Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda de Seiya escrita por Masei


Capítulo 112
Um Conto de Amor e Mar [História Lateral]


Notas iniciais do capítulo

A breve história de uma sereia e um garoto muito solitário.



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"Longe no oceano, onde a água é tão azul quanto a mais bonita centáurea, e clara como cristal, ela também é muito, muito profunda; tão profunda, de fato, que nenhum homem jamais poderia atingir a sua profundidade. Montanhas empilhadas umas sobre as outras não chegariam do solo abaixo à superfície da água acima. Lá moram o Deus dos Mares e seus súditos. Não devemos imaginar que no fundo do mar não há nada além de areia amarela. Não, de fato ali crescem as flores e plantas mais singulares, cujas folhas e caules são tão flexíveis que a menor agitação da água faz com que se mexam como se tivessem vida. Peixes, grandes e pequenos, deslizam entre os galhos, como pássaros voam entre as árvores aqui na terra. No ponto mais profundo de todos, fica a cidadela do Deus do Mar. Suas paredes são construídas de coral e jade, e as longas janelas são do mais claro âmbar. O telhado é formado por conchas que se abrem e fecham conforme a água corre sobre elas. Sua aparência é muito bonita, pois em cada uma delas está uma pérola brilhante, que seria adequada para o diadema de uma rainha."

O jovem garoto fechou o seu livro favorito logo no primeiro parágrafo, pois escutou seu nome sendo chamado ao longe. Era dia de seu aniversário de seis anos, mas a festa que seus pais organizaram para ele estava longe de ser colorida e fantástica como ele gostaria que fosse. Não havia outras crianças com as quais correr, brincar de ciranda, se molhar no mar, se esconder ou até se machucar sem querer.

— Já vou! — gritou ele de volta, com a cara fechada enquanto resmungava. — Num tem nada de legal pra fazer e eu não posso nem vir aqui brincar.

Havia apenas adultos na festa, todos eles muito bem vestidos e cada um com uma taça de uma bebida que não deixavam ele tomar. Entediado, ele foi para o seu quarto brincar sozinho; e embora tivesse todos os brinquedos de última geração, seus favoritos eram aqueles que as criadas da casa lhe traziam. Como aquele velho livro surrado e mordido nas pontas.

Além dos presentes simples que ele guardava ali no sótão onde dormia, o garoto lembrava-se também das histórias fantásticas que as criadas lhe contavam enquanto cuidavam de seu banho, trocavam-no as roupas sujas de areia, davam-lhe de comer pelo dia ou ajudavam-no com as lições de matemática. Tudo que ele fazia era dentro daquela mansão, pois morava muito longe da cidade com seu pai. De modo que ele passava o dia ouvindo as músicas e histórias do alto-mar que lhe contavam; sobre como os peixes do oceano falavam entre si, como as cores das florestas do mar eram diferentes daquelas que havia na terra, como havia cidadelas em que se podia respirar embaixo do mar e muitos outros contos antigos. O pouco de carinho que tinha sem dúvidas que era graças a essas cuidadoras e cuidadores da mansão.

Deixou o livro em cima de uma pequena pilha de outros livros em sua cabeceira e desceu os degraus de volta ao saguão para ser celebrado por algum velho convidado de seu pai que havia acabado de chegar na mansão. Seu pai era um homem muito famoso, pelo menos ele imaginava, pelo tanto de pessoas que o adoravam e o bajulavam naquela mansão quando eram convidados. Dono de um enorme conglomerado marítimo, não faltava nada ao garoto, filho de uma família riquíssima.

Logo foi abandonado pelos adultos, que foram para o salão comer as comidas esquisitas da festa, deixando o garoto novamente sozinho; ele voltou para a escada, doido para se esconder no quarto com seus brinquedos, mas uma das cozinheiras colocou-se na sua frente enquanto equilibrava uma bandeja com uma mão e tinha a outra na cintura.

— Não, não, menino, vai pra festa, que seu pai pediu pra não deixar você subir.

— Ah, Dona Irina.

— Nem 'a' nem 'bê'. Vai, garoto.

E, resmungando, ele voltou para o salão sem ser visto por nenhum dos adultos bem vestidos; caminhou entre as pernas enormes daqueles homens e mulheres e saiu pela enorme varanda que dava na faixa de areia. Lá colocou a carinha entre as madeiras da sacada para ver o fim de tarde morrendo na praia; as ondas tranquilas indo e voltando contra um paredão de pedra à direita.

— Ei, o que é aquilo? — falou sozinho, apertando os olhos.

Perto de onde a água molhava a areia fofa lá embaixo, os olhos pequenos do garoto viram uma luz brilhar de forma contínua, mas muito difícil de ser vista, como se o sol que se punha refletisse em um anel metálico se debatendo na areia. Ele imediatamente saiu correndo daquela varanda aberta e desceu as escadas de madeira que levavam de sua mansão até a faixa de areia de uma praia deserta. 

Sujou os sapatinhos perfeitos correndo pela areia fofa e foi direto ao paredão onde havia visto brilhar o que parecia ser um tesouro de longe. O mar estava calmo em seu vaivém de sempre, enquanto o menino procurava desesperado na areia, cavando buracos e resmungando por não encontrar seu tesouro.

— Onde é que está? Eu tenho certeza que vi por aqui. — procurava ele, olhando para todos os lados. — Ah, achei!

Ele correu mais rapidamente e caiu de joelhos próximo à uma pedra, pois debatia-se na areia um peixe que havia se encontrado fora de seu mundo.

— Era você que eu vi lá de cima? O que é isso? — perguntou o menino ao peixe, mas ele não lhe respondeu, pois continuava debatendo-se fora da água. — Calma, eu vou te ajudar.

O peixe tinha um anzol fincado em sua boca, que era o brilho que o garoto havia visto refletir contra o sol do alto de sua janela; afinal, não era um tesouro escondido na areia, mas a ponta que machucava aquele seu amiguinho. O peixe debatia-se muito na mão do garoto, molhando o paletózinho sob-medida dele, mas ele lutou contra o peixe para tentar tirar o anzol sem ferir ainda mais o pobre animal. E na ansiedade entre tirar o anzol e não demorar demais para que o peixe não morresse nas suas mãos, o garoto cortou o dedo com o aço afiado. O mar recuou um bocado quando ouviu sua reclamação em voz alta.

Ainda assim, ele não desistiu e continuou tentando salvar o pequeno animal até que finalmente conseguiu arrancar o anzol do peixinho, guardando-o em um de seus pequenos bolsos do paletó. Tomou o peixe com as duas mãos e entrou na água-rasa daquele mar, que pareceu se acalmar para que ele não fosse tomado por ondas surpresas. Ele caminhou até onde a água lhe batesse os joelhinhos e então colocou o peixe imóvel de suas mãos debaixo da água, e o viu ganhar vida e disparar pelo oceano, feliz e contente.

O menino olhou sorridente até perdê-lo de vista enquanto o sol se despedia no horizonte.

— Vai, peixinho. Vai encontrar seus amigos e vê se não apareça mais aqui.

Com um sorriso no rosto, ele limpou o dedo que ainda sangrava no paletó e viu, detrás de algumas pedras-altas que cresciam para fora da água, que havia um par de olhos encarando-o.

— Ei! Quem está aí? — perguntou o garoto abusado, assim que os olhos se esconderam atrás da pedra. — Eu já te vi, não adianta se esconder!

O menino correu dentro da água até aquela pedra, que parecia próxima, mas percebeu tarde demais que ali a areia do mar se afundava mais do que ele havia imaginado, de modo que o menino se desequilibrou e perdeu o pé no chão, sendo levado lentamente pela correnteza do mar, que o arrastaria para longe para nunca mais voltar. Porém, o par de olhos que estava atrás da pedra adiantou-se até ele o ajudou a nadar até onde o mar lhe dava pé, em segurança de novo. Assim que sentiu a areia em seus pés, o menino correu de volta para a praia, esbaforido e assustado, onde caiu de joelhos.

— Obrigado, obrigado! Muito obrigado! — agradecia o menino, ainda todo molhado e um pouco assustado enquanto tomava fôlego.

Ele tossiu um pouco e olhou para quem o havia salvado. Era uma garota na água.

— Obrigado, menina. — falou ele novamente.

E ela não lhe respondeu, ficando apenas para fora da água com os olhos e seus cabelos molhados e claros.

— Quem é você? — perguntou ele, finalmente, e ela não lhe respondeu nada. — Espero que não tenha sido você que estava pescando os peixes aqui da praia, senão eu vou falar pro meu pai.

— Não. Não fui eu. — respondeu finalmente aquele par de olhinhos brilhantes, levantando-se da água, mas escondendo-se atrás de uma das pedras que subiam ao redor.

Ela tinha os cabelos longos molhados e o olhava muito curiosa por detrás da pedra no mar, como se estivesse morrendo de vergonha.

— Eu não te vi na festa. — começou o garoto, pois era claro que ela não parecia ser uma das convidadas da festa que tomava parte em sua mansão. — Qual seu nome?

A garotinha encolheu os ombros de vergonha e torceu a boca para o lado quando o pequeno se aproximou mais um pouco, fazendo com que ela desse a volta na pedra, para que ficasse distante dele novamente.

— Você me ajudou a voltar pra praia. E eu só queria salvar o peixinho. — falou ele, apontando para o horizonte, onde esperava que o peixe já estivesse. — Eu sou seu amigo.

 

Ela olhou-o demoradamente e só então respondeu, com uma mecha de cabelo caindo-lhe sobre os olhos por causa do vento.

— Eu sou a Tétis.

— Tétis. — repetiu ele, como para guardar aquele nome. — Oi, Tétis.

— Julian! — gritou um adulto ao longe, atraindo os olhos do garoto e fazendo a menina mergulhar dentro do mar, assustada.

Ele ainda tentou encontrá-la, mas não a viu mais nas águas.

— Ei, eu sou o Julian! — falou ele para o mar, alto o suficiente para que ela pudesse escutá-lo onde estivesse. — Eu tenho que ir embora agora, meu pai vai me matar. Mas eu vou voltar aqui amanhã. Amanhã eu volto. Tchau, Tétis!

E o garoto saiu correndo pela areia na direção das escadas com a certeza de que iria ouvir um sermão enorme por ter sujado e molhado sua roupa de festa, mas doido para deixar sobre seus livros a curiosidade que lhe comia o peito. A garotinha de cabelos claros e molhados reapareceu no mar para vê-lo subir os degraus até seus pais, que o chamavam da parte de cima.

Ele era Julian. Ela era Tétis.

E Tétis ainda ficou ali por alguns minutos quando o céu já estava anoitecido para acompanhar o pequeno Julian ser recebido por algumas mulheres e levado para dentro de casa. E quando ela já se preparava para partir dali, viu algo no céu que tirou seu fôlego. A pequena ficou tão assustada que imediatamente mergulhou na água com o barulho, mas viu através do líquido como o céu enchia-se de luzes mágicas; e então tomou coragem e colocou novamente a cabeça para fora e viu o que pareciam ser as estrelas do céu caírem ao redor dela; ela nunca havia visto fogos de artifícios antes. Grandes sóis esguichavam fogo, esplêndidos vaga-lumes voavam no ar azul e tudo se refletia no mar claro e calmo em que ela estava.

Lembrou-se então que havia trazido de longe um presente para si mesma; tirou de dentro da água uma concha arco-íris furta cor que ela estendeu acima de sua cabeça para ver como as infinitas cores que explodiam no céu refletiam naquela concha. Aquela era uma concha nova que havia encontrado naquele seu dia de coleta, como ela chamava; dias em que nadava pelo Mar Egeu procurando tesouros. Tétis maravilhou-se como aquela concha ficava ainda mais linda naquela noite iluminada pelos fogos do céu. 

E assim que o espetáculo acabou, ela olhou novamente para as luzes acesas da mansão, apertou a concha contra o peito e mergulhou fundo nas águas com um sorriso enorme no rosto. Nadou pouco tempo daquela praia rodeada de pedras e paredões até a cidadela flutuante em que morava com seu povo; saltou do mar para o cais de madeira onde muitas pessoas transitavam carregando peixes, redes, baldes e afins, cantarolando de um lado para o outro. 

— Tá com os olhos na lua de novo, Tétis?

— Claro que não, tio Adriano!

— Tem certeza?

Ela parou, preocupada, e colocou as mãozinhas nos olhos.

— Ei, tio Adriano!

E o tio Adriano a pegou nos ombros dando altas risadas e levando-a até o pequeno bote em que ela dormia debaixo de uma lona amarela.

— Não vai se atrasar, pequena!

— Eu já vou, tio Adriano.

Ela entrou na sua pequena tenda e logo colocou seu novo tesouro ao lado dos demais que havia coletado por esses poucos anos de vida; e perto de todos os outros, aquela concha realmente era a mais brilhante e a mais especial. Estava orgulhosa de si mesma e saiu dali sorridente pelo cais para ir até o grande barco onde juntavam-se todos quase todas as noites para jantarem juntos. Aquela era uma bonita noite, portanto estariam juntos.

— Vai ter bolo? — perguntou ela, mas ninguém lhe respondeu.

Moravam em uma região ao extremo-sul da Grécia, uma península na Ática cercada pelas águas do Mar Egeu, onde estendiam-se faixas de praias desertas, bem como rochedos portentosos sobre o mar. E em alto-mar, aquela curiosa cidadela-flutuante.

— À Poseidon! — celebrou um dos adultos, erguendo um copo tosco de metal para o alto e sendo ecoado pelos demais.

— À Poseidon. — repetiu Tétis para si mesma, com um copo de água-doce nas mãos e olhando para a esquerda da cidadela, onde podia enxergar a silhueta das ruínas de um antigo templo contra o céu iluminado pela lua.

Eram as ruínas do Templo do Deus dos Mares, Poseidon, que haviam sido construídas no alto de um pontilhão de pedra, conhecido pelos antigos devotos e pelos atuais residentes como Cabo Súnion. De um lado daquele Cabo vivia a riquíssima família de Julian e, do outro lado, vivia Tétis junto aos homens e mulheres-do-mar em um porto flutuante muito simples e humilde.

Tétis correu pelas vielas de madeira, saltou por alguns barcos e encontrou-se na praça-central, formada por uma embarcação maior com um convés livre de seus mastros; ali viviam homens e mulheres de roupas improvisadas, peles bronzeadas, olhos e cabelos diversos, em sua maioria mais velhos e adultos de todos os tamanhos. Havia balsas, pequenos barcos, escunas, canoas, infláveis, um veleiro e toda sorte de embarcação improvisada conectadas por vielas de madeira como uma pequena vila flutuante. Ali era onde estavam destinados a viver, próximos ao mar e longe da terra.

Entre aqueles ciganos-do-mar, tudo que faziam girava em torno das águas: havia pescadores, xamãs, cozinheiras, capitães, navegantes, guias, vendedores e tantos outros que ajuntavam-se ali em rodas de música, comida e muita história. Quase nunca se afastavam do mar, pois não podia ser de qualquer outra maneira. Pois Tétis era como todos eles, e assim como todos aqueles romanis ela era uma sereia.

Tétis era uma filha do mar, e os filhos do mar entre os quais nasceu eram sereias e sereios abençoados por Poseidon para que pudessem visitar e viver em seu Reino quando fosse chegada a hora. Na antiguidade, foram homens e mulheres comuns e, até hoje, seus filhos nascem como nascem os filhos dos homens da terra; como nasceu Tétis, debaixo de uma lua maravilhosa. Mas ao jogarem-se no mar de Poseidon, aquele povo era então abençoado pela dádiva de poderem viver e nadar em seu reino como os mais fabulosos peixes do mar. Metade de seus corpos transformados em cauda mágica.

— Chegou bem na hora, pequena Tétis. — saudou ela um velho barbudo.

— Velho Kostas. — falou ela, abraçando-o. — Achei a concha mais linda do oceano.

— De todo o oceano? — perguntou ele.

— Sim!

— Eu tenho certeza que sim, pequena. Agora vai lá antes que o bolo termine.

E ela foi.

E assim cresceu Tétis, dividida entre a terra e o mar, sempre acompanhando aquele grupo de nômades para onde quer que fossem pelas águas do Mar Egeu. A menina foi criada por todos, pois muito cedo perdeu o pai e a mãe, ambos levados por uma doença terrível do mar que arrasou de tristeza toda a comunidade. Uma doença que de tempos em tempos reaparecia para trazer tristeza ao assentamento, uma enfermidade mortal que os matava silenciosamente no mar. Um povo abençoado por Poseidon para viver em suas águas, mas também amaldiçoados por uma doença que vitimava seus filhos, pais e avós. 

Mas o povo romani não deixou que o medo dessa doença invisível transformasse seus costumes em uma eterna espera triste e fúnebre pela morte iminente; muito pelo contrário, a comunidade era viva, colorida, cortês, divertida e extremamente unida para viver o mais intensamente uma vida que não sabiam o quanto poderia durar. Se Tétis não teve seus pais por perto, não faltou a ela carinho, cuidado e ensinamento dos mais velhos e até jovens da comunidade. Sua família eram todos eles e ela era filha de todos. Assim como eram todos os demais entre si.

E Tétis viveu seus dias na simples, mas impressionante comunidade flutuante em alto-mar, ouvindo as histórias dos mais antigos, descobrindo novas profundezas e belíssimas praias na Grécia. Tudo que uma criança curiosa precisava para crescer feliz.

 

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Os anos se passaram sem que Julian ou Tétis se vissem novamente, mas nunca escapou da memória da pequena sereia o cuidado daquele garotinho ao peixe descuidado que viu-se enganado por um anzol e arrastado para o mundo de ar. Ela sempre voltou àquela praia, mas raramente encontrava o garoto e, mesmo quando o via, fazia questão de não ser vista, invadida da mais curiosa vergonha.

E naquela tarde não havia sido diferente; o viu brincando na areia, mas ele não a viu, longe no mar em que estava. A sereia mergulhou, pois havia escutado dos outros na comunidade que havia uma estranha figura rondando as ruínas profundas de Poseidon; curiosa como uma criança livre, ela desatou a nadar profundidades imensas até a caverna por onde ela sabia ser a entrada para o Reino dos Mares.

Olhou para todos os lados, e acima e abaixo de onde estava, para checar se estava sozinha, mas apenas cardumes distantes pareciam estar por perto; não queria ser vista, pois ainda não era tempo de visitar o Reino de Poseidon, mas curiosa como ela era, aquela não era sequer a sua primeira visita. Ou décima. A bem da verdade, ela conhecia o caminho de cor e salteado, de modo que não se perdeu pelas cavernas submersas, nadando com graciosidade por seus caminhos sinuosos até que uma luz dourada iluminasse acima de sua cabeça.

Ela colocou os olhos para fora da água e viu o fogo das tochas nas pilastras de uma ruína parcialmente destruída; ainda estava dentro do oceano, mas aquele ponto da caverna servia como uma bolha de ar mágica, por onde ela podia voltar a ser menina. Saltou da água para a pedra e parou por um instante, para ter certeza de que não havia mais ninguém ali. E não havia. Logo ela se lembraria do motivo.

Correu com seus pézinhos de rato pela ruína até alcançar os degraus que levavam a um mezanino simples, onde duas colunas serviam de entrada para um salão muito iluminado e bonito, cheio de mosaicos, e um enorme vitral como parede que fazia com que a luz de fora refletisse em centenas de arco-íris para dentro. Ela subiu uma escadaria em espiral pela lateral e foi direto no seu lugar preferido: uma espécie de reentrância no vitral que havia se destruído e que permitia se ver através do oceano límpido daquela região até o maravilhoso Reino de Atlântida.

— Que lindo. — repetia ela toda vez que olhava aquela cidadela.

Tétis já sabia de cor todas as construções, a quantidade de torres, entradas e para onde cada rua pavimentada ia. Os pilares ao fundo, as esculturas, os mosaicos distantes. Tudo. Tudo ela conhecia, mas apenas à distância. E seu sonho era poder andar por aquelas ruas mágicas. A garota apertou os olhos, pois afinal de contas não havia descido ali apenas para recontar as torres, mas para averiguar aquele estranho boato de que alguém andava por aquelas ruas.

E, de fato, não demorou muito para que ela deixasse escapar um gritinho emocionado, levando a mão à boca imediatamente, como se para evitar que alguém a escutasse. Realmente havia alguém caminhando nas ruas do Reino e ela o acompanhou até que ele também sumisse dentro de uma das construções distantes.

— Que boba que eu sou. Ninguém vai me ouvir. — falou consigo mesma, muito feliz do que havia visto.

E enquanto refletia sobre aquele vulto, lembrou-se de suas próprias palavras. Estava sozinha. Ninguém estava no templo. Pois ninguém poderia estar no templo. Afinal estavam todos em um lugar muito específico. Ela levantou-se do chão, desesperada, quando finalmente deu-se conta.

— Droga. Estou atrasada!

E saiu correndo dali.

— Estou atrasada. Estou atrasada! — reclamava ela para si mesma.

Graças às suas caudas fantásticas, ela rasgou o oceano entre algas e corais em direção à superfície.

— Estou atrasada! — repetia ela, gritando pelos mares.

Ao longe, um grupo de golfinhos-listrados surgiram, como sempre faziam quando aquela pequena sereia se atrasava para algo. Ela abraçou um daqueles amigos e, batendo as barbatanas junto ao grupo, venceram as léguas submarinas com uma velocidade impressionante, deixando para trás os robalos e arraias que os cumprimentavam enquanto passavam.

— Estou atrasada! — respondia Tétis apenas.

Finalmente chegaram à superfície, onde Tétis despediu-se dos amigos golfinhos e saltou para fora da água pousando em um pequeno cais de madeira flutuante, já com sua cauda transformada em suas pernas humanas, cobertas por uma calça e calçados vermelhos, como se fossem feitos de suas próprias escamas, refletindo o brilho da lua cheia que brilhava no céu sem nuvens. Ela desatou a correr pelo caminho de madeira.

— Estou atrasada!

Em pouco tempo aproximou-se de onde havia gente aglomerada e ninguém podia interrompê-la, pois afinal de contas ela estava atrasada; e ela correu dali, passou por alguns conhecidos, sempre cumprimentando como podia, até chegar ao barco-central onde estavam todos os romanis ao redor de uma fogueira.

— Está atrasada. — falou um enorme homem com uma voz terrivelmente grave, que era quem ficava de guarda.

— Ai, eu sei. — falou ela, passando por ele já em voz baixa, para não interromper a discussão que já havia começado mais à frente.

Ela atravessou uma plateia, pedindo licença a todos, até que conseguiu chegar ao seu lugar reservado, onde sentou-se calada, na esperança de que não tivesse sido vista chegando atrasada, muito menos pelo velho que falava a todos, como sempre fazia.

— …então deixem o velho telquine em paz. — falou o ancião de calças azuis-brilhantes, já no final de sua fala. — Ele vai se aposentar em uma ilha isolada desse Mar Egeu e não nos trará mais dor de cabeça alguma. E isso é tudo que iremos falar sobre ele daqui em diante, ele nos deixará viver e nós o deixaremos morrer em paz.

Os demais romani concordaram, até que o velho tomou a palavra novamente.

— E agora que a senhorita Tétis já chegou…

Ela engoliu em seco quando todos os olhos mais velhos voltaram-se para ela, mas sorriu de volta um pouco desconfortável, arrumando a mecha que insistia em cair-lhe sobre os olhos.

— …podemos finalmente concluir a distribuição de funções para esse ano. Todos vocês já sabem seus postos para o ano. Mas o bravo Alastor deixará a mansão para cuidar das ruínas e Tétis tomará seu lugar. — falou ele, olhando profundamente para a menina e também para uma senhora que assentiu com a decisão.

— Mas…

— Não há 'mas', querida… — interrompeu ele, ao ver que Tétis havia se levantado de seu lugar com um enorme desapontamento no rosto. — Se você não tivesse se atrasado, talvez houvesse uma chance de ser escolhida para estar junto ao grupo de cuidará do Reino Profundo agora que nos aproximamos da Grande Chegada. Eu sei que esse era o seu desejo desde que era uma garotinha, mas eu preciso ser justo com aqueles que vieram em tempo.

Tétis sentou-se, amuada.

— Sua hora vai chegar, jovem Tétis. Basta que você chegue na hora certa. — alertou ele, com um sorriso terno.

Instalou-se certo burburinho entre todos, mas Tétis sentiu-se muito desapontada por ter perdido a hora e ter de passar o resto daquele ano ajudando o grupo na pior das tarefas que havia entre os romani: cuidar dos humanos. Tudo que ela mais queria era ser escolhida para ir ao Reino Profundo, como chamavam o templo submarino de Poseidon e saber mais daquele estranho vulto.

Três batidas secas na pedra fizeram todos olharem novamente para o ancião que falava.

— Agora que as tarefas estão decididas, eu gostaria da atenção e do carinho de todos, pois há um querido amigo entre nós. Um novo membro na nossa família. 

Os integrantes daquela reunião olharam-se confusos, pois afinal de contas eles todos se conheciam por muitos e muitos anos e não havia qualquer situação que um parente distante fosse introduzido entre eles. Apesar de tudo isso, desde o começo daquela reunião, os mais atentos de fato notaram alguém escondido nas sombras, principalmente Tétis, muito curiosa.

— Acalmem-se, povo dos mares. Quero que entendam que esse amigo não é abençoado como nós fomos, mas também foi escolhido por Poseidon e estará ao nosso lado para ajudar o Deus-dos-Mares quando chegar a hora.

O velho olhou para a sombra na escuridão e pediu que se adiantasse na luz da fogueira que queimava entre eles. Era um homem alto, cujos cabelos escondiam-se em um capuz, mas de compleição belíssima, embora tivesse as sobrancelhas fortes e sisudas.

— Este é Dragão-do-Mar.

Havia um sorriso no rosto do velho ancião, enquanto aquele misterioso homem apenas respondeu com um aceno de cabeça antes de olhar para cada um daqueles que o recebiam naquela comunidade.

— Dragão-do-Mar é um amigo que vem do Reino Profundo.

Espantaram-se todos com aquela revelação do velho e os olhos de todos finalmente caíram sobre o homem, que respondeu a eles com uma voz de trovão.

— Eu agradeço imensamente ao Velho Kostas e à toda comunidade-do-mar que têm se mantido fiel a Poseidon. Eu tenho certeza que o Grande Deus-do-Mar tem muita sorte em ter uma comunidade tão dedicada em sua memória. — falou o homem brevemente antes de levantar um copo tosco de ferro. — À Poseidon.

— Por Poseidon! — responderam todos antes de beber.

O misterioso homem terminou de beber o trago de seu copo de ferro e fez menção de sentar-se em um banco vago, quando o Velho Kostas tomou-o pelo braço, chamando sua atenção.

— Ora, Dragão-do-Mar, não se envergonhe. Esse é um povo de histórias e adoramos ouvir os contos dos mares. Conte-nos o seu.

Tétis olhou ávida para Dragão-do-Mar, pois sua grande obsessão era mesmo o Reino Profundo, onde contava-se que as colunas de Poseidon se levantavam em um templo absolutamente fantástico de magia. Ela sabia de tudo isso, de tanto que escapava para ficar olhando para ele, mas entre os mais velhos sempre fingia surpresa com as histórias. E agora aquele estranho homem entre eles e aquele estranho vulto nas vielas do Reino. O homem sentiu-se desconcertado, à princípio, como se surpreendido por aquilo, mas então deixou escapar um sorriso sedutor e falou a todos com sua voz profunda.

— A minha história é uma história de salvação. Salvo por Poseidon. — disse ele, levantando novamente o copo de ferro. — Trancado injustamente em uma prisão que agora eu tenho a função de proteger; a história de um prisioneiro que agora zela pela cela que o trancava. E enquanto vivi preso dentro dessas celas antigas, fui salvo da vida miserável detrás das grades pela misericórdia do Deus-dos-Mares e estive diante dele em seu Reino Profundo. Sou um dos Sete Escolhidos.

— Um Marina? — perguntou alguém da plateia.

Ele confirmou com a cabeça, para grande alvoroço dos que estavam presentes.

— Mas então nossa honra é ainda maior do que eu imaginava!

— De forma alguma, Velho Kostas. Sou tão servo de Poseidon quanto todos vocês.

— E como é o Reino Profundo? — perguntou Tétis, atraindo para si a atenção de todos, bem como a daquele enorme homem.

Ela amuou-se com tanta atenção, sem notar que o que a havia deixado acuada havia sido o olhar penetrante de Dragão-do-Mar antes de lhe responder.

— É imenso como Poseidon. Profundo como Poseidon. Forte como Poseidon. É Poseidon.

As palavras eram vagas, mas talvez sua resposta não pudesse ser mais precisa do que aquela. Foi tudo o que falou e, aproveitando-se da confusão que instalou-se com aquela misteriosa resposta que impressionou a todos, o homem finalmente sentou-se em seu lugar, tomando um trago de seu copo; o Velho Kostas emendou uma história fantástica sobre outro prisioneiro cigano da antiguidade e dedicou-a ao Dragão-do-Mar. Irene-dos-Bolos então levantou-se e convidou todos a experimentar os bolos que havia feito para a ocasião, bem como também cantar, comer, dançar e festejar entre irmãos. Tétis desarmou a carranca, embora ainda continuasse desapontada, e desatou a dançar com seus amigos.

Em um último momento, no entanto, olhou por sobre os ombros e viu o Dragão-do-Mar desaparecendo por um dos barcos da vila.

 

—/-

 

Assim que raiou o sol no litoral, Tétis foi acordada por Dona Irene em seu bote de lona amarela e acompanhou o grupo pela trilha curta que levava da praia onde eles ficavam até a Mansão da Família Solo. No meio do caminho à esquerda, a subida breve para o pontilhão onde ficava o Cabo Súnion e o Templo de Poseidon; a pequena sereia olhou triste para as ruínas, pois queria mesmo era estar embaixo do mar.

E assim pela manhã foi apresentada pelos romanis como parte do grupo que dali em diante passaria a trabalhar na Mansão. Eram todos contratados pela Família Solo para manter o lugar limpo e em ordem, bem como ajudá-los nas muitas recepções que recebiam naquela Mansão. O Velho Solo abriu um largo sorriso ao conhecer Tétis.

— Mas que garotinha adorável. — disse ele, arqueando para vê-la melhor. — Sabe, eu tenho um filho mais ou menos da sua idade e eu acho que vocês vão se dar muito bem.

Ela não respondeu nada, envergonhada, e encolheu os ombros atrás de Dona Irina, que era a governanta da casa. Aquela seria sua última escolha entre as tantas funções que os romanis dividiam entre si para manter a comunidade sempre viva e os cuidados de Poseidon em dia, mas seu atraso lhe deu a pior das sinas. Além de ficar longe do Reino Profundo, ainda teria de passar muito mais tempo do que gostaria sobre duas pernas e não varando os mares com sua cauda mágica.

A primeira semana foi a mais difícil. Voltava o quanto antes para casa e se enfiava debaixo da lona amarela, recontando e brincando com seus muitos tesouros de um tempo mais feliz: as conchas das mais variadas cores, tamanhos e tipos, escamas especiais e brilhantes, pérolas que encontrou fundo na areia pura do oceano, corais de mil-cores, um bulbo tênue, mas ainda luminescente de uma criatura abissal, os dentes de marfim de um enorme tubarão e assim por diante, coisas que ela encontrou pelos mares e pelas ilhas do Egeu de que sentia falta. E a concha-íris, como a chamou. A mais bela de sua coleção.

E no dia seguinte, tão cedo quanto o sol, ela estava de volta à Mansão. Jovem como era, sobravam as tarefas mais simples do cuidado de casa para ela; coisas como colocar a roupa suja para lavar, levar as roupas limpas de volta aos quartos, recolher cartas que chegavam por emissários até a sala de estar, obedecer a alguns pedidos simples das mais velhas ou até mesmo voltar ao porto dos romanis para buscar qualquer ingrediente ou pedido para o almoço e jantar.

Triste, ela fugiu no sexto dia de trabalho e foi se lamentar nas Ruínas Submarinas, olhando pelo vitral quebrado o grupo de sereios que trabalhava alegremente nas ruas de Atlântida. Com a mão colada no vidro e o rosto retorcido de mágoa.

— Seu momento vai chegar.

Ela assustou-se com a voz de trovão que apareceu ao seu lado sem que ela se desse conta. Era um homem de expressão fechada, os cabelos longos atrás de um robe escuro.

— Me desculpe, eu… eu só estava olhando.

— Salve suas desculpas, sereia. — retornou ele, sério. — Já te vi aqui antes, zelando por nosso Deus Poseidon muitas vezes. Jamais peça perdão por isso.

— Eu me lembro de você. Você é o Dragão-do-Mar, não é mesmo?

— É como Poseidon escolheu me chamar. — respondeu ele, misterioso.

Ela olhou de volta para a cidadela iluminada lá embaixo.

— Eu gostaria de estar lá.

— Um dia estará. — respondeu o homem se aproximando, e Tétis olhando de volta para seus olhos profundos. — E quando estiver, precisará estar pronta.

— Eu estarei.

— Tenho certeza disso. Mas ainda não está. — falou gravemente. — Venha até aqui na terceira noite de cada lua e eu farei com que esteja pronta.

— Terceira noite de cada lua? — repetiu ela, para guardar bem na memória.

— Sim. Agora volte para a superfície.

— Eu gostaria de visitar a cidadela.

— Tudo ao seu tempo, criança. Volte.

Aquela noite ela voltou e, dali em diante, passava suas semanas contando as noites e as luas para nunca perder aquele encontro. Mas durante os dias, sua função era a de manter a Mansão em ordem junto aos demais romanis, e se a primeira semana havia sido difícil para ela, a segunda não foi muito melhor, pois o garoto da família havia retornado de viagem, o que tornara sua vida ainda mais complicada.

Ele ficou radiante de que havia uma criança romani com quem poderia brincar, mas Tétis não podia ser obrigada a nada, de modo que se escondia sempre que percebia o menino em algum aposento, e logo que seu horário chegava ela corria para longe dali. Com sucesso, em sua segunda semana, não trocaram palavras, e tudo que Julian viu da criança romani foram suas calças vermelhas e brilhantes desaparecendo por algum canto sempre que ele se aproximava.

Até que chegou o grande dia da Mansão Solo.

A festa de aniversário de Julian. Ele faria dez anos, o que dava à ela algo perto de onze ou doze, pouca coisa a mais. E os romanis seriam os encarregados de organizar e servir durante a celebração.

— Aonde está com a cabeça? — perguntou Dragão-do-Mar certa noite.

— O que foi que eu fiz? — tornou ela, sem compreender.

— Não está concentrada. — falou ele. — Seu Cosmo está vacilante, deve prestar melhor atenção se quiser ser útil a Poseidon.

— Me perdoe, Dragão-do-Mar.

A cabeça dela estava na festa que seria no dia seguinte.

Qualquer recepção naquela mansão era, sem dúvidas, dos momentos mais aguardados do mediterrâneo e, embora fosse uma festa de criança, a bem da verdade, Julian às vezes era a única criança em seu próprio aniversário. O menino sempre muito ajeitado, de paletó marinho e o cabelo escovado, sentia-se perdido entre os muitos adultos em trajes de gala sendo servidos pelos romanis em seus uniformes bordados.

Ela ainda lembrava-se da tarde em que o garotinho havia salvo o peixe, mas talvez o garoto já não se lembrasse daquele par de olhinhos brilhantes atrás das pedras, pois nunca mais voltaram a se falar.

Até aquela noite.

Naquela noite de festa, ela estava de prontidão. E nas muitas idas-e-vindas ao segundo andar, subindo e descendo pedidos bobos, ela deu de tropeçar nos sapatinhos limpos do garoto Julian. Caíram ambos, um de cada lado.

— Ai, por favor, me desculpa! — falou ela logo de uma vez.

— Não, claro que não, a culpa foi toda minha. — respondeu o garoto, se levantando rápido e a ajudando a recolher a decoração da festa que já se acabava.

— Não precisa se incomodar, deixa que eu pego. — protestou ela, tomando duas guirlandas do garoto.

— Me deixa te ajudar. — falou ele, pegando de volta. — Ei, eu… Eu lembro de você. Sim, você é aquela menina. A menina da praia, não é?

A menina tentou esconder os olhos atrás de uma guirlanda, que ele prontamente tirou da frente.

— Como era mesmo o seu nome? Ah! Tétis! Eu me lembro de você. Você me salvou naquele dia.

— Não sei do que está falando.

— Você não se lembra de mim? Eu quase me afoguei no mar e você…

— Não me lembro de nada assim.

— Mentira, você lembra sim! — teimou ele.

— Você deve estar me confundindo. — mentiu ela, enquanto recolhia outra guirlanda do chão.

— Claro que não. Eu sei que é você! — confirmou ele. — Eu voltei na praia todos os dias à tarde, mas você não apareceu mais.

— Eu não sei do que está falando. — repetiu ela.

Julian então derrubou tudo que ela já havia pego do chão.

— Ei! — protestou ela, enquanto ele sorria.

E a garota se agachou para recolher as decorações novamente, quando o menino teimou em derrubar tudo outra vez.

— Ai, tá bom. Era eu. E eu não voltei porque você era muito chato.

— Eu sabia que era você. — falou ele, sorridente, enquanto a ajudava a recolher tudo de novo.

— Pronto, agora eu preciso ir. — anunciou ela, colocando-se novamente de pé com tudo no colo.

— Eu te ajudo com isso, vai que você cai de novo.

— Eu não vou cair.

— Você não tem como saber disso.

— É só você olhar por onde anda. — reclamou ela, pisando duro no carpete.

— Não vai me dar 'feliz aniversário'?

Ela parou de costas, respirando fundo, e falou sem olhar para ele.

— Feliz Aniversário, menino.

— É Julian! — brigou ele.

— Feliz Aniversário, Julian.

E saiu pela porta, deixando o garoto sorridente para trás.

Sorridente, pois ele também pensava por vezes naquele fugaz encontro naquela tarde de seu aniversário de seis anos. Cercado sempre por seus pais, bem como por todos os romanis da casa, que pareciam ainda mais velhos com suas peles torradas pelo sol e sulcadas pelo tempo e vento, Julian sentia-se a única criança do mundo. E quando a Mansão recebia familiares ou mesmo eminentes desconhecidos em alguma recepção que seu pai agendava, ele era sempre o garoto diante do qual todos se ajoelhavam para apertar as bochechas e comentar como estava grande.

Mas havia descoberto que não era a única criança do mundo, pois aquela garotinha também existia. E agora estaria em sua casa todos os dias.

E isso trouxe grande alegria para o menino.

Julian buscava sempre um modo de ir brincar com Tétis, atrapalhando seus afazeres, dos quais os romanis a liberavam para que ela pudesse mesmo passar o tempo com um menino tão solitário como aquele. Ela odiava aquilo no começo, mas era tudo fingimento seu, pois ela também era a única criança entre os romanis e sempre adorava quando Julian trazia um caleidoscópio ou um penduricalho curioso que seus pais traziam para ele de suas viagens. Era como se ele também guardasse curiosidades da terra, como ela guardava os do mar. Ela adorava tesouros.

Pois conforme os dias, semanas e meses foram se passando, a bronca de Tétis para com Julian foi se desanuviando e, de fato, a garota ia mais para a Mansão para brincar com ele do que para brigar com o menino. E entre brincadeiras, tesouros, aventuras nas trilhas do Cabo, machucados de quedas e até mesmo broncas dos romanis por qualquer travessura dentro de casa, Tétis e Julian tornaram-se grandes amigos e confidentes.

E aquele ano foi um ano feliz tanto para um como para o outro. De dia, Tétis havia descoberto um bom amigo com quem divertia-se na mansão e na praia, e em certas noites, dedicava-se com afinco ao treinamento curioso e rígido de Dragão-do-Mar; certos hematomas e feridas que trazia, ela fingia serem de tombos e capotes por aí com Julian.

O segredo de sua dádiva, no entanto, Tétis ocultou daquele seu novo amigo, pois afinal de contas ela não queria assustá-lo com o que julgava ser algo muito estranho. Muito distante daquela vida tão brilhante e cheia de joias que ele vivia em sua mansão; ele sempre tão limpo e ela sempre salgada. Ao cair da noite, sempre se despediam quando ela voltava com alguns romanis para a vila em alto-mar onde viviam, a poucos minutos dali, enquanto ele ficava em seu castelo de ouro. Mas assim que raiava o dia já estavam juntos.

E assim como passaram os meses, logo passou o ano todo.

Era tempo de organizar mais uma festa de aniversário, só que dessa vez o Velho Solo fez um pedido inusitado: que preparassem comidas e alguns passatempos infantis.

— Um novo amigo do oriente virá com suas crianças, não podemos deixá-las entediadas.

 

Tétis abriu um enorme sorriso. Não por ela, mas principalmente por Julian. E a festa foi um sucesso. Ainda que ela tivesse que ficar nos afazeres da cozinha para ajudar os romanis, qualquer oportunidade que tinha para olhar os quintais, ela o fazia para ver como Julian parecia feliz, pois outras crianças realmente haviam sido convidadas naquele ano, como seriam sempre dali em diante. Tétis sentia-se feliz, pois durante o ano todo ao lado dele ela percebeu o quanto que Julian se sentia só no Mundo, mas naquele único dia de seu ano, naquele dia ele podia correr atrás de outras crianças.

E quando todos iam embora depois da festa, os pais de Julian pediam aos romanis para que Tétis ficasse na Mansão aquela única noite, e por isso era também um dos dias mais especiais para ela. Os dois dormiam no sótão olhando pela janela para as estrelas que salpicavam o céu acima do Mar Egeu, como se as nuvens sempre se afastassem no dia de aniversário daquele garoto. Contavam histórias, Julian falava-lhe das brincadeiras com as outras crianças, abriam seus presentes juntos e dormiam jogados no chão dentro de sacos de dormir.

Era o dia mais feliz para Julian. E para Tétis.

Um desses dias e noites, no entanto, caiu exatamente na terceira noite da lua nova. Ela foi na noite seguinte escondida e, como já esperava com o coração aflito, o Dragão-do-Mar estava lá. Sempre com sua compleição dura.

— Me perdoa, Dragão-do-Mar, ontem era aniversário do garoto da Mansão em que trabalho e eles me pedem para ficar lá durante a noite, então eu não podia sair de lá e…

Dragão-do-Mar ergueu o dedo e Tétis se calou.

— Já disse que não há necessidade de se desculpar. — falou ele, caminhando até o vitral e apontando para um grande pilar no centro da cidadela. — Veja, Sereia Tétis, aquele é o Coração de Poseidon.

— O Coração?

— Sim. É ele que sustenta todos os Oceanos do Mundo e também é ele que pulsa a vitalidade do Deus dos Mares.

Ela olhou maravilhada, pois sempre perguntou-se a finalidade de um pilar tão grande e nunca havia lhe passado pela cabeça que ele poderia sustentar os mares.

— Logo chegará o momento do Despertar de Poseidon. E você será uma das escolhidas para estar ao seu lado em seu Reino.

— Eu? — surpreendeu-se ela. 

— Sim. Mas até lá, cumpra com seu destino. Não voltaremos mais a nos ver até que seja chegado o momento.

— O que quer dizer, Dragão-do-Mar? Não virá mais me ensinar o Cosmo? Isso é por que eu faltei à terceira noite de ontem? Ora, Dragão-do-Mar, eu já lhe falei que…

— Não há mais nada a lhe ensinar, Sereia Tétis. Agora viva sua vida e lembre-se: esteja pronta quando chegar o momento.

Ele desapareceu naquela noite e Tétis nunca mais o viu. Muitas vezes ainda voltou àquele vitral submerso tentando adivinhar se um dos vultos que via no Reino do Mar era ele andando de lá pra cá em suas missões secretas, mas ela não podia ir até ele e ele não viria mais até ela. Com o tempo, deixou de voltar àquele lugar, pois mais frequentemente passou a dormir na Mansão Solo no sótão de Julian.

 

E assim eles cresceram juntos. 

E crescer não é fácil. Os anos foram passando e Tétis começou a perceber uma estranha enfermidade no corpo; um calor que, por vezes, fazia corar sua face, uma falta de energia que a fazia esmorecer, um frio no estômago repentino que a assustava, uma sensação flutuante disparando pensamentos mirabolantes no fundo do mar. E com medo de que fosse a doença-do-mar, o mal-estar da poluição das águas, ela certa vez foi muito preocupada no bote velho do ancião da vila.

— O que pode ser tudo isso que sinto, Velho Kostas? Será que chegou a minha hora?

Mas ele riu de maneira muito gostosa.

— Diga-me, pequena Tétis, quando você tem essas sensações, me conte?

— Em qualquer lugar. — respondeu ela, olhando para o chão. — Mas na Mansão é onde elas ficam mais fortes. Principalmente perto do Julian. Será que eu sou alérgica a ele? Ou será que ele pode estar doente e eu não sei?

Novamente, o Velho Kostas riu e abraçou a pequena.

— Isso é o amor, querida Tétis. — respondeu o velho com seu diagnóstico.

O amor.

Que nome estranho de doença.

 

—/-

 

Julian e Tétis transformaram-se em melhores amigos, mas aquela estranha doença que ela carregava consigo também parecia ter sintomas cada vez mais fortes. Certa vez, antes de caírem no sono no sótão da Mansão, Julian chamou por ela.

— Tétis?

— Que foi, Julian? — respondeu ela, docemente virando-se para olhar para ele.

— Você já gostou de alguém?

A pergunta a confundiu. Ela gostava de muitas pessoas.

— Como assim? Eu gosto do Velho Kostas, da Dona Irina e de todo mundo da vila. Bom, menos do André. Eu acho que ele é parente do telquine, então ele acha que todo mundo na vila odeia ele, mas não é verdade.

— Não falo assim, Tétis. — falou ele, olhando para ela. — Como nas histórias que seu povo conta. Gostar de amor.

Ela imediatamente sentiu todos os sintomas da doença amor ao mesmo tempo; por sua sorte, estava escuro e Julian não viu seu rosto virar um tomate.

— Ah, acho que não. — mentiu ela, vacilante, embora seus olhos já estivessem completamente mergulhados e afogados nos olhos oceânicos de Julian.

Ele ficou pensativo e os dois entreolhando-se longamente.

— Posso te pedir uma coisa, Tétis?

— Claro. — respondeu ela, mole.

— Entre todos os seus tesouros, você poderia me dar aquele que você acha mais bonito?

— Meus tesouros? — perguntou ela, como se acordada de um transe.

— Sim. — tornou ele.

— E o que vai fazer com ele? — perguntou ela, muito preocupada com seus tesouros.

Ele sorriu para ela na escuridão e se aproximou de seu rosto com o dedo na boca.

— Segredo.

Tétis quase desmaiou com o cheiro dele e o empurrou de volta para o saco-de-dormir.

— Vai dormir, Julian.

Riram e dali um pouco dormiram cada qual com um sorriso enorme no rosto.

No dia seguinte, ela voltou à sua lona amarela e deu para Julian sua concha favorita, a mais linda de todas, em troca de um caleidoscópio da coleção do garoto que ela fingiu gostar tanto quanto aquela concha.

— Ótimo fazer negócios com você, dona Tétis. — falou Julian, orgulhoso da concha, fingindo ser o herdeiro que ele era.

— Agora você tem que me falar o que vai fazer com ela.

— Um dia eu te conto. — falou ele, misterioso.

— Agora vamos que eu tô sentindo o cheiro do bolo da Dona Irina daqui.

Desceram, mas Tétis ficou corroída de curiosidade. O que diabos Julian faria com aquela concha perfeita? Em que plano infalível ele usaria aquela concha que parecia ter absorvido a luz de um arco-íris? Isso ela só viria a descobrir anos mais tarde em uma noite terrível.

Julian e Tétis tornaram-se tão amigos que, assim que Julian passou a participar das viagens de seu pai à negócios, não era raro que Tétis fosse convidada para ir junto com eles. Julian fazia questão de que ela conhecesse os Sete Mares e assim, juntos, conheceram as Américas, as Ilhas Canárias, a Polinésia, o Ártico, o Mar Báltico, a Índia e o Japão, como também as Maldivas e a Bahia.

Se Tétis uma vez havia amaldiçoado sua sina de ter perdido a hora quando tinha dez anos e se tornado parte do grupo da Mansão, ela nunca mais pediu para mudar ao Reino Profundo nos anos que se seguiram, ainda que tivesse oportunidade. E havia já entre os romanis da vila aqueles que a invejavam por poder experimentar tantos mares diferentes, conhecer tantos litorais e peixes distantes.

E as memórias que Tétis e Julian construíram por esses anos em cada lugar maravilhoso ficavam para sempre no coração da garota. Dividiam sorvetes, brincadeiras, olhavam juntos o pôr e o nascer do sol, bem como a lua refletida em mares ao redor do mundo.

Até uma terrível noite na Normandia.

O Velho Solo já havia retornado à pousada em que se hospedaram, de modo que Tétis e Julian ficaram sentados na areia de uma praia com poucas pessoas, olhando a lua refletir no mar. Os dois muito felizes.

— Vou pegar água pra gente. — anunciou Tétis e Julian sorriu para ela.

— Não demora.

Ela levantou-se na areia e atravessou a orla até um quiosque próximo da rua de paralelepípedos com o dinheiro corrente do lugar para pedir duas águas geladas. Ao se aproximar, uma garota bonita acabou esbarrando nela sem querer e pediu perdão em sua língua-comum, que Tétis não compreendia.

— Pardon. — adiantou-se Tétis, tentando no idioma local e desculpando-se pelo erro da outra.

Não se entenderam, riram uma para a outra e cada qual tomou seu caminho; Tétis ainda olhou por sobre os ombros, pois a menina não lhe parecia estranha, embora não soubesse de onde a conhecia. Comprou as águas e deu meia-volta para voltar à orla quando viu novamente a garota de costas apoiada contra o parapeito sozinha; era uma área do quiosque com algumas mesas e cadeiras, mas naquela hora da noite, como por um milagre, ela estava sozinha. De onde estava, Tétis podia ver apenas a barra de seu vestido branco e seus sapatinhos perfeitos; precisou afastar uma folha de coqueiro que lhe barrava a visão da princesa.

E quando o fez, seu coração pareceu parar.

A garota brincava com a sua concha favorita.

Tétis jamais a confundiria com qualquer outra concha do mundo e saberia de cor todas as curvas e detalhes daquela concha furta cor perfeita, assim como o modo que a luz da lua refletia nela, como os fogos de artifício refletiram no primeiro dia que a encontrou. Como encontrou Julian. Era a sua Concha.

A confusão de como ela poderia tê-la nas mãos durou apenas dois segundos, pois imediatamente Tétis chegou à verdade que fez seu coração despencar, seus ouvidos esquentarem e sua audição quase apagar. Julian havia dado para ela. Agora ela a reconhecia, lembrava-se dela. Ela era a filha de um velho oriental amigo da Família Solo, a filha entre muitas crianças que passaram a frequentar as festas de aniversário de Julian. Era sobre ela que Julian havia perguntado sobre o amor.

Tétis deu meia-volta e engoliu em seco.

Julian havia dado sua concha favorita à garota que ele amava. Como ela o amava.

Quase sem perceber, com a cabeça em outros mil lugares, ela simplesmente retornou para o lado de Julian com as águas.

— Aconteceu alguma coisa, Tétis? — preocupou-se ele, acordando-a de seu transe.

Ela olhou para ele e encontrou aquele olhar triste que ele geralmente tinha. E tão doente por ele, ela decidiu fazer algo para que seus olhos se enchessem de alegria.

— Eu tenho uma surpresa pra você. — anunciou ela, escondendo sua dor no sorriso.

— Uma surpresa? — animou-se logo ele.

Ela pegou-o nas mãos e levou-o até a rua do quiosque. Pediu que ficasse calado e não fizesse qualquer barulho. E quando afastou a folha de coqueiro e viu a garota sozinha no parapeito, ela imediatamente olhou para Julian e encontrou nele a mesma expressão de choque que ela havia experimentado antes. Ele se afastou e ela foi ao seu encontro.

— Como… como você sabe? — perguntou ele, confuso.

Ela não sabia.

— Ah, Tétis. — desabou ele. — Eu não sei se ela gosta de mim.

— Quem não gostaria?

— Você não entende.

— Veja melhor, Julian. A Concha. Ela está com a concha.

Ele olhou novamente e seus olhos marejaram ao ver que ela havia guardado o presente. E sorriu. E Tétis sentiu o peito rasgar.

— Ah, Tétis. Você é a melhor amiga que existe.

— Por que não me contou?

— Porque tinha vergonha. — sorriu ele, embaraçado. — Vergonha do que sentia. A gente mal se vê, e… Eu nunca senti isso em minha vida. A primeira vez que ela veio na festa, era como… eu não sei explicar, é como se eu tivesse explodido com a luz do som. Com a música de anjos.

— Como você é brega, Julian. — sorriu Tétis para ele.

— E nas poucas vezes que eu a vejo é como se alguma coisa em mim tivesse morrido e outra coisa acabado de nascer. E graças a você… Ah, Tétis.

Ele abraçou ela. E cada palavra do rapaz eram como facas no peito de Tétis.

— Devo ir?

— Claro. — falou ela.

— Como estou? — perguntou ele, e ela tirou um pouco da areia que ele tinha nos cabelos.

— Melhor não vai ficar.

— Ah, Tétis. — reclamou ele, brincando.

Respirou fundo, abraçou Tétis e finalmente foi. Atravessou a folha de coqueiro para estar ao lado da misteriosa garota, deixando para trás quem o amava tanto.

Tétis juntou as duas garrafas de água em uma mão e foi caminhar por aquela rua de bares iluminada pelas muitas fachadas acesas na noite; o chão de pedras úmidas refletindo a luz neon enquanto ela caminhava sozinha em meio ao vozerio da boemia que se espalhava por aquela rua que agora começava a ficar cheia. Ela muito sozinha.

Parou diante de uma vitrine escura e viu que a luz da rua permitia que ela se enxergasse como um espelho na noite; os cabelos sempre úmidos, os olhos cansados, a blusa simples e a calça vermelha brilhante. A concha jamais poderia ser para ela

Mas filha das águas, ela sonhava. Sonhava sempre estar ao lado dele. Caminhando com ele ao seu lado, segurando sua água, enquanto andavam pela praia até a manhã chegar. Ou sozinha, perdida, até que ele a encontrasse.

Uma fina garoa se precipitou naquela noite triste, a rua cintilava feito prata e as luzes da rua agora pareciam névoa de rio, feito sonhos, que era tudo que ela tinha. Fechava os olhos, pois não podia chorar, e quando olhava para si, se via viajando em seus próprios pensamentos. Ainda que soubesse ser tudo coisa da sua mente, fantasia de garota dentro de uma lona amarela onde falava consigo mesma e não com ele, ainda assim acreditava em um destino em que ficassem juntos.

O Velho Kostas tinha razão, sua doença era mesmo o amor. E ela o amava. Mas ele sempre partia. Seu mar parecia só mais um mar, pois sem ele, o mundo girava ao redor de Tétis e as coisas eram apenas coisas, as árvores eram apenas árvores e as ruas eram cheias de gente desconhecida. Amar era uma eterna fantasia sua, pois sem ela o mundo de Julian seguia girando; um mundo de alegria que ela nunca conheceria.

— Eu amo ele.

Sua voz finalmente deixou de ecoar em sua cabeça e ela falou para si mesma o que lhe apertava no peito.

E sem notar, viu-se com os pés na areia diante do mar. Tudo vazio ao redor e por dentro.

Profundamente entristecida, a sereia voltou para o mar e deixou-se afundar por tanto tempo naquelas águas escuras que não soube precisar quantas memórias se passaram até que juntasse forças para voltar. Em suas mais profundas tristezas, ela sempre escolhia afundar-se no mar, pois sentia-se suspensa em animação. As sereias não podem chorar, pois não possuem lágrimas, e por isso sofrem ainda mais do que os homens. Tétis jogava-se no mar quando ficava triste, pois então fingia que o oceano inteiro era suas lágrimas, do tamanho da tristeza que sentia.

Naquela noite, ela pensou que seria melhor que a doença em seu peito fosse mesmo a poluição do mar.

 

—/-

 

Tétis guardou aquele sentimento profundo e escondeu seus sentimentos de Julian, sendo para sempre a amiga confidente e inabalável ao seu lado. Às vésperas das festas de seus aniversários, Tétis sempre crescia muito ansiosa e triste, pois sabia que Julian a veria novamente. Mas na verdade, nos anos que seguiram, ela nunca mais apareceu; para grande tristeza do garoto, que já ia se tornando um homem. Tétis o consolava e a vida seguia, pois ele tampouco parecia enxergá-la.

 

Foi em seu aniversário de dezoito anos que se passou aquilo que mudaria o destino dos dois.

Tétis, àquela altura, já podia chegar perto das pratarias e copos que os romanis a proibiam quando criança; e nas festas ela já atuava como copeira, levando aos estimados convidados suas bebidas e aperitivos. Aquela era uma celebração especial que não apenas festejava os dezoito anos de Julian, bem como também uma passagem de comando da empresa da família por seu pai para o agora novo homem. E foi nessa festa, enquanto passava a bandeja de convidado a convidado, que Tétis sentiu o coração parar ao deparar-se com a dona do vestido branco. Mulher crescida, linda, mas sempre ao lado da garota séria e sisuda; dessa vez, no entanto, ela parecia escoltada por um homem alto e terrivelmente bonito.

Ela voltou correndo à cozinha, deixou a bandeja na primeira mesa descoberta e saiu pela porta dos fundos, correndo pela areia até Julian, que estava sozinho olhando o mar quebrar no horizonte.

— Julian! Julian! — chamou ela, dividida entre o coração partido e a vontade de dar uma boa notícia para ele.

— Tétis? — perguntou ele. — Aconteceu alguma coisa?

— Ela chegou, Julian. A garota do vestido branco chegou.

Seu rosto iluminou-se de alegria, pois nos dias que antecediam a festa, tudo que Julian se perguntava era se ela viria ou não viria. Ao passo que sua grande amiga Tétis finalmente lhe deu a notícia que esperava. Ele a abraçou e ela o viu voltar correndo para a festa, enquanto ela ficou ali diante do seu oceano sem poder se jogar nele, pois precisava ajudar na festa. E quando deu meia-volta para também retornar à Mansão, viu que às suas costas se aproximava um vulto conhecido.

Ele caminhou tranquilamente e estendeu algo para ela.

— Tome. — falou o homem de voz de trovão.

Ela tomou nas mãos um pedaço bonito de um coral de mil-cores, que o homem cuidadosamente a ajudou a colocar ao redor de seu pescoço.

— Quando chegar o momento, será você que o levará para conhecer o seu destino.

— Quem?

— Solo.

— Julian?

O Dragão-do-Mar assentiu.

— O que quer dizer?

— A resposta está no Cabo Súnion. — disse ele, apontando à direita de onde estavam, para as ruínas que podiam ser vistas da Mansão. — Quando chegar a hora, você o levará e ele finalmente vai te olhar por quem você realmente é, Tétis.

— E como vou saber o momento certo?

— Você saberá.

E o misterioso homem a deixou ali sozinha, desaparecendo nas águas do mar. Ela apertou o pingente de coral e voltou para a festa. Caminhou da areia para as escadas de madeira e quando chegou à altura da área aberta da parte externa da mansão, precisou se esconder, pois notou que um casal conversava à beira do parapeito, sozinhos.

 

— Saori Kido, você gostaria de dividir essa alegria comigo?

Ouviu Tétis a voz de Julian perguntar à garota. Ela colocou a mão na boca e fechou os olhos, envergonhada de estar ali ouvindo uma conversa que não era sua; não podia voltar, pois seria vista, tampouco poderia passar atrás deles para dentro do salão, ou também poderia atrapalhar. Precisou virar uma estátua (e como ela gostaria que realmente estivesse petrificada, incapaz de ouvir qualquer palavra). Mas ela ouviu todas elas. Cada vírgula. E o diálogo pareceu passar aos seus ouvidos feito um raio; seu coração batendo como as águas batiam contra a pedra. A garota de branco rejeitando Julian caiu feito um tijolo em seu estômago, novamente dividido entre a alegria e a tristeza. 

— Agora, eu lhe pedirei licença. O sol já está se pondo e eu preciso retornar. Fique bem, Julian.

Pois ele não ficou.

E os soluços de seu choro, Tétis ouviu de onde estava, e ela foi estar junto ao seu amigo. Ele surpreendeu-se ao vê-la se aproximar, mas nem por um momento passou por seu pensamento recriminá-la por estar ouvindo tudo; pois de verdade, ele até preferia que houvesse sido assim. E chorou nos braços de Tétis.

— Por que isso, Tétis? Qual é o problema comigo? Por que ela não me enxerga?

— Oh, Julian…

— Eu não aguento mais ser tão sozinho. Não ter ninguém. Eu posso ter tudo que eu quero. Comprar tudo que eu preciso, mas não tenho ninguém com quem compartilhar.

Ele tinha, ao lado dele. Mas Tétis reconhecia que Julian era mesmo muito solitário, filho de pai ausente e terrivelmente rico, que abdicou da criação do menino aos romanis da casa, que certamente cuidavam de tudo, mas ela sabia que eles não eram sua família. E pensou na alegria de sua vida que era estar ao lado de seus iguais, como se divertiam, como ela era acolhida em suas dores. E Julian realmente não tinha ninguém para perguntar das doenças de seu coração. Ao menos tinha a ela, pensava Tétis.

Enquanto se abraçavam, a sereia viu ao longe um brilho pulsar levemente nas ruínas do Cabo Súnion, como se houvesse uma misteriosa fonte de luz entre suas colunas. Ela apartou o abraço do amigo e apertou o pingente de coral olhando nos olhos do rapaz, vermelhos e lacrimosos de tristeza. 

Tornou a olhar para a estranha luz do Templo e lembrou-se das palavras do Dragão-do-Mar.

— Seu destino, Julian.

— O quê? — perguntou ele, chorando.

O destino de Julian. O dever do povo-do-mar. O brilho de Poseidon.

Ela limpou as lágrimas do rapaz e compreendeu quem ele era, mas mais do que isso: compreendeu também o momento em que se encontrava. Ela lhe perguntou com calma:

— Você confia em mim?

— O que está dizendo, Tétis?

— Você confia em mim? — tornou ela.

— Sempre. — respondeu ele.

E então ela o puxou pelas mãos para que a acompanhasse para longe daquele casarão, que Julian o fez sem dizer uma única palavra até que estivessem nas ruínas do Templo de Poseidon, ao alto do Cabo Súnion. A noite era belíssima e, embora não houvesse qualquer lua no horizonte, o Templo parecia iluminado; uma fonte de luz parecia queimar-lhe no centro feito um lago de luz, enquanto na beira daquele pontilhão brilhava fortemente um único artefato maravilhoso: um tridente.

Julian levou a mão aos olhos para evitar se cegar com aquele brilho.

— De onde surgiu este tridente?

— Ele pertence a você desde a Era Mitológica.

— O que quer dizer com isso, Tétis? — perguntou ele para ela.

— É exatamente o que lhe digo, Julian. — sua voz tornou-se mais séria. — O Senhor dos Mares, Poseidon.

O rapaz perdeu o fôlego por um instante.

— Poseidon? — perguntou-se ele, olhando para como o Tridente ressoava com seu corpo.

— Não há dúvidas sobre isso. — observou ela. — Agora eu compreendo nosso papel. Nosso povo é aquele escolhido para cuidar de Poseidon. E você é aquele escolhido para carregar o Tridente dos Mares. Para ser a encarnação do Deus dos Mares.

— O que está dizendo, Tétis? Você enlouqueceu!

A sereia levantou-se e impediu Julian de fugir dali, pedindo para que ele olhasse como suas mãos agora brilhavam com a mesma energia que queimava naquele tridente.

— Aquele tridente pertence a essas mãos, Julian. Tome o que é seu.

O rapaz finalmente colocou-se diante do Tridente.

— Você é muito maior do que um homem qualquer. Mais do que um herdeiro e muito mais do que um pretendente. Você está além dos mortais. Você é um Deus.

Julian tomou o Tridente dos Mares com sua mão direita e o mar inteiro respondeu ao seu chamado em uma explosão de luz que fez pulsar seu mais profundo Cosmo oceânico. Ele buscou os olhos de Tétis para ter certeza de que não estava enlouquecendo e viu o pingente de coral da amiga brilhar também em seu peito, um sorriso lindo no rosto.

Tétis ajoelhou-se e percebeu o pingente de coral pulsar junto àquela imensa energia que o rapaz à sua frente transmitia; a luz de sua vida agora tinha um tridente nas mãos e um destino divino à sua frente. Mas tal qual o homem que antes adorava, aquele Deus-do-Mar também estaria muito além de seu coração.

Ele era um Deus. Ela seria para sempre apenas uma sereia.

 


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Notas finais do capítulo

SOBRE O CAPÍTULO: Esta é uma história lateral que serve unicamente para humanizar e criar uma conexão entre Julian e Tétis. Ela é largamente inspirada pelo conto original da Pequena Sereia, escrito for Hans Christian Andersen; algumas passagens são realmente idênticas para não deixar dúvidas de onde veio. Senti que combinava bastante com Tétis e também com Saint Seiya ter uma inspiração tão clara, afinal de contas vários personagens da série são baseados em grandes histórias do mundo. Senti que Tétis merecia isso. A relação entre Tétis e Julian não é somente inspirada pela Sereia e o Príncipe, mas também entre Eponine e Marius, no musical Les Miserables. Toda a tragédia da amiga que não é enxergada, eu tirei do musical, que eut também gosto muito. No final, o capítulo é um respiro para apresentarmos um tema que será muito importante na parte final do Arco de Poseidon.

PRÓXIMO CAPÍTULO: AS RUÍNAS DE ASGARD

Após o término trágico da batalha, resta à Freia e aos Cavaleiros de Atena, recolher os destroços da batalha para se reconstruírem.



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