvidava que um dia encontraria.

A última vez que se viram foi em um bar, alguns meses antes do Sr. Nikiforov ser colocado para descansar a quase dois metros abaixo do solo. Ele não conseguia se lembrar exatamente do que aconteceu naquela noite, já que seu amigo o fez beber muito mais do que o normal, mas, agora que pensava sobre isso, talvez tenha sido então que ele assinou, sem saber, os papéis de adoção de Victor.

Mas por que fazer algo do tipo? Por que embebedá-lo de propósito? Yakov teria ficado mais do que feliz em assinar esses documentos. Ele teria prontamente aceitado cuidar de Victor, se tivesse sido informado sobre a situação...

Ou, pelo menos, era isso que ele costumava dizer a si mesmo agora.

A verdade é que ele não tinha certeza de como teria agido dez anos atrás.

Talvez ele tivesse dito não, considerando-se incapaz de cuidar de uma criança — o filho dele, ainda por cima. Talvez ele tivesse preferido que seu amigo escolhesse outra pessoa, com medo demais que seu trabalho acabasse sendo uma má influência na vida de uma criança inocente — o que, no final, foi exatamente o que aconteceu.

Ele se perguntava se seu nêmesis ficaria zangado com ele se visse o que Victor havia se tornado, mostrando claras intenções de seguir os passos de Yakov rumo à vilania. Ele se arrependeria de ter deixado seu filho sob seus cuidados, ou ele olharia para o sorriso radiante de Victor e pensaria que Yakov fez um trabalho razoavelmente bom?

Cada vez que Yakov olhava para Victor, ele não conseguia deixar de desejar que ele mudasse de ideia e escolhesse outro rumo. 

Ele se perguntava se ainda havia tempo para Victor mudar de idéia, ou se ele já estava fundo demais dentro dessas águas traiçoeiras para voltar de volta à segurança e tranquilidade da praia.

 

—--

 

Aos quinze anos, Victor foi oficializado como assistente de Yakov, e assim começou sua vida como aprendiz.

Apesar de Yakov ainda estar um pouco incerto se era a coisa certa a se fazer — um vislumbre de sua consciência pesada às vezes visível em seus olhos cansados —​, era inegável que Victor tinha o talento necessário para a profissão. Ele era inteligente, esforçado e, ao final da primeira semana, já tinha todos os capangas de Yakov ao alcance de seus dedos. As pessoas confiavam nele e o admiravam, ninguém sequer cogitando questionar seu valor.

Victor estava feliz com seu estilo de vida atual, encontrando satisfação nas menores tarefas que lhe diziam para fazer.

Toda vez que alguém apontava como era certo de que ele sucederia o Mestre Yakov no futuro, Victor anuia a cabeça com veemência, seu sorriso tão radiante que poderia cegar qualquer um que estivesse olhando diretamente para ele. Ser o sucessor de seu pai adotivo seria perfeito, certamente. Ele nem se perguntava se isso realmente aconteceria ou não, pois tinha certeza de que iria, mais cedo ou mais tarde. Parecia certo, como a progressão natural de todas as circunstâncias que o abateram até então.

Todos tinham grandes expectativas em relação a ele, e ele se esforçaria ao máximo para corresponder a cada um delas. Nada parecia impossível para seus olhos sonhadores.

Fossem os capangas que o tratavam como um deles, ou Yakov que às vezes ainda parecia estar em conflito consigo mesmo, mas que apesar disso o elogiava quando Victor merecia, ou mesmo aquele garoto loiro que o seguia por toda parte ultimamente e que se apegou a ele por alguma razão desconhecida... Ele não queria decepcionar ninguém.

No entanto, com o passar dos anos, a situação mudou e as expectativas começaram a pesar demais — seus ombros eram pequenos, ainda um pouco infantis, mas ninguém parecia perceber o quanto eles o estavam apressando em direção à grandeza.

Os elogios começaram a não significar nada, ao ponto dele nem se dar ao trabalho de ouvi-los mais.

Então, um dia, ele simplesmente parou tudo o que estava fazendo e olhou para o teto de seu quarto. Ele estava trançando seus longos cabelos prateados, amarrando os longos fios para que não ficassem cheios de nós quando acordasse no dia seguinte, quando suas mãos de repente pararam. Ele jogou o corpo para trás, no colchão.

Ele respirou fundo.

Por que mesmo ele estava fazendo tudo isso? Só pela atenção? Porque era o que as pessoas esperavam dele? Para deixar Yakov orgulhoso? Porque ele... queria?

Ele tinha dezessete anos e estava cansado, de repente sem mais motivação para seguir em frente.

 

—--

 

Victor tinha dezessete anos, quase dezoito, quando se sentou com Yakov — com seu pai adotivo — e disse que iria se mudar.

— Quero seguir carreira solo, ter minha independência e deixar de viver na sua sombra — ele disse, sem hesitar. "Para entender porque estou fazendo tudo isso", ele não disse.

Yakov não teve escolha a não ser acenar com a cabeça e desejar boa sorte ao filho.

 

—--

 

Sábado. Um dia promissor no exterior dos portões do aeroporto.

Ao se juntar à multidão que vagava pelas ruas, certo homem instantaneamente sentiu falta do prédio com ar-condicionado que acabara de deixar para trás.

O dia estava quente e ele podia sentir sua pele queimando só de ficar embaixo do Sol deslumbrante, que se encontrava diretamente sobre a sua cabeça. No entanto, mesmo que o clima estivesse muito mais quente do que ele estava acostumado e o estivesse deixando desconfortável em seu casaco, ele não tinha intenção de voltar atrás.

Ele respirou fundo, um sorriso brotando em seus lábios, e então ele correu os olhos pelo cenário à frente.

A cidade na qual ele havia acabado de chegar era menor e mais quente do que São Petersburgo. O céu aparentava ser mais claro, e as pessoas não se pareciam em nada com as que ele estava acostumado a ver na Rússia; das roupas que vestiam até a maneira como se relacionavam, não havia um pingo sequer de familiaridade.

Tudo parecia ser completamente diferente da realidade a qual o jovem estava acostumado, então não podia deixar de parecer estranho no início — um estranho bom e excitante.

Olhando adiante ele percebeu pela primeira vez o quão amplo o mundo era. Mudança era tudo que ele precisava, e agora ele tinha tantas possibilidades diante de si que não sabia que caminho seguir.

Em seu peito, seu coração batia forte, animado pelo que estava por vir.

O jovem sorriu abertamente ao dar o primeiro passo à frente.

 

—--

 

A primeira coisa que Victor fez depois de chegar à cidade foi comprar uma casa no centro; um velho sobrado que não combinava em nada com os arredores e pelo qual, por esse exato motivo, Victor se apaixonou imediatamente — talvez por ter visto um pouco de si mesmo nas paredes pálidas da residência. Ambos pareciam deslocados aos olhos dos espectadores, que os encaravam como se fossem algo à parte de suas realidades. Yakov, é claro, foi quem pagou a conta; ele havia decidido que isso era o mínimo que podia fazer por seu filho adotivo, e nada que Victor disse foi capaz de fazê-lo mudar de ideia.

A segunda coisa que Victor fez foi se matricular em uma renomada universidade nas proximidades. Como ele não tinha certeza de qual curso seria mais útil a longo prazo, decidiu se matricular em dois cursos, Engenharia Química e Ciências Matemáticas, e estudar por conta temas sobre Ciência da Computação, Engenharia Mecânica, Administração de Empresas, Economia e Biologia.

Ir para a faculdade foi uma experiência interessante. Tendo sido educado em casa toda a sua vida, o ato de se juntar a outras pessoas em uma sala de aula o fascinava. Ele não se divertia tanto desde... desde... Victor não sabia nem dizer quando foi a última vez que foi capaz de sorrir tão despreocupadamente, um sinal claro de que realmente já fazia um bom tempo.

Devido ao fato dele permanecer bastante tempo no campus da universidade, não demorou nem um mês para que seu nome estivesse na boca de todos. Victor, claro, já esperava isso, visto que uma coisa que não havia mudado nem um pouco era a sua habilidade de atrair a atenção de todos. Onde quer que fosse — às salas de aula, aos laboratórios, à cantina ou ao seu lugar preferido, a biblioteca — era saudado por todos, independentemente de cargo, idade ou tempo de casa.

Mas não foi apenas sua aparência — tão bela e exótica, tão diferente da das outras pessoas — que chamou a atenção. Victor também era um ótimo aluno, obtendo excelentes resultados em todas as suas disciplinas. Considerando a educação espartana a qual fora submetido desde muito jovem, isso também estava dentro de suas expectativas.

No entanto, mesmo que todos o conhecessem, Victor descobriu rapidamente que ele mesmo não conhecia ninguém. Era como se uma parede se houvesse erguido entre ele e seus colegas de classe e, por causa disso, não havia ninguém de quem ele se sentisse particularmente próximo.

Durante todo o seu primeiro ano, Victor almoçou sozinho na cantina, perguntando-se entre uma garfada e outra se ele estava, de alguma forma, afastando os demais. Mesmo que as pessoas constantemente olhassem furtivamente em sua direção, ninguém jamais tentava se aproximar e ele não conseguia ver o motivo disso.

Só foi capaz de despedir-se de sua solidão no segundo ano.

Em um dia até então normal, um jovem rapaz loiro de repente se sentou na sua frente durante o almoço. O homem falou com ele com a naturalidade de quem vinha fazendo isso todos os dias há anos, tratando Victor como alguém que estava longe de ser um estranho. A cantina ficou silenciosa e o ar estava tão pesado que parecia palpável. Todos os olhos se voltaram para eles e ninguém se mostrava disposto a desviar o olhar tão cedo. Victor também ficou quieto, deixado sem palavras pelo seu próprio estado de confusão.

— Assim que coloquei meus olhos em você, eu soube imediatamente que você era o único para mim — o loiro disse, buscando as mãos de Victor sobre a mesa e segurando-as firmemente entre as suas. Seus olhos eram verdes, grandes e brilhantes, e estavam olhando fixamente para Victor. — Eu preciso muito, muito que você seja meu modelo!

O loiro, que se introduziu como Christophe Giacometti, era aluno do primeiro ano do departamento de Design de Moda, e ele não estava disposto a aceitar ninguém além de Victor como modelo para seu projeto final, a ser entregue ao final de seu curso de graduação de quatro anos. Estava pronto para lutar com unhas e dentes para ter Victor para si, teimoso demais para voltar atrás depois de colocar uma ideia na cabeça. Para sua surpresa, Victor concordou imediatamente, dizendo que ninguém nunca havia lhe pedido algo do tipo, mas que parecia divertido. Christophe só conseguia olhar para ele de boca aberta.

— Desde que não atrapalhe meus estudos, não vejo problema — Victor disse com um sorriso amigável.

Christophe parecia estar levemente espantado com a revelação.

— Você quer dizer que ninguém te procurou até agora? Ninguém dos departamentos de Moda, Arte ou Fotografia?

— Não que eu saiba — Victor riu, coçando a nuca. — As pessoas não falam comigo mais do que o necessário. Me pergunto porque.

— Inacreditável... — Chistophe balançou a cabeça e suspirou dramaticamente.

Sentindo-se um pouco envergonhado, Victor desviou o olhar e se pôs a brincar com as longas mechas de seu cabelo em uma tentativa de se distrair. Algumas pessoas ainda os estavam observando, mas a maioria já havia voltado para seus próprios grupos, conversando entre si e preenchendo a ampla sala com o barulho de conversas.

— Eu me pergunto se sou tratado mais como um espécime raro do que como uma pessoa. Sabe... Algo para se olhar e admirar de longe, mas não para se envolver pessoalmente. — Victor não tinha ideia de porque estava contando tudo isso ao Christophe, já que eles se conheciam há nem cinco minutos. Talvez ele estivesse se sentindo mais solitário do que imaginava.

— Estúpidos! Todos eles! Não consigo acreditar que deixaram de lado uma pessoa tão maravilhosa. Eu não largo mais, só pra você saber. — Ele franziu os lábios e Victor sorriu um pouco.

— Obrigado, Christophe.

— Apenas Chris. Sabe quem me chama de Christophe? Minha avózinha, e ela é a única que pode.

Victor viu-se sorrindo mais largamente

— Okay. Chris.

Eles trocaram sorrisos.

Daquele dia em diante, os dois amigos passaram a fazer as refeições sempre na companhia um do outro. Eles se tornaram inseparáveis. Eventualmente, outros também começaram a se aproximar de Victor, e ele ficou bastante surpreso quando um colega de classe contou que ele parecia menos ameaçador recentemente.

— Era como se você tivesse vindo de algum lugar acima. A gente não sabia se era okay falar com você, se você estava disposto a perder seu tempo com outras pessoas. Você parecia sempre tão ocupado com seus livros... — seu colega lhe disse e Victor ficou sem saber o que responder.

Victor adorava companhia, adorava se divertir, conversar e se envolver com os outros. Afinal, sempre foi assim com ele, desde o passado — ele ainda mantinha contato com alguns dos capangas de Yakov até hoje, falando com eles quase diariamente. Ele não tinha ideia de como tal mal-entendido poderia ter se espalhado.

Quando ele contou a Chris sobre isso, seu amigo riu alto.

— É engraçado porque você é totalmente o oposto disso — falou ele, assim que recuperou o fôlego.

Eles estavam indo em direção à biblioteca quando Victor trouxe o assunto à tona. Mesmo que as aulas do dia já tivessem terminado, ainda havia muito a se fazer até a hora do jantar. Felizmente, não havia muitas pessoas naquela parte do campus, dando a eles um pouco de privacidade.

— Quero dizer... Sim, claro, você se preocupa bastante com os seus estudos... Mas, tipo, caramba, quem não se preocupa? — Chris revirou os olhos. — E já que você não precisa se esforçar muito para entender as coisas, os seus estudos não atrapalham nem um pouco sua vida pessoal.

— Você também é bem inteligente pelo que ouvi, ficando em primeiro lugar naquela exposição e tudo mais... Quando planejava me contar? — Victor perguntou, sorrindo e empurrando seu amigo levemente no ombro.

— Eu ia contar! Eu simplesmente não tive tempo, já que tenho estado bastante ocupado! Não é como se eu estivesse tentando esconder do meu modelo o quão bom eu sou — Chris se defendeu, jogando as mãos para o alto e encolhendo os ombros.

Então, ele olhou para Victor e suas expressões se tornaram consideravelmente mais sérias.

— Ainda assim, não é a mesma coisa, você e eu … — Chris começou.

Victor olhou para ele e pôs fim aos seus passos assim que Chris fez o mesmo. Seu amigo se virou para ele, para que pudessem conversar direito, cara a cara.

— É como se você não tivesse um campo de interesse. Você aprende coisas novas e diferentes todas as semanas, e de forma muito rápida. É invejável. Mas, bem, às vezes me pergunto... — Uma pausa. — Victor, o que exatamente você planeja fazer com todo esse conhecimento?

— Oh, eu ainda não te disse? Vou seguir os passos do meu pai adotivo.

— Político? Cientista?... Astronauta?

— Supervilão. — Victor sorriu inocentemente.

Chris piscou uma vez, depois duas. Ele abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu dela a princípio. Só quando tentou de novo finalmente conseguiu.

— Não é o que eu esperava... mas okay. Eu posso aceitar isso. Mas, claro, se você me deixar fazer suas roupas!

Victor riu brevemente.

— Estava contando com isso, meu amigo.

Chris sorriu, seu olhar gentil e reconfortante. Então, ele ergueu a cabeça e apoiou as mãos nos quadris, seu sorriso se tornando mais largo.

— Ótimo, porque eu duvido que qualquer outra pessoa seria capaz de fazer roupas dignas de alguém como você!.

 

—--

 

Depois de se formar, Victor tinha vinte e três anos quando seus sonhos começaram a tomar forma — e essa forma era um arranha-céu de vinte andares construído onde antes havia sido sua antiga casa. Yakov, mais uma vez, ajudou-o financeiramente, e Victor prometeu que alugaria grande parte do edifício a fim de retribuir pouco a pouco

Por dois anos ele morou com Chris, que lhe ofereceu um lugar para ficar assim que Victor contou sobre seus planos de demolir sua casa, sendo portanto inevitável que ele se sentiria um pouco solitário ao arrumar suas coisas a fim de partir daquele local que, mesmo que temporariamente, fora seu lar. Victor estava tão acostumado a viver com outra pessoa que tinha certeza que se sentiria sozinho. Ainda assim, ele sabia que não podia continuar morando na casa do amigo eternamente.

Ele tinha de fazer isso. Era um primeiro passo importante a ser dado.

Depois de levar todas as suas coisas para a nova casa, seu apartamento sendo no último andar do prédio, Victor deixou suas malas no quarto e levou Chris para um tour. Mostrou-lhe tudo, sem deixar um canto sequer para trás.

— E descendo aqui tem uma passagem que leva pro andar debaixo, onde vou montar meu laboratório — explicou enquanto os guiava escada abaixo. — A iluminação ainda não foi instalada no corredor, então cuidado onde pisa.

— Alguma ideia de que tipo de iluminação vai usar?

— Estou pensando em fazer o mesmo que lá em casa. Algumas lâmpadas embutidas no teto.

— Hum, não sei... Não acha que quebra um pouco o clima? — Chris perguntou enquanto olhava ao redor. No entanto, o corredor estava tão escuro que não era possível ver muito mais que alguns passos à frente.

— Alguma ideia? Você sabe que estou sempre aberto para as suas sugestões — disse Victor, virando-se e sorrindo para Chris.

O loiro levou um dedo aos lábios, mostrando-se pensativo por um momento.

— Que tal a iluminação estar no chão ao invés de no teto? E não muito forte. Talvez correndo no meio, em uma linha reta.

— Oh, gostei disso! — As mãos de Victor se juntaram, o som do contato entre elas ecoando pelo corredor estreito e escuro.

— Sério, o que seria de você sem mim? — Chris teria jogado o cabelo dramaticamente para longe do rosto, mas este estava curto demais para isso.

Victor riu e balançou a cabeça.

Ele admirava a autoconfiança do amigo. Embora o próprio Victor tivesse uma estima elevada em relação às suas ideias e habilidades, Chris tinha ainda mais que ele quando o assunto era algo dentro dos seus interesses.

Eles seguiram em frente até alcançarem o amplo salão que, um dia, se transformaria no laboratório de Victor.

— Parece legal. Gostei das janelas. — Chris observou com satisfação a iluminação que adentrava pelas amplas janelas, suas mãos repousando na cintura.

Eles caminharam ao redor do salão, parando a cada três passos para que Victor pudesse compartilhar as ideias que tinha planejado para cada espaço. Enquanto isso, Chris dava alguns palpites aqui e acolá, expressando sua opinião daquela maneira que era tão sua.

— Bem, então acho que tudo que falta é um nome. Já decidiu como vai chamar o prédio? — Chris perguntou enquanto eles voltavam para o apartamento de Victor.

— Sim... Venho pensando nisso há bastante tempo. Quero dar o nome da minha cidade natal. Então, "Edifício de São Petersburgo". O que acha?

— Hm... Que tal "Torre" ao invés de "Edifício'"? Acho que soa melhor.

— Torre de São Petersburgo — Victor disse em voz alta, experimentando o nome. Ele sorriu. — Sim, gostei. Que assim seja.

— Ótimo.

— E a sua loja? Já decidiu o nome? Você me disse da última vez que tinha algumas ideias e que estava tentando se decidir.

— Vou chamá-la de "Intoxicada". Legal, né? Espero que tenha gostado, porque já disse à gráfica para imprimir alguns cartões e panfletos para a inauguração, então é um pouco tarde para mudar agora.

— Que bom que eu gostei, então. — Victor riu e então fez beicinho. — Mas você bem que podia ter pedido minha opinião primeiro! Achei que íamos tomar essas decisões juntos!

— Desculpa, desculpa. Eu fiquei impaciente! Você sabe como eu sou!

Victor acenou com a cabeça e deu de ombros. Não é como se estivesse realmente zangado. Além disso, diferente dele, Chris não carecia de determinação e sabia exatamente o que desejava para si mesmo.

— Você sabe que reservei um andar pra você, né? — Victor perguntou, mudando de assunto.

Victor se virou em direção ao amigo e encarou Chris ao que os dois alcançaram o topo das escadas, estando enfim de volta ao seu apartamento.

— Acho que é muito cedo pra isso, já que tenho certeza que estarei no vermelho durante os primeiros anos... E vou pagar o aluguel normalmente! Isso não está aberto para discussão, Victor! Já passamos por isso — Chris disse, certificando-se de deixar as coisas claras antes que Victor pudesse começar, mais uma vez, a insistir para que Chris ocupasse o andar de graça apenas porque ele "merecia".

Victor franziu os lábios, mostrando-se descontente. Ele estava prestes a abrir a boca quando Chris o interrompeu.

— Mais importante, e seu nome de vilão? — Chris perguntou, desejando mudar de assunto antes que começassem a discutir o tema do aluguel pela milésima vez.

Victor suspirou profundamente.

— Assim... Honestamente? Nenhuma ideia — Victor admitiu, envergonhado, coçando a nuca daquele jeito que sempre fazia quando não sabia o que fazer.

Ele vinha pensando nisso há muito tempo e chegou a considerar várias opções, mas nenhuma delas pareceu ser a certa. A maior parte de suas ideias eram simplesmente ruins, e nas raras ocasiões em que era capaz de pensar em algo legal, o nome não o fazia se sentir como ele mesmo. Victor sabia que essa era uma decisão muito importante e, justamente por isso, não queria estragar tudo.

Chris perguntou se ele tinha pelo menos decidido que tipo de vilão ele queria ser e Victor, mais uma vez, se viu em uma situação difícil. Por que essas perguntas tinham que ser tão complicadas de responder?

Só de olhar para seu rosto, Chris podia dizer que Victor ainda estava inseguro sobre isso também.

— Não sei, Chris... Eu só quero fazer o que eu quiser. É pedir demais? Não quero ficar preso a um rótulo, obrigado a fazer sempre a mesma coisa — explicou ele, desanimado, com os ombros caídos e os olhos abrindo buracos no piso.

Chris pousou a mão em seu ombro e sorriu, transmitindo-o silenciosamente que entendia o que ele queria dizer e que seus sentimentos eram válidos. Isso complicaria um pouco as coisas, mas esperar que Victor agisse de outra forma seria o mesmo que o pedir para ser alguém diferente dele mesmo.

— Por que você não me deixa escolher, então? — Chris perguntou, esperando que isso aliviasse um pouco o peso sobre os ombros do amigo.

Visto que Victor realmente não tinha nenhuma preferência e era incapaz de tomar essa decisão sozinho, ele acenou com a cabeça em concordância. Mais do que tudo, ele queria acabar com isso e enviar seu registro para a Organização de Controle e Defesa, para que pudesse ser, finalmente, reconhecido oficialmente como um vilão. Além disso, ele confiava no julgamento e senso de estilo de Chris.

— O Treinador! — Chris anunciou, dramaticamente, jogando as mãos para o alto e sorrindo um pouco. — Eu pessoalmente acho que combina bem com você. Alguém que carrega muita experiência e conhecimento ... Além disso, o nome soa bem! O Treinador...

Depois de Chris experimentar o nome uma segunda vez, entoando cada sílaba com emoção incomparável, ele se manteve quieto por um tempo, permitindo que sua voz — o nome, o pseudônimo de Victor — ecoasse pela sala de estar majoritariamente vazia por alguns segundos.

Quando se virou para Victor novamente, seu sorriso havia se alargado em seus lábios.

— Viu? Soa bem! — Chris falou, soando confiante.

A sugestão foi inicialmente recebida com incerteza. No entanto, como havia decidido confiar em seu amigo, Victor pensou mais a fundo no pseudônimo, pronunciando o nome em voz alta algumas vezes, experimentando o som em sua língua e repetindo-o em diferentes entonações até encontrar uma que gostasse.

Não era ruim, ele teve que admitir depois de um tempo; pelo contrário, soava bem legal. Entretanto...

—  Mas não estou planejando treinar ninguém, ou mesmo ter alguém trabalhando pra mim. Quero fazer isso sozinho — Victor explicou, esperando que estivesse fazendo sentido.

— Certo, okay, quer saber? Agora você está pensando demais.

Chris cruzou os braços na frente do peito e transferiu seu peso de uma perna para a outra. Ele estava franzindo o rosto, algo que quase nunca fazia, e isso fez Victor engolir em seco. Ele conhecia aquela expressão, a familiaridade o acertando em cheio, desagradável como uma visita indesejada. Ele estava prestes a ser repreendido.

— Ninguém disse nada sobre você pegar um aprendiz. Por que está pensando tão lá na frente? Fez alguma promessa que esqueceu? A consciência tá pesada?

— O quê? Não! Nunca prometi tal coisa a ninguém! — Victor respondeu, mas de repente ele não tinha mais tanta certeza. Será que prometeu? Bem, ele provavelmente se lembraria se o tivesse feito. Não há razão para se preocupar com isso agora.

— Então? — Chris ergueu uma das sobrancelhas e encarou o amigo, os braços ainda cruzados.

Victor franziu os lábios e suspirou.

— Okay, okay! "O treinador", que seja. Não é um nome ruim.

— Claro que não, querido. Afinal, foi uma das minhas ideias geniais — disse Chris, com naturalidade.

Com tudo resolvido, Victor sentou-se ao lado de Chris na mesa de jantar recém-adquirida e começou a preencher a papelada. Enquanto ele olhava para suas mãos, para a caligrafia firme se carregando elegantemente sobre as finas linhas pretas que aguardavam por suas informações pessoais e pela sua assinatura, seu coração acelerou.

Ele mal podia esperar para que seu registro chegasse à Organização.

E... Mal podia esperar para conhecer seu arqui-inimigo.

 

—--

 

Sábado. Uma noite aparentemente interminável na Torre de São Petersburgo.

Um homem se apoiava na moldura da janela de seu quarto. Seu olhar pairava do lado de fora, privado de interesse, mas ainda assim mantendo-se ocupado enquanto apreciava a paisagem.

Nessa noite, a cidade estava quieta. Poucos carros circulavam pelas ruas a esta hora e muito poucas pessoas se aventuravam a andar nas calçadas vazias. Acima, não havia nada para ver exceto um vazio tão escuro quanto o breu. Era uma noite sem lua e as estrelas se encontravam escondidas atrás de nuvens espessas. Sob tais circunstâncias, o pobre homem era sequer capaz de encontrar alguma companhia — algum conforto — no céu. Realmente era um homem infeliz.

Ele se afastou da janela, cansado do cenário que não havia mudado em nada nos últimos dez minutos, e caminhou em direção à cozinha. Ele fez um pouco de café, mas, quando finalmente encontrou ânimo para tomá-lo, a bebida já havia esfriado.

Sentado à mesa da cozinha, o homem suspirou enquanto olhava para seu café gelado, que o julgava silenciosamente de dentro da caneca esquecida. A seguir, contemplou suas ambições, as quais havia nutrido com tanto carinho só para serem estilhaçadas e transformadas em uma bagunça irreconhecível, ao ponto de ser necessário uma cola muito boa para unir novamente as peças. Na verdade, ser apenas boa não seria suficiente; teria que ser milagrosa, uma cola feita especificamente para seus sonhos destruídos e para suas peças marcadas por cicatrizes.

Ele devia ter suspeitado que todas as histórias que seu pai adotivo havia contado sobre o passado, sobre ele e seu nêmesis, eram boas demais para serem verdade. Não tinha como ser. De jeito nenhum podia ser tão perfeito.

Um vínculo mais forte que diamante? Até parece.

Ter um arqui-inimigo era uma grande porcaria.

 

—--

 

A campainha tocou. Uma, duas, três vezes. Ela continuou tocando sem parar, como um sonar tentando encontrar vida nas profundezas do oceano, mas ninguém se deu ao trabalho de caminhar até a entrada para ver quem estava aguardando no corredor. A campainha tocou mais um pouco, mas a pessoa do lado de fora logo percebeu que o gesto era inútil e parou. Cansado de esperar, Chris alcançou a maçaneta e suspirou profundamente quando encontrou a porta destrancada. Ele entrou, fechando a porta depois de entrar no apartamento de Victor.

Uma poodle de meia-idade foi a única a vir cumprimentá-lo na entrada, abanando o rabo com entusiasmo, feliz por vê-lo — ou qualquer pessoa, honestamente.

Makkachin era a nova companheira de Victor, e também a solução que eles encontraram para a solidão que passou a assombrar Victor depois que ele começou a morar sozinho. O apartamento era grande demais, e o silêncio insuportável. Felizmente, eles encontraram a companhia perfeita para Victor em um abrigo no centro da cidade — como alguém foi capaz de abandoná-la, Chris não tinha ideia. Makkachin era sociável e amigável, e era tão fofa que ninguém conseguia resistir à vontade de mimá-la.

Chris suspirou após afagar a cabeça da cadela e caminhou em direção ao sofá, onde encontrou Victor deitado. Seu amigo estava olhando para o teto, e seus olhos azuis nunca estiveram tão turvos e sem vida.

— Você esqueceu de trancar a porta. De novo. — Chris repreendeu, mas Victor não deu ouvidos a ele e simplesmente acenou com indiferença.

Chris respirou fundo e caminhou ao redor do sofá, empurrando levemente Victor no ombro para que ele se tocasse e se sentasse direito, liberando algum espaço para ele. Chris estava cansado de ficar em pé e, além disso, tinha a sensação de que a conversa dessa vez seria uma das mais longas.

Depois de se acomodar, Chris voltou sua atenção para Victor, que, por sua vez, estava dando atenção a Makka. Ele acariciava a cadela, que repousava a cabeça em seu joelho, a sombra de um sorriso presente em seus lábios — pelo menos ele ainda conseguia mostrar uma expressão levemente alegre em momentos como esse.

— Você não atendeu o celular. Estou tentando te ligar desde a noite passada.

— Desculpe — disse Victor, de forma suave. Sua voz, no entanto, não carregava um pingo sequer de arrependimento. O fato dele não se arrepender nem um pouco era o que deixava Chris mais doido, além de muito preocupado.

— Pedir desculpas não vai te tirar dessa, meu caro! Você tem ideia de como fiquei preocupado?

Victor coçou a nuca e só então finalmente se deu ao trabalho de olhar para o amigo, que havia atravessado a cidade em meio à uma agenda super lotada por se preocupar com ele. Finalmente um vislumbre de remorso pode ser visto em seus olhos.

— Chris, sério, me desculpa — ele repetiu, e pelo menos desta vez Victor soara mais sincero. — Eu sei que não devia ter ignorado aquelas ligações, mas...

Houve um suspiro e depois silêncio.

Chris esperou para que Victor prosseguisse, que continuasse dizendo o que quer que ele pretendia dizer, não desejando interrompê-lo quando seu amigo estava, pela primeira vez, se abrindo sobre o que vinha acontecendo recentemente. Os últimos seis meses foram silenciosos, silenciosos demais considerando que uma vez eles viveram juntos e compartilharam tudo, até os pequenos detalhes, um com o outro. No passado, nunca houveram segredos na amizade deles. Agora, entretanto...

Era estranho ver Victor contendo tudo dentro de si, mesmo que ele estivesse fazendo isso porque não queria que Chris se preocupasse com ele mais do que ele já se preocupava. Mesmo que seu trabalho o mantivesse mais ocupado a cada dia, Chris sempre tinha tempo para Victor — e se ele não tinha tempo, ele dava um jeito para que houvesse.

— Tem sido difícil. E não tenho estado no melhor dos meus humores — Victor disse, por fim. Ele estava olhando para baixo, na direção dos pequenos olhos de Makka, mas seu sorriso agora parecia um tanto tristonho em seus lábios.

— As coisas não deram certo de novo? — Chris perguntou e Victor acenou com a cabeça, discretamente. — Qual era o nome dele mesmo? Justiça pura? Justiça verdadeira?...

— Justiça Justa — Victor respondeu, apático.

— Sim, tanto faz. Ele. Não é sua culpa que ele seja estúpido e não consiga apreciar alguém tão incrível quanto você.

Foi a vez de Victor suspirar profundamente. Chris observou seu amigo virar em direção a ele, olhos arregalados e chateados.

— Chris, ele foi, tipo, o sétimo... Não teve um que durou mais de um mês! — Victor lamentou e então se escondeu atrás das mãos.

Victor respirou fundo e balançou a cabeça, só depois endireitando as costas e pousando as mãos de volta nos joelhos. Chris o observava em silêncio, descansando a cabeça em uma das mãos enquanto seus olhos encaravam o homem angustiado que estava sentado ao lado dele.

— Isso apenas significa que não era pra ser. Não deixe que isso te derrube.

— Mas as coisas que eles dizem! E mesmo o que eles não dizem! — Victor fechou a boca antes que mais palavras escapassem e respirou fundo, tentando se acalmar. Depois de alguns segundos silenciosos e tensos, ele continuou: — Eu só queria conhecer alguém que ficaria feliz em se opor a mim, lutar seriamente e, mais importante, ouvir o que tenho a dizer. Estou querendo demais?

— É como qualquer outro relacionamento, querido.

Chris segurou a mão de Victor, fazendo com que seu amigo finalmente olhasse para ele. Ele estava fazendo de tudo para ser o mais gentil possível, pois sabia que Victor estava se sentindo muito sensível agora.

— Se duas pessoas são incapazes de olhar olho no olho, se não conseguem conciliar ambas as suas necessidades, o relacionamento vai fracassar.

Chris podia ver nos olhos azuis claros de Victor que suas palavras o haviam alcançado, pelo menos um pouco.

— Tenho certeza que um dia você vai encontrar a pessoa certa.

Chris apertou levemente sua mão e, em resposta, Victor sorriu como pôde. Não era um sorriso brilhante, grande e super alegre, mas era melhor do que nada. "Pequenos passos", Chris pensou consigo mesmo e fechou os olhos por alguns segundos, sentindo-se de certa forma aliviado por ter conseguido fazer seu amigo sorrir um pouco. Ainda bem que ele decidiu fazer uma parada no caminho para a loja.

Victor deitou a cabeça no ombro de Chris, pegando o homem de surpresa.

— Obrigado — Victor sussurrou e sua voz estava tão baixa que quase passou despercebida. Ainda bem que Chris era um ouvinte realmente atento.

— De nada. Apenas... Nem pense em desistir. Não depois de tudo. 

Victor riu brevemente e disse: 

— De jeito nenhum.

Mais uma vez, eles caíram em um silêncio confortável. O calor de seus corpos gerava um sentimento agradável para o outro, e a presença de Makka aos pés deles era uma companhia muito bem-vinda.

— Então — Victor disse depois de um tempo. — E aquele cara? As coisas estão indo bem com ele? Masumi, né?

Uma risada escapou dos lábios de Chris antes que ele percebesse o que estava fazendo. Ele se sentia de certa forma aliviado. Talvez devido à naturalidade da situação, ou quem sabe por causa da maneira como as coisas nunca pareciam mudar entre eles. Tudo o que ele sabia era que seu peito estava leve, e que rir era bom e parecia certo — mesmo que Victor parecesse confuso e estivesse fazendo birra por causa disso.

Chris se viu desejando que aquela pessoa viesse logo, quem quer que ela seja. Aquela com quem Victor finalmente seria capaz de fazer uma conexão, e que manteria aqueles olhos turvos para sempre longe de seu rosto.

Acima de tudo, Chris desejava que seu bom amigo pudesse encontrar sua felicidade logo.

 

—--

 

Um ano e meio depois, Victor — não, o Treinador finalmente teve seu fatídico encontro com aquele que estava destinado a ser seu arqui-inimigo. Era um jovem alguns anos mais jovem do que ele, e ele estava vestindo a gravata mais horrenda que Victor já teve o desprazer de ver.

A princípio, o Treinador imaginou que o dia terminaria tão mal quanto de costume. Ele não tinha expectativas positivas em relação ao homem de aparência frágil que estava olhando para ele, cujo corpo estava visivelmente trêmulo e que não mostrava um pingo sequer de confiança.

Mas, oh, quão enganado ele estava...

Embora o agente fosse tímido e não tivesse pensado duas vezes antes de dizer que era seu primeiro dia de trabalho, ele não era nada além de forte. Além disso, ele era rápido de uma forma que até mesmo Victor estava tendo dificuldades para acompanhar.

Mas foi somente quando o Treinador foi finalmente capaz de capturar o agente e rendê-lo que ele finalmente percebeu que as coisas não seriam as mesmas, e foi então que sua tão aguardada mudança — um vislumbre de esperança — finalmente apareceu para ele; tudo isso porque quando o treinador começou a falar sobre seus planos, o agente se deu ao trabalho de ouvir cada uma de suas palavras. Atentamente, além disso. O Treinador quase não conseguia acreditar em seus olhos, a visão de alguém prestando tanta atenção ao que ele tinha a dizer sendo quase inacreditável.

— Por que você simplesmente não coloca sabonete entre as roupas nas gavetas? Isso ajuda a mantê-las cheirosas, de acordo com a minha mãe — o agente falou depois que o Treinador terminou de contar seu plano de fazer o amaciante de toda a cidade desaparecer das lojas e reaparecer em seu laboratório.

O Treinador ficou sem palavras.

Não apenas essa pessoa havia lutado contra ele usando de todas as suas forças e o ouvido divagar sobre cada um dos motivos que o fizeram trabalhar tão duro em prol de tal plano, como ele estava até mesmo o oferecendo algum tipo de feedback!

Isso era realmente inacreditável.

O Treinador ficou tão atordoado com a situação que o agente conseguiu se libertar; como ele fez isso, o Treinador não tinha ideia, pois estava distraído demais com seus pensamentos para prestar atenção em qualquer outra coisa. Quando percebeu, sua máquina já estava quebrada e o homem se encontrava parado bem ao lado dela.

— Desculpe por quebrá-la, mas é que é o meu trabalho...

O Treinador só conseguia olhar a cena, sem reagir. Estava tendo dificuldades em acreditar que o agente havia realmente se desculpado.

O homem começou a se virar, preparando-se para sair pela mesma janela pela qual havia entrado antes. No entanto, o Treinador o parou antes que ele pudesse escapar. Ele agarrou sua mão e o homem se virou, surpreso.

Eles se encararam, em silêncio.

— Sim? — o agente perguntou depois de um tempo, parecendo confuso.

A pergunta trouxe o Treinador de volta à realidade e, só então, ele percebeu o que estava fazendo e largou a mão do agente. Victor coçou a cabeça e olhou para o lado, sentindo-se embaraçado.

— Seu nome. Pode me dizer qual é?

— Katsudon — o homem respondeu e, depois de sorrir timidamente, entregou-lhe um cartão; um cartão de visita. O vilão, no entanto, continuou a observá-lo de perto, sem desviar o olhar de sua silhueta mesmo quando Katsudon saiu janela afora. O cartão jazia esquecido em suas mãos.

O Treinador não tinha ideia do que poderia ser um Katsudon, ou o significado que o nome supostamente carregava, mas nada disso importava. Tudo o que realmente importava era que ele tinha certeza de que finalmente havia encontrado aquele que havia sido destinado a ele, e tinha certeza de que eles se encontrariam novamente.

Ele podia sentir que eles já estavam atados pelo destino, a conexão que compartilhavam em nada semelhante às demais que vivenciara até então com qualquer outra pessoa.

Havia encontrado, finalmente, seu primeiro e único arqui-inimigo.

 

—--

 

No dia seguinte, Victor ainda podia sentir a alegria enchendo seu peito, brilhando como fogos de artifício e morna como a chama gentil de uma vela. Embora o tempo que passaram juntos tenha sido breve, esses poucos instantes foram como uma tempestade de verão — forte e impactante. A entrada de Katsudon em sua vida trouxe mudanças e arrancou as raízes da negatividade que haviam se fincado nas profundezas de seu coração.

Ele tinha certeza de que se lembraria eternamente do dia de ontem, não havendo sequer a necessidade de REGISTRAR os acontecimento de alguma forma já que eles foram devidamente descritos nos relatos que agora preenchiam as paredes metafóricas de sua mente.

Em seu rosto, suas expressões eram suaves e alegres. Ele sorriu despreocupadamente, sentindo seu corpo leve agora que as algemas que o seguravam finalmente haviam desaparecido. Ele estava de bom humor, de um jeito que não se sentia há muito tempo, e em proporções tão grandes que Victor se viu com vontade de fazer algo que não fazia há muito tempo: sair para comer. Parecia ser uma ótima ideia e ele até mesmo tinha um lugar em mente. Recentemente, ele ouviu algumas pessoas comentarem sobre um bom restaurante no centro expandido da cidade, com boa comida e ambiente convidativo. Era um pouco longe, mas havia um parque nas proximidades, o que tornava tudo perfeito, já que ele ainda não tinha levado Makkachin para passear hoje.

Era sábado, o trânsito não estava ruim, o céu estava claro e límpido e não haveria problema mesmo se ele demorasse para retornar.

Além de que, ele estava feliz e queria comemorar.

Já a caminho, Victor tentou ligar para Chris, mas não conseguiu falar com ele — seu amigo provavelmente estava ocupado, ou em um encontro, ou mesmo dormindo. Mesmo que Victor quisesse contar a ele as boas novas e compartilhar com seu bom amigo tudo o que havia acontecido no dia anterior, ele sabia que era melhor não telefonar uma segunda vez. Chris andava muito ocupado ultimamente e devia descansar o quanto quisesse, pelo menos aos finais de semana. Além disso, almoçar sozinho de vez em quando não era o fim do mundo. Victor sobreviveria.

Makka latiu, olhando pela janela do táxi com olhos grandes e brilhantes. Victor riu e bagunçou o pêlo de sua cabeça, fazendo-a virar em sua direção.

— Tem razão. Não estou realmente sozinho, estou?

O táxi parou em frente a uma padaria para que eles desembarcassem e partiu assim que Victor pisou na calçada. Ele observou o veículo ficar cada vez mais distante, até que não fosse nada além de uma mancha irreconhecível no tráfego, e Victor só esperava não ter esquecido nada no banco de trás.

Olhando para o relógio e percebendo que havia chegado um pouco mais cedo do que planejava, Victor decidiu levar Makka para um passeio ao redor do quarteirão, só indo em direção ao restaurante depois de proferir uma promessa para Makka de que a levaria para um passeio mais longo depois que Victor tivesse comido. Consultando o mapa em seu celular, Victor se aventurou pelas ruas, as quais não conhecia muito bem por não ir muito àquela parte da cidade. Seus passos não mostraram pressa ​​durante a maior parte do caminho, apenas se tornando mais rápidos quando seu estômago começou a roncar uma reclamação audível e embaraçosa.

O lugar que ele estava procurando, felizmente, não foi difícil de encontrar — muito pelo contrário. Uma enorme faixa se encontrava pendurada na porta da frente, e nela se lia: "Yu-topia". O restaurante não parecia muito impressionante do lado de fora, no entanto, o cheiro vindo de dentro era divino. Victor já podia sentir-se salivando.

Ele se sentou em uma das mesas do lado de fora e esperou enquanto lia o cardápio. Ele tinha acabado de decidir o que pediria quando percebeu que Makkachin tinha se animado ao lado de seus pés. Ele olhou para baixo e encontrou um homem agachado na frente de sua cadela, vestindo um avental verde marcado com o logotipo da loja na frente e carregando um sorriso feliz e adorável no rosto. Quando o homem ergueu os olhos, Victor percebeu que, por trás dos óculos de armação grossa, ele tinha grandes e brilhantes olhos castanhos, os quais o encaravam com visível surpresa.

O homem rapidamente deu um passo para trás, quase caindo de bunda durante sua fuga atrapalhada. Victor estava confuso, mas não disse nada e se limitou a simplesmente observar e divagar, perguntas surgindo em sua mente tão rápido quanto a explosão de fogos de artifício, perguntas que ele decidiu guardar para si mesmo.

Victor se perguntava se a reação do rapaz fora devido ao fato dele ter sido reconhecido como o Treinador, se ele estava sendo odiado por ser um vilão, ou se havia alguma outra razão totalmente diferente para explicar aquele comportamento. Embora Victor quisesse muito saber o porquê daquele homem ter reagido de forma tão dramática à sua presença, ele não teve coragem de perguntar, por alguma razão temendo a resposta que receberia em troca, uma preocupação com a qual nunca pensou que teria que lidar.

Até aquele momento, Victor havia sinceramente acreditado que a opinião dos demais não era algo com o qual ele devia se importar. Mas, aparentemente, ele não era tão frio quanto se havia feito crer. Seu coração era mole demais, morno demais. Por demais gentil.

A boca do homem abriu e fechou algumas vezes, palavras aparentemente tendo se tornado algo complexo demais para ele lidar naquele momento. Victor queria fazer algo para acalmá-lo, mas também se via perdido sobre o que poderia fazer para ajudar. O homem moveu as mãos na frente do corpo, tentando colocar alguma ordem em seus pensamentos, mas falhando em fazê-lo, e Victor só pôde assistir, pela primeira vez sentindo-se impotente.

Pelo jeito, a situação não estava indo bem para nenhum dos dois.

O homem suspirou, seus braços finalmente caindo frouxamente ao lado de seu corpo esguio. Victor ergueu uma de suas sobrancelhas e observou em silêncio enquanto o homem levantava lentamente a cabeça, olhando para ele com o rosto um tom mais rosado do que anteriormente.

— Desculpa. É que, sabe, eu gosto muito de poodles — explicou o jovem, por fim, e Victor não pode deixar de notar como sua voz era suave e tímida.

A maneira como aqueles olhos o observavam e o rubor que havia se espalhado por suas bochechas eram uma visão tentadora. No entanto, as palavras do homem foram o que causaram o maior dano.

O coração de Victor teria falhado uma batida se já não tivesse sido roubado pelo homem à sua frente.

 

—--

 

— E foi então que me apaixonei por você.

A confissão saiu de sua boca sem problemas, as palavras leves ao abandonarem seus lábios. Não era algo do qual sentia que deveria se envergonhar — pelo contrário, ele sentia que tinha que se sentir orgulhoso de seus sentimentos e de si mesmo por ter se apaixonado justamente pela pessoa certa. Ele não conseguia imaginar alguém melhor para ter ao seu lado, ninguém além do Yuuri.

Victor olhou para o homem sentado à sua esquerda, cuja mão ele estava segurando há tanto tempo que já podia sentir certa familiaridade no calor pressionado contra a sua. Estava quente, especialmente em meio àquele final de tarde gelado. Era perfeito.

Yuuri também estava olhando para ele, seus grandes olhos castanhos não abandonando Victor nem por um segundo. Ele havia acabado de colocar os óculos de volta no lugar, provavelmente porque eles escorregaram um pouco por causa do sorriso em seu rosto. Era doce; seu sorriso, seu olhar, tudo. Yuuri era adorável.

Eles ainda estavam no meio do encontro — o muito aguardado primeiro encontro deles.

Victor não tinha ideia de como eles foram de "comer sorvete e andar de mãos dadas enquanto conversavam alegremente sobre nada que realmente importasse" para "fazer uma viagem pelas memórias de Victor e pelos obstáculos que ele teve que superar para chegar onde estava hoje". Ele sabia somente que sentiu vontade de contar ao Yuuri tudo que se tinha para saber sobre ele, e que Yuuri aceitara escutar tudo. E, por isso, Victor era grato.

— Obrigado por compartilhar sua vida comigo — Yuuri disse, gentilmente.

Yuuri deitou a cabeça em seu ombro e Victor sentiu seu corpo ficar rígido antes de finalmente relaxar sob o peso desconhecido. Então, ele suspirou, sentindo-se satisfeito e realizado de uma forma que nunca pensou ser possível.

Victor não tinha ideia de como ele pôde ter tanta sorte de ter não apenas uma, mas duas pessoas incríveis em sua vida. Bem... Três, se você contar o Chris. E talvez quatro se você pegar o Yurio em um bom dia.

Yuuri apertou sua mão e Victor apertou de volta, uma conversa que não exigia palavras, seus sentimentos perfeitamente transmitidos por suas expressões.

Diante deles, o Sol se punha, repousando no horizonte enquanto as estrelas começavam a fazer sua grande entrada.

 


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Notas finais do capítulo

Oi, gente :)
Mais um mês, mais um capítulo. Agora só faltam mais 5~
Desta vez temos o passado do Victor :) Tentei fugir daquele cliche do orfão encontrado num beco e deu nisso hehe Bom, anyway, espero que tenham gostado.
Comente se puder, isso me faria muito feliz :)
Até mês que vem!



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