Milagre em alto mar escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo único




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Ao receptor desta missiva, devo dizer antes de tudo que eu, Edward Teach, não fui a testemunha ocular de todos os eventos descritos a seguir. No entanto, ouvi a história a partir de vários pontos de vista, tentando extrair da contradição a verdade tênue ali existente.

Há poucos dias, minha possível morte já era falada pela tripulação. Não tínhamos ouro para pagar um médico ou mesmo aliados que pudessem nos ajudar. Eu, por outro lado, tinha abundância de dores, enjoos e uma terrível vermelhidão nos olhos.

Porém, naquela manhã nebulosa, algo em meio ao mar chamou a atenção de Lovecraft, antigo membro da tripulação.

— O que é isso? Um barril?

— Parece um barril — Anselmo concordou.

— Que esteja cheio de rum!

Jogaram a corda e conseguiram puxar o barril para dentro do navio. O peso condizia com um barril de rum parcialmente cheio, mas a distribuição era estranha, como se não houvesse líquido ali dentro. Além disso, um buraco era visível na parte de cima do objeto.

— Mas que diabos é isso?! — Lovecraft disse enquanto destampava o barril usando um facão enferrujado.

Os piratas saltaram para trás assustados, mas também curiosos. De dentro do barril, uma cabeça infantil se levantou. Com os olhos arregalados, o menino examinava os piratas ao redor enquanto as bochechas ossudas não escondiam que a fome era uma companheira antiga dele.

— Um negrinho?! — Anselmo disse.

— Vamos ver isso aqui — Lovecraft completou enquanto se aproximava do barril.

Conforme ele se aproximava, o menino se encolhia ainda mais. Esquelético, estava a um passo de adentrar as próprias costelas, enquanto a sombra do pirata se erguia sobre seu corpo miúdo.

— Deixe disso! — Lovecraft bradou e agarrou o menino, levantando-o com facilidade. Nos braços do pirata, a criança tremia de frio e medo. — Eu sempre quis um macaco, parece que o mar nos deu um!

A tripulação inteira riu, com exceção de Anselmo. Olhando para o garoto, o homem sentiu a boca secar e os lábios começaram a tremer.

— Qual o seu nome, macaco? — Lovecraft perguntou enquanto o garoto era fuzilado por olhares curiosos.

Após respirar fundo, o menino falou algo que os piratas não entenderam.

— Que desgraça. Só papagaios que falam inglês, não é?

Lovecraft arrancou mais gargalhadas da tripulação. Anselmo, porém, mantendo a seriedade, aproximou-se do menino e disse algo que também não foi compreendido pelos piratas, que arregalaram os olhos ao ouvi-lo. Surpreso, o garoto quase deu um sorriso, dizendo por fim apenas uma palavra:

— Ghedi.

— Ghedi — Anselmo repetiu. — Esse é o nome dele. Tem origem somali.

— Como é que você sabe dessas coisas? — Lovecraft questionou.

— É uma longa história.

— Sei — Lovecraft respondeu sem parecer muito satisfeito. Voltou os olhos mais uma vez para Ghedi. — Acho que ele dá um bom almoço. É meio magrinho, mas os ossos devem servir para uma sopa.

A tripulação gargalhou e Ghedi, mesmo sem entender o significado das palavras, engoliu em seco.

— Calma lá — Anselmo disse. — Vamos levá-lo ao capitão. Ele vai decidir o que a gente faz com ele.

— Blá, blá, blá, capitão — Lovecraft retrucou. — Tome, nem queria mesmo.

Segurando a criança, Anselmo caminhou entre a tripulação enquanto era encarado por olhares inquisidores. Chegando até a porta da cabine do capitão, bateu três vezes e esperou que eu o autorizasse a entrar.

— Preciso que se prepare — ele disse antes de abrir a porta. — Encontramos uma coisa. Algo. Alguém.

Quando ele adentrou, meus olhos vermelhos se puseram sobre Ghedi. Ao ver meu estado, o garoto se encolheu ainda mais, quase desaparecendo em um pequeno saco de pele e ossos.

— Estava em um barril no meio do mar. Provavelmente um dos últimos sobreviventes desses tumbeiros que navegam por aí.

— Não parece muito mais vivo que eu — respondi, parando para tossir logo em seguida. — Podemos mudar o nome do nosso navio para “tumbeiro” também. “A Tumba do Barba Negra e o negrinho dos ossos salientes”. O que acha? Muito longo?

— Eu acho que deveríamos ajudá-lo. É só uma criança.

— Este não é um ambiente para crianças, Anselmo. Mal temos comida para nós mesmos, quanto mais para cuidar desse coitado. Mas quando eu morrer, caso você assuma o título de capitão, você pode deixá-lo aqui. — Tornei a tossir com violência. — Não falta muito tempo, afinal.

— E qual é o plano? Soltá-lo no meio do mar? — Ao ouvir aquelas palavras, Ghedi se segurou forte em Anselmo.

— Céus, não! Sou um pirata, não um monstro. Mas acho que podemos deixá-lo na cidade mais próxima, desde que não nos aproximemos dos ingleses.

— Que pena, eu estava pensando em criá-lo como mascote. — Próximo a entrada da cabine, Lovecraft não conseguia esconder o sorriso zombeteiro. — Vamos, capitão. Olhe para ele! Fará bem para todos nós.

Anselmo apertou os lábios, mas nada disse. Quando meus olhos perscrutaram o menino mais uma vez, percebi algo que o resto da tripulação não vira.

— Graybeard — eu disse.

— Graybeard? — Anselmo perguntou e os olhos de Ghedi quase saltaram das órbitas.

— Aqui. — Apontei para a planta do pé da criança. — Está vendo? É uma marcação de Graybeard.

— Thomas Graybeard? — Lovecraft se aproximou. — O traficante de escravos? Meu Deus, nosso macaquinho é um fujão! Você sabe quanto o Graybeard paga por escravos recuperados? Isso aqui vai valer alguns belos tostões!

— E se não me falha a memória, ele tem uma base de operações a poucas léguas daqui — eu disse. — Poderíamos trocar o garoto por medicamentos para mim.

— Não! — Anselmo ergueu a voz. — Quer dizer, é sério isso? Ele é uma criança, capitão! Está faminto, não iria sobreviver nas mãos desses homens. Vamos fazer assim: deixe que eu cuide dele! Irei ser responsável pela alimentação e tudo mais.

— Mas e os medicamentos do capitão? — Lovecraft lembrou. — Com todo respeito, mas o nosso querido Edward não parece ter muito tempo. Temos que nos apressar em seu tratamento.

— Nós seguiremos para a base de Graybeard — determinei. — No caminho, você pode convencer a tripulação do contrário, Anselmo. Mas se a maioria não vê outra utilidade no garoto a não ser devolvê-lo a seu dono, não posso fazer muita coisa. É minha vida que está em jogo. Considere isso um presente.

Sem olhar para trás, Anselmo saiu da cabine. Lovecraft gargalhava e, por um instante, tive vontade de socá-lo.

Caminhando entre seus colegas, Anselmo pensava em palavras que pudessem convencê-los de que permitir a presença de Ghedi no navio era o melhor a se fazer. Enquanto as ideias não vinham, ele desceu com o menino até o paupérrimo depósito de alimentos, onde havia alguns sacos quase vazios com sementes, ervas e outros produtos.

— Aqui — disse o pirata enquanto examinava a comida. — Um pouco de carne seca. Era minha porção, mas pode ficar com ela, Ghedi.

Anselmo se comunicava de uma forma que o menino entendia. Porém, não foi a carne que despertou o interesse de Ghedi. Olhando para o lado, escondido no canto mais escuro do depósito, ele viu um saco com ervas secas.

— Aquilo não é exatamente de comer, Ghedi — Anselmo alertou.

Ignorando as palavras do homem, o garoto foi até o saco e, retirando ervas, começou a misturá-las com as próprias mãos, formando uma espécie de emaranhado esverdeado.

— Então você não gosta de carne? Entendi. — Anselmo disse. — Quer saber? Aproveite o que tiver aí. Eu vou tentar conversar com os rapazes lá em cima.

Assim que abriu a porta do depósito, no entanto, Anselmo se deparou com dezenas de olhos curiosos.

— Eu pensei que essa tripulação tivesse que se preocupar com as condições do navio — ele falou.

— Então por que você mesmo está preocupado com esse negrinho? — Lovecraft apareceu em meio aos homens. — O que ele está fazendo agora? Comendo nossa comida?

Lovecraft e mais alguns piratas começaram a se aproximar da porta, mas Anselmo mantinha o pé firme ali.

— Vocês não vão mexer com ele! — bradou. — Eu me responsabilizo por qualquer coisa que o Ghedi fizer aqui, entenderam?

— Saia da frente!

Agarrando Anselmo pela gola da camisa, Lovecraft o tirou do caminho. Atravessando a porta, viu Ghedi ao centro do depósito, estando em volta de várias ervas misturadas.

— Bruxaria! — gritando, sacou a espada e caminhou na direção do garoto, que tornou a tremer.

Correndo, Anselmo se interpôs entre o pirata e o menino.

— Não, Lovecraft! Chega disso! Se você der mais um passo, eu vou...

— Vai o quê? Vai me espetar com esse seu nariz? — Lovecraft arrancou gargalhadas da tripulação que assistia a cena com empolgação. — Por que você defende tanto esse macaquinho, Anselmo? Você não era assim. Já contou para ele sobre seu passado? Sobre quantos negros você negociou com os líderes das tribos? Será que o Ghedi aí nunca se perguntou sobre seus conhecimentos linguísticos? Não? Então que tal você sair da minha frente? Posso contar tudo direitinho para ele.

Respirando fundo, Anselmo abriu espaço.

— Fique à vontade — ele disse.

Com o típico sorriso zombeteiro, Lovecraft caminhou em direção ao garoto, que se encolhia no canto do depósito. No entanto, em um movimento rápido, Anselmo sacou um punhal e perfurou as costas do colega, causando uma algazarra geral dos piratas que assistiram à cena.

— Seu filho da... — A voz de Lovecraft perdeu forças junto do corpo, que desabou sem vida sobre a madeira envelhecida.

— É isso que acontece se qualquer um de vocês tentar machucar o Ghedi, entenderam?! — Anselmo balançava o punhal ensanguentado enquanto falava.

Ouvindo toda a barulheira, levantei-me com extrema dificuldade e, sentindo dores a cada passo, fui até o depósito. Conforme me aproximava do centro da confusão, os piratas me encaravam com um misto de preocupação e raiva. Quase todos estavam com as espadas à postos, e eu só pude imaginar o pior.

— Eu posso explicar, capitão — Anselmo disse assim que me viu.

As dores e o calor pareciam me derreter, mas ver o corpo sem vida de Lovecraft fez com que minhas pernas também se enfraquecessem, fazendo com que eu caísse no chão.

Assistindo à cena, Ghedi chamou a atenção de Anselmo e em seguida apontou para mim. Falou algo que não entendi de primeira, mas depois percebi do que se tratava: Anselmo deveria misturar aqueles conjuntos de ervas com água e depois me dar.

Ouvi protestos, alguns companheiros me dizendo que aquilo era fruto de bruxaria.

— O que posso fazer? Vou morrer de todo jeito — respondi antes de ingerir toda a bebida.

O que se passou em meu corpo não pode ser descrito em uma reles missiva, mas senti como se a própria mágica celeste me atravessasse. Como num passe de mágica, senti as forças serem restauradas, o calor passando, as dores aliviando e as pernas prontas para me deixarem em pé de novo.

Levantei-me e caminhei até o garoto, que se escondeu atrás de Anselmo. Falei em alto e bom inglês:

— Ghedi, você fez um milagre aqui. Seja bem-vindo à tripulação do Barba Negra!

O garoto deu um discreto sorriso e, logo em seguida, dezenas de piratas envergonhados se ajoelharam, pedindo desculpas e dando as boas vindas ao novo membro da família.

— Quanto a ele — olhei para o cadáver de Lovecraft —, joguem-no ao mar!


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