Presos Por Um Olhar escrita por Carol McGarrett


Capítulo 81
Lute


Notas iniciais do capítulo

Cheguei um pouquinho mais cedo para acabar com o suspense que deixei em aberto.
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/799284/chapter/81

Together in all these memories
I see your smile.
All the memories I hold dear.
Darling, you know I will love you
'Til the end of time.

All of my memories keep you near.
In silent moments imagine you here.
All of my memories keep you near.
Your silent whispers, silent tears
.”

(Memories – Within Temptation)

 

 França, 1916

Não era o melhor dos trabalhos, mas era o trabalho necessário. Não me importava quem estava falando contra o que eu estava fazendo, meu pai estava na Guerra, minha mãe também era uma enfermeira na linha de frente, por que eu seria a única que ficaria em casa, quando eu também sei como tratar dos doentes?

— Porque você verá os horrores da guerra pessoalmente. – Disse meu avô.

— Meus pais estão lá. E eu tenho idade e treinamento para ajudar. Eu também vou! – Disse firme e peguei a minha mala.

— Katerina, se você sair por esta porta, saiba que não precisa voltar. – Meu avô me alertou.

— Talvez eu não queira voltar. – Respondi teimosa e praticamente arrastando a mala, fui em direção à Estação de Trem, que era onde eu poderia me inscrever como voluntária.

A situação estava tão crítica nas trincheiras que me aceitaram na hora, nem quiseram saber o que eu sabia e como esse conhecimento fora adquirido.

— Você parte para Paris no próximo trem. – Me informaram. – E de lá, te mandarão para onde você for necessária.

O grande detalhe, o próximo trem chegava na plataforma dentro de vinte minutos. A viagem foi, no mínimo, estranha. Era a minha primeira viagem sozinha, mas não a minha primeira ida a Paris, apesar de que muitos comentavam que a cidade estava irreconhecível.

E realmente estava. Assim que desci na Gare de Lyon, já pude perceber que os boatos eram verdades. Tropas patrulhavam o entorno da estação, as ruas, sempre cheias, estavam vazias. Paris era uma cidade morta.

Segui as instruções que estavam no meu cartão de enfermeira da Força Francesa e logo cheguei na Central. Falei meu nome e mostrei meus documentos.

A mulher que estava recebendo os voluntários me olhou de cima a baixo e só comentou:

— Sangue novo, vindo do sul. Mande-a para Somme.

Pelo que eu sabia, havia uma batalha em curso lá, uma batalha que já havia tirado a vida de vários e lesionado outros tantos.

— Você, embarca amanhã para o nordeste do país. Suba as escadas, tem um alojamento para você ali. E esse será o seu uniforme, jamais tire a cruz vermelha do braço, ela poderá salvar a sua vida.

Balancei firmemente minha cabeça, peguei o uniforme que me fora oferecido e rumei para o segundo andar.

Não consegui dormir. Revirei na minúscula cama de campanha a noite inteira, ora pensando no que me aguardava pela frente, ora pensando se a minha escolha tinha sido certa.

Antes que o dia clareasse, fomos acordadas, no quarto havia quase 30 moças, mais ou menos da minha idade, cada uma sendo mandada para algum lugar da França. Tomei um banho, provavelmente o último em muitos dias, vesti o meu uniforme, joguei um casaco por cima e me apresentei o saguão.

De lá fomos escoltadas até a Gare Du Nord, onde cada uma embarcou em um trem.

Se eu tinha achado a viagem de Marselha até Paris melancólica, nada se comparava com o que eu via agora. Ou melhor dizendo, com o que eu não via. Não tinha vida nessa área da França. Só trincheiras, restos de arame farpado, enormes lamaçais que exalavam um fedor insuportável. Um fedor de morte. E eu me perguntei quantas pessoas perderam a vida ali.

Fechei meus olhos, tentando imaginar aquele lugar lúgubre como um belo campo de lavanda. Tentei imaginar as cores, o perfume. A paz.

Paz... será que algum dia encontraremos a paz neste país?

O trem foi sacolejando pelo caminho, a paisagem ficando cada vez pior, se é que seria possível, até que por fim, não havia nem mais sol. Tudo estava envolto a uma fumaça preta, como se estivéssemos entrando em um inverno permanente.

Me abracei de forma a tentar me esquentar e tive que repelir as lágrimas que teimavam em encher os meus olhos, eu não poderia enfraquecer agora. Não. Eu tinha que persistir, eu me voluntariei para ajudar a salvar vidas!

Algum par de horas depois, desci em uma estação improvisada, no meio do nada, ali, um caminhão com uma cruz vermelha estampada na lona verde que cobria a parte de carga nos esperava. Quando eu e mais três moças paramos na frente do oficial médico, ele nos saudou da seguinte forma:

— Bem-vindas ao inferno na terra!

Nenhuma de nós disse nada.

— Acompanhem-me. – Ele falou e subiu na traseira do caminhão. Fizemos a mesma coisa e uma olhou para o rosto da outra, procurando por um mísero conforto.

Só que não há conforto no inferno, era o que estávamos prestes a descobrir.

Meu trabalho de voluntária se iniciava com o nascer do sol, quando eu parava? Quando parasse de chegar feridos, o que, nessa região da França era praticamente impossível.

Vi os mais terríveis ferimentos. Recebi soldados com arame farpado em volta do pescoço, que pediam de todas as formas para que salvássemos a vida deles, e tudo o que podíamos fazer era segurar a sua mão e fazer uma prece para que estes morressem logo, que o sofrimento fosse abreviado. Recebi outros que tinham sido esmagados pelos novos tanques que chegavam. E inúmeros outros que tinham perdido membros, dedos, olhos. Os que eram vítimas dos ilegais gases de cloro, sempre me faziam vomitar depois dos atendimentos.

Estava tentando me recuperar do último soldado que recebemos, um rapaz inglês, mais jovem do que eu, que estava completamente destruído da cintura para baixo e chamava pela mãe, com medo de morrer, quando gritaram meu nome.

— Katerina! Não é hora de ter pena de quem morreu! Chegou mais um!

Enxuguei as lágrimas, levantei a minha cabeça e olhei para meu superior.

— Lá fora, capaz que não tenha jeito, então, faça o melhor para ajudá-lo a morrer sem mais dor. – Meu superior me disse e me entregou uma seringa e uma ampola de morfina e outra de penicilina.

Passei por fora da tenda e logo achei o soldado. Ele estava completamente ensanguentado, tinha uma fratura exposta em uma perna, seu braço estava preso por um torniquete, além de ter dois ferimentos à bala, um no ombro e outro no abdome, que era de onde vinha todo o sangue.

A primeira coisa eu fiz, foi aplicar a injeção de penicilina, esperei um pouco e comecei a fazer pressão no ferimento em seu torso, e quando apertei com mais força, para que diminuísse o sangramento e eu pudesse, enfim, aplicar a dose de morfina que o ajudaria a não sentir tanta dor assim, sua mão livre segurou o meu pulso.

— Você vai ficar bem, soldado! – Falei em um inglês carregado de sotaque, pois vi que era inglês, somente para dar-lhe conforto. – Já vamos te levar para dentro e você será operado. – Olhei em seu rosto e me deparei fitando o mais belo par de olhos azuis que eu já tinha visto.

— Você é um anjo? É você o anjo que dizem que vem nos levar para um lugar melhor?

— Não, senhor. Não sou anjo, sou uma enfermeira. Meu nome é Katerina. – Respondi um tanto embolado, não sabia se ele estava delirando ou se ele me escutaria, pois de seus ouvidos escorria sangue.

Sua mão continuou a segurar o meu pulso.

— Katerina... nome bonito. Tão bonito quanto a mulher que o carrega. – Ele falou.

— Qual é o seu nome, soldado? – Tentei manter uma conversa para que ele continuasse acordado.

— Alexander. Pode me chamar de Alex.

— Então, Alex, vou aplicar isso em você. Mantenha pressão aqui. – Guiei a mão dele até que pressionou o ferimento. – Isso muito bom.

— O que é isso, Kate?

— Morfina. Vai te ajudar a se sentir melhor.

Ele observou atentamente eu tirar a ampola do bolso do meu uniforme e depois encher o êmbolo. Quando dei uma batida na seringa para verificar se tudo estava bem, Alexander me encarava.

— Diga-me Kate, eu ainda tenho conserto ou você só está gastando essa morfina em mim, para que eu não sofra até que acabe de morrer?

A verdade era que, nós não podíamos nos dar o luxo de tentar salvar esse Capitão do Exército Inglês. Porque não tinha certeza de que ele iria sobreviver, suas lesões eram extensas demais, ele passaria dias nessa enfermaria, e, nesse fim de mundo esquecido por Deus, as chances de ele sobreviver sem pegar uma infecção eram mínimas.

Porém, ao fitar aqueles olhos, aquele rosto, que por baixo de todo o sangue e ferimentos era o mais bonito que eu já vira, eu fiz uma promessa a mim mesma. Eu faria o possível e o impossível para vê-lo vivo. Se dependesse só de mim, Alexander sobreviveria.

— Você vai sobreviver, Alexander. Eu te prometo. – Falei olhando nos olhos dele.

Ele deu um mínimo sorriso na minha direção e meu peguei respondendo a esse sorriso.

— Você vai ficar bem. – Falei ao passar a mão na cabeça dele. E logo que ele caiu no sono induzido pela droga, gritei que precisava de espaço dentro da tenda.

—----------------------------------

Londres, Inglaterra, 2021

Você vai ficar bem!... Você vai ficar bem!... Você vai ficar bem!...

Essas quatro palavras ecoavam em minha cabeça, ora era minha própria voz, como se fosse a continuação do sonho que tive, ora era a voz de Alex. Mas era impossível que Alex falasse isso, pois ele fora levado para a cirurgia, eu estava ao lado dele, a prova que eu tinha era esse cheiro insuportável de éter misturado com sangue.

—  Você vai ficar bem...

Senti algo me encostar. Algo úmido e quente. Tentei afastar o que quer que fosse, porém não consegui mexer meu braço. O que era estranho, pois eu não me sentia presa a nada.

— O senhor não pode passar dessas portas. – Uma terceira voz apareceu. E eu desconhecia essa voz e esse sotaque.

— Mas, quem me garante que a Kat vai ficar bem? – Alguém respondeu rispidamente, a voz carregada de preocupação e de medo.

E foi só então que eu reconheci a voz.

Era Alexander. Eu não sonhava afinal. Este era o presente.

— Alex. Alex! – Tentei chamá-lo, contudo, mais uma vez meu corpo não me obedeceu.

— Eu garanto que ela vai ficar bem, Alex. Agora, sente-se ali, assim que tiver alguma notícia, eu mesma venho conversar com vocês. – Minha mãe falava.

Tentei respirar fundo, estava com falta de ar, precisava respirar e não conseguia, entrei em desespero e senti uma dor no peito.

— Doutora Nieminen! – Gritaram perto de mim. - Ela está parando. – Chamaram minha mãe de “Doutora”, então eu estava no hospital. Minha mãe estava cuidando de mim. Mas como eu vim parar aqui? Eu não me lembrava de nada... de absolutamente nada do que havia acontecido.

Eu só me lembrava de uma promessa.

Até que tenhamos nosso felizes para sempre.

—--------------------------------

Região do Somme, França, 1916

Depois de muito insistir, consegui que levassem o Capitão para a cirurgia, meu superior, que nunca questionou as decisões que eu tomava, me olhou torto pela primeira vez.

— Ele não me parece alguém que vá sobreviver, Katerina. Você tem certeza de que vale a pena o nosso esforço.

— Vale. Pode parecer precipitado o que fiz, mas ele estava consciente, coerente e falava claramente.

— Se está dizendo... Ande, temos muito o que fazer aqui.

Começamos a cirurgia de Alexander e, pela primeira vez, eu fiquei nervosa com o que o futuro reservava para um soldado, porque dessa vez eu me importava de uma forma completamente diferente. Pode parecer besteira, mas eu havia me apaixonado à primeira vista. Eu tinha me apaixonado perdidamente por um moribundo soldado inglês e não suportava a ideia de perdê-lo!

A cirurgia foi brutal, na falta de uma palavra melhor. Alexander quase se foi duas vezes. E foi só quando já tínhamos removido as balas e colocado sua perna no lugar, que eu pude quase respirar aliviada.

Quase.

Pois foi o médico deixar a tenda que vi Alex parar de respirar novamente. Olhei para todos os lados, não tinha ninguém ali para me ajudar a trazê-lo de volta. Ninguém. Ao longe chamaram por meu nome.

Não fui. Fingi que não ouvi e fui tentar trazer Alexander de volta.

Sozinha.

Contei as pressões que tinha que dar em seu torso já machucado, se aplicasse com muita força, além de estourar os pontos recém dados, poderia quebrar algumas costelas. E depois de quatro massagens, uma respirada. Sua boca tinha gosto de sangue.

Massagem... massagem... massagem... massagem.... respiração boca a boca.   

Massagem... massagem... massagem... massagem.... respiração boca a boca.  

Massagem... massagem... massagem... massagem.... respiração boca a boca.  

Massagem... massagem... massagem... massagem.... respiração boca a boca.  

Massagem... massagem... massagem... massagem.... respiração boca a boca.  

Não sei por quanto tempo fiquei nesse ciclo, eu já deveria ter desistido, era o mais justo a fazer com ele. A sua dor acabaria. Ele iria em paz.

Contudo, eu não podia desistir dele. Eu tinha que vê-lo mais uma vez com vida, tinha que vê-lo sorrir, mesmo que minimamente, tinha que ver seus olhos azuis, ouvir o som de sua voz. Assim, continuei a minha luta.

E todo o esforço deu certo. Ele voltou! Não sei depois de quantos minutos morto na minha frente, mas ele voltou. Senti seu coração bater sob as minhas mãos. Senti que a sua pele voltava a esquentar com a circulação do sangue nas veias.

Tornei a suturar as duas cirurgias e antes que deixasse seu lado, conferi se ele respirava, para meu total espanto, ele abriu os olhos e eu dei um pulo para trás.

— Achei que tinha morrido. – Ele comentou fracamente.

— Por um tempo. – Respondi.

— Você me trouxe de volta, Kate?

— Pode-se dizer que sim.

Ele abriu um sorriso cheio de significado.

— Acho que isso diz muita coisa...

— Que tipo de coisas?

— Se eu sair dessa cama de hospital de campanha, eu te conto. – Foi o que ele falou.

Os dias se passaram, e a recuperação de Alexander estava sendo taxada como milagre, ninguém achava que ele sobreviveria, mas lá estava ele, dia após dia, ficando mais forte, surpreendendo a todos e sempre com um sorriso para mim.

Um dia, passei para fazer a ronda logo pela manhã, ele já estava acordado, sentado na cama e olhava para as dog tags.

— Bom dia, soldado! – Saudei.

— Depois de todo esse tempo, não deveria me chamar pelo nome? – Ele falou, brincando com a identificação militar.

Tombei a cabeça e só olhei para ele, com um tímido sorriso.

— Entendi, não pode.

— Exatamente. – Murmurei.

— E se eu não estivesse aqui? Me chamaria pelo nome de batismo?

— Duvido que o teria conhecido. – Fui sincera.

— É... bem que dizem que há males que vem para o bem.

— Não estou te acompanhando. – Disse confusa e olhei em volta, não tinha mais ninguém acordado por perto.

— Se eu não tivesse me estropiado todo para salvar o meu batalhão, eu não teria vindo parar aqui e não teria te conhecido. No fim das contas, valeu a pena. Eu te achei de novo.

— De novo!?

— Te vi em Paris, você estava desembarcando na Gare de Lyon. Quando pude ir atrás de você, já tinha desaparecido. Te achei aqui. Ou melhor dizendo, você me achou.

— Você está dizendo que foi o destino?

— Entenda como quiser. Não sei como os franceses chamam isso.

Fiquei calada, absorvendo as suas palavras.

— E então, Katerina, quando eu sair daqui, por que eu vou sair, não é? Você aceita sair comigo?

Arregalei meus olhos. Era tudo o que eu queria desde que nossos olhares se cruzaram há quase 21 dias, porém não consegui dizer nada.

— Acho que isso é um não. Tem namorado? Estão te esperando em algum lugar? – Ele me perguntou ansioso.

Pensei no que meu avô disse, que eu não precisava voltar para casa se eu me juntasse aos voluntários. Pensei nas duas cartas que recebi do Governo Francês, sendo solidário com a minha dor e me informando sobre a morte de meus pais em combate.

— Não tenho namorado e nem para onde ir, Soldado. A guerra me tirou tudo. – Respondi por fim.

— Nem tudo, Katerina. – Ele falou olhando-me nos olhos. – E sinto muito por sua família.

— Obrigada.  – Eu agradecia pela promessa que via em seus olhos e pelo que ele tinha falado.

Mais duas semanas se passaram e Alexander, enfim, teve alta do hospital. O correto era que ele fosse despachado para Londres, que era seu lugar de nascimento, porém ele era inteligente demais e esperto demais para que o Exército Britânico abrisse mão de seu cérebro e das estratégias militares que ele tão facilmente montava.

Assim, ele ficou acampado no prédio do comando, um prédio que já tinha sido bombardeado e estava quase caindo aos pedaços, que ficava próximo do hospital de campanha e ao lado do alojamento dos enfermeiros e médicos.

Alex, sem um pingo de vergonha, sempre que podia vinha me escoltar e me cortejar à sua maneira, sempre me acompanhando até o alojamento.

— Você não deveria fazer isso! Ainda não está totalmente recuperado. – Comentei.

— Sinto-me como novo, não se preocupe, Kat.

As coisas se acalmaram um pouco no front e já não tínhamos tantos pacientes assim. Eu não sabia dizer se era porque estávamos vencendo ou se era porque os soldados morriam aos milhares por conta dos novos tanques, porém, em um sábado, Alexander me chamou para irmos dar uma volta.

— Isso é um encontro? – Perguntei quando ele fez a oferta.

— Gosto de pensar que sim. Mas por que a pergunta?

— Não tenho lá muitas roupas bonitas por aqui... então não espere muita coisa.

— Mon chérie[1], não tem nada bonito nesse pedaço do inferno que virou esse lugar. A não ser você.

— Sei que isso é mentira, mas obrigada pelo elogio. – Falei ao dar um tapa no ombro dele.

— Isso doeu! – Ele reclamou. – Para uma enfermeira, você bate forte demais.

— Pare de drama. – Comentei. – E tenha uma ótima noite, Capitão. Nos vemos amanhã então.

Como Alexander tinha muito bem dito, não tinha nada de muito espetacular na cidade onde estávamos, então nosso encontro se resumiu a ficarmos sentados na antiga e destroçada fonte da cidade, conversando e olhando as estrelas.

A certa altura, Alex se levantou e me perguntou se eu queria dançar.

— Não tem música para dançarmos! – Praticamente questionei a sua sanidade.

— Escute com atenção. – Ele me pegou pela mão, me levantou e com um dedo em meus lábios, me apontou uma direção.

Apurei meus ouvidos, tentei prestar atenção só na direção que ele indicava, e finalmente escutei. Alguém, em algum ponto desta cidade destruída, escutava um tango.

— Agora, Senhorita Cética, dança comigo?

Comecei a rir, mas ele logo enlaçou a minha cintura e começou a me guiar, com uma habilidade ímpar para dançar o ritmo.

Rodopiamos pela praça, vivendo em um mundo só nosso, que por alguns instantes era bem diferente da guerra onde estávamos. E quando a música acabou, Alex me tombou e me deu um beijo. Na hora em que ficamos de pé, eu toda desconcertada por seu ato e ele me olhando nos olhos, alguém pareceu disparar um flash.

— Aceita se casar comigo quando tudo isso acabar, Katerina? – Alex me perguntou solene. – Nós vamos sair daqui, vamos para Londres e começaremos nossa vida juntos lá, o que acha?

Eu não tinha nada a perder.

— Sim! – Respondi com um sorriso.

O armistício temporário continuou sobre a cidade, e todos começaram a temer que os alemães estavam planejando algo. Algo terrível.

Eu tinha os meus turnos no hospital, Alex estava sempre com o Comando das tropas britânicas e todas as noites nós dávamos um jeito de nos vermos.

— Eu não deveria estar falando isso, Kat, mas tome cuidado, informações dizem que talvez os alemães estejam mais perto do que gostaríamos. Tome cuidado.

— Quem tem que tomar cuidado é você. Eu carrego a cruz vermelha no uniforme, não ousariam atingir alguém do corpo médico. – Falei convicta.

— Mesmo assim, tome cuidado. – Ele me alertou.

— Tudo bem, tomarei.

Fui para meu alojamento e ele para o dele.

Dois dias depois, o clima da cidade estava estranho, medo e desconfiança pairavam no ar. Todos olhavam por sobre os ombros, como se um alemão fosse pular às nossas costas e atirar em nós. Passei o dia inteiro com uma estranha sensação na boca do estômago. Uma sensação de que algo ruim iria acontecer e não iria demorar.

Agradeci aos céus o fim do meu turno, me enrolei apertado me meu casaco, já que estávamos quase no inverno e saí do hospital. Alex não estava ao lado da porta, como de costume e pensei que algo pudesse estar acontecendo perto daqui. Apressei meus passos e estava quase no meio da praça onde fora pedida em casamento, quando vi Alex vindo correndo na minha direção. Ele sinalizava para que eu começasse a correr.

— Corre, Kat, corre!

Sem saber o motivo eu corri na sua direção. Mas não foi o suficiente. Eu estava olhando para ele, vi um clarão iluminar seus olhos azuis arregalados de medo, e, no momento em que ouvi um apito estridente, senti uma lufada de ar quente me atingir e fui arremessada alguns metros à frente de onde estava.

Quando toquei o chão de pedra, estranhamente não sentia muita dor, Alex apareceu ao meu lado, olhava para mim desesperado. Começou a gritar por ajuda.

— Ei... eu estou bem. – Garanti. – Nada dói.

— Ah, Kat! – Ele murmurou e me deu um beijo. – Ah, Kat, por quê? – AJUDA! ALGUÉM ME AJUDE! – Ele gritava desesperado.

Não entendi o que ele quis dizer, então levantei minha cabeça, ao fazer isso, senti uma fisgada na minha lombar e assim que olhei para minhas pernas tive que reprimir um grito.

— O que eu faço? Me diz, Kat, o que eu faço? – Ele me perguntava agoniado, tentando parar um sangramento impossível de ser estancado.

— Não tem nada para fazer, Alex. Eu não tenho “conserto”. – Usei a expressão que ele tinha usado quando nos conhecemos. – E nem devo ter muito tempo, então, por favor, olhe para mim. Olhe para meu rosto. Espero não estar muito estragada aqui. – Meus olhos começaram a lacrimejar, não por mim, eu não sentia dor nenhuma, o que me levava a crer que o que me acertara, deve ter acertado minha coluna e cortado a medula, eu chorava por vê-lo sofrer. Alex não merecia isso. Ele, finalmente me encarou. Seus olhos me escaneavam. – O que está fazendo?

— Tentando te guardar na memória. Cada pedaço desse seu rosto, seus lábios, seus olhos.

Abri um mínimo sorriso para ele.

— No bolso do meu casaco. Tem algo para você. – Falei.

—  O que?

— Algo para você se lembrar de mim.

— Não vou pegar agora, não posso, eu tenho...

— Alex. – Levantei minha mão que estava vermelha de sangue e a apoiei em seu rosto. – Olhe para mim. – Pedi. – Só para meu rosto. Por favor.

Ele fez o que eu pedi.

— Por quê? – Perguntou tristemente.

— Deve ser o destino. Não era para ficarmos juntos. Se não foi em Paris, por que seria aqui? Mas não posso reclamar, foram bons os últimos dois meses. Obrigada por me amar tanto assim, Alexander.

Ele abaixou a cabeça até que nossas testas se encostaram.

— Eu vou te achar de novo, Kat. Eu vou te achar. E da próxima vez, eu não vou deixar que nada te aconteça.

— Eu te amo, Alexander, sei que é tarde para dizer isso, mas é verdade.

Alex me encarou, lágrimas escorriam de seus olhos.

— Me diga que nós vamos nos ver de novo. Que vamos nos encontrar em um lugar muito melhor que esse inferno! - Ele pediu desesperado.

— Nós vamos. E eu te prometo, vou te reconhecer e vamos nos reencontrar quantas vezes forem até que tenhamos nosso final feliz. – Prometi e sabendo que era os meus últimos momentos, busquei no bolso de meu casaco pela foto que uma das minhas amigas enfermeiras tinha me entregado hoje. O noivo dela tinha eternizado o momento em que eu dissera sim para Alex. Nesta mesma praça, quinze dias atrás. - Aqui. – Entreguei a ele.

Alex olhou para a foto, olhou para mim. Ainda não acreditando na nossa má sorte.

— Até que tenhamos nosso final feliz. – Sussurrei e me abracei a ele.

— Até que tenhamos o nosso final feliz. – Ele fez coro e me abraçou apertado. – O que vai ser da minha vida sem você, Kat? O que vai ser? – Por um mísero segundo desviei meus olhos de Alex e olhei para o céu, pude ver estrelas, ao longe escutei sons de tiros.

— Se proteja. – Pedi. – Se proteja, saia vivo disso aqui e viva a sua vida!

A última coisa que senti foram seus lábios nos meus, suas lágrimas quentes na minha pele fria.

E então... o nada.

 ------------------------------------

Londres, Inglaterra, 2021

O nada... eu me sentia flutuando no nada. Meu corpo parecia leve demais, livre demais.

Estava frio aqui também. Muito frio e escuro. E eu não fazia ideia de onde estava.

— Olá! – Chamei. – Alguém?

Minha voz ecoou pela eternidade.

— Como eu vim parar aqui? – Perguntei alto.

Não tive uma resposta, mas minha mente começou a repassar vários momentos. E eu reconheci o que via.

Eu via o dia de hoje.

O Conselho!

Meu Deus! O conselho! Eu tenho que apresentar os números de Los Angeles, o software... eu tenho que...

E eu parei e ofeguei, uma imagem particularmente dolorosa se instalou na minha mente:

O cano de uma arma apontado para mim, Cavendish rindo de algo. O som de um disparo. Uma dor lancinante em meu peito, se espalhando rapidamente para meu ombro e subindo pelo meu pescoço, descendo pelos meus braços.

Olhei para baixo, meu suéter branco estava manchado de vermelho. Sangue. Meu sangue!

Levei a mão ao peito para poder estancar no sangramento. Isso deveria ajudar.

Cavendish se assomava sobre mim.

— Agora é só questão de tempo. Hoje você não sobrevive!

— Tudo isso por dinheiro? Você tenta me matar há anos por dinheiro? – Perguntei incrédula.

— E poder. Com você morta, logo sua família vai exigir que a empresa seja fechada, seu avô não vai querer isso, mas vai ceder em algum ponto e vai vender a participação dele para mim. E a maior empresa de importação e exportação de mercadorias, a Dona do comércio global de transporte em terra, ar e mar, será só minha.

Era um absurdo!

— Se queria tanto poder, por que não fundou a sua própria empresa? Se virou?

— Porque é mais fácil roubar dos outros do que criar o seu próprio negócio. – Foi a explicação que recebi.

Senti minha respiração ficar difícil, isso não era bom. Por que eu não morria de uma vez? Seria tão mais fácil...

Ajoelhei-me no chão e ponderei para onde o sangramento seria menos danoso. Acabei me deitando e Cavendish colocou um pé sobre mim. Forçando seu peso em minhas costelas do lado esquerdo.

— São essas aqui que se quebraram todas, não são? Que tal isso? – Ele pisou com força e eu só não gritei de dor, porque já não tinha tantas forças assim.

Desviei meu olhar dele, procurando por qualquer coisa melhor para olhar. Achei que estava já desmaiando quando vi a maçaneta da porta se mexer.

— Não! Você não pode ter tanta sorte! – Cavendish gritou, pisou mais uma vez em mim e atirou na direção a porta.

Novamente forçaram a fechadura e alguém dava uma ordem. Cavendish atirou novamente, e na hora que ele fez a mira para atirar pela última vez, já que o tambor da arma já estava quase vazio, a porta veio abaixo, arrancada nas dobradiças.

— Você?! Você conseguiu entrar dentro desse prédio? Alguém já chamou a segurança para te prender, mendigo?

— Saia da minha frente! – Era a voz de Alex.

— Não, você quem sai...

— Ele está aqui, porque eu liberei o acesso dele. – Uma voz muito conhecida por mim falou ao longe.

— Mina?! Mina Nieminen? – Ele não falou mais nada, mas ouvi ele caindo.

Senti alguém me sacolejar, abri os olhos e vi Alex.

— Kat... Kat fala comigo! – Ele pediu, enquanto fazia pressão no local onde levei o tiro, só que com a costela quebrada, doeu, pois algo pareceu me cortar por dentro e eu consegui gritar. – Não, Kat!! Desculpa, o que... o que ele fez com você?

Ouvi mais passos e uma cacofonia de sons indistintos, até a voz de Alex não estava tão clara assim...

Senti meu corpo ser içado, colocado em algo duro, minhas costas bateram no apoio e o ar deixou meus pulmões.

Tentei reclamar, mas foi em vão, logo o vento passava por mim. Será que eu estava voando?

E foi aí que eu parei nesse lugar.

No nada.

Não sei quanto tempo estou aqui... não dá para medir o tempo em um lugar tão inóspito.

Porém, vozes começaram a romper o silêncio interminável.

Você vai ficar bem.

Ela vai ficar bem, Alexander, tenha fé!

Preciso do desfibrilador.

Arrumem a adrenalina.

Novamente senti meu corpo bater contra algo duro. Doeu.

E, novamente, o nada.

Estava aqui desde então. Não sabia precisar desde quando. Mas pelo menos já sabia o motivo.

Cavendish me matou.

E esse deveria ser o purgatório ou o limbo. Pelo visto era aqui que eu passaria a eternidade.

E eu nem pude me despedir de todos os que conheço. Não pude dar um último abraço em meus pais. Carregar minha sobrinha mais nova nos braços. Ganhar um abraço tímido de Tuomas, um de tirar o fôlego que só Liv sabia dar. Não receberia mais carinho de meus avós. Não disse adeus para minhas amigas de tantos anos, nem para meus dois irmãos, de minhas cunhadas e de meu cunhado. Céus, eu sentia falta até dos abraços de meus sogros. E eu nem os conhecia há tanto tempo assim.

Eu nunca mais veria, tocaria, abraçaria, beijaria Alexander. Não era nessa vida o nosso final feliz.

Senti meu coração bater apertado. Senti meus olhos encherem de água por todos os que eu amava. Eu tinha ido, mas e eles? Como ficariam? Como seguiriam em frente? Como seriam afetados por todos estes acontecimentos?

Meu peito se apertava, minha respiração descompassou. Se isso era possível na morte eu não sabia dizer, não me lembro das minhas outras mortes, mas deveria ser possível e a notícia ruim, parecia que ia ficar assim por um bom tempo.

Lutava para respirar, lutava para reviver memórias antigas e recentes até que senti algo. Algo quente, segurando a minha mão. O aperto foi esquentando, foi ficando mais forte e insistente e um som quebrou a barreira do silêncio.

Katerina, você pode me ouvir?

Mortos escutam? Porque essa era claramente a voz de Alex, carregada de dor.

Kat, por favor, resista. Eu... eu não posso perder você de novo. Lute por algo, lute por seus sobrinhos, por seus pais, por qualquer coisa, Kat, mas lute. Não me deixe aqui sem você.

Eu queria responder, mas não podia. Foquei em fazer isso, mas foi em vão.

Então senti o aperto dele novamente. E dessa vez senti seus lábios. E sabia exatamente como respondê-lo.

Apertei a sua mão.

Por breves segundos o aperto de meu noivo em minha mão esquerda sumiu, para então eu sentir uma mão em minha testa, outra segurando ainda mais forte a mão esquerda e, por fim, seu rosto colado no meu, seus lábios em minha testa.

— Continue lutando, Kat. Por favor. – Ele sussurrou em meu ouvido.

Tornei a responder com um aperto de mão.

Outro beijo na minha testa e junto com ele senti algo úmido, lágrimas.

Alex chorava por mim.

Comecei a chorar também, não queria que ele sofresse. Ele não merecia sofrer.

— Xiii. Não chore, Kat. Se concentre em ficar boa. Por hora, é isso que importa. – Ele conversava comigo. – Você só tem que se concentrar em ficar boa... só isso. Descanse e volte para mim.

Depois caí em um sono leve, escutava tudo muito longe, mas a presença de Alex era constante, assim como outra...

 

[1] Minha querida


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Quando eu escrevi esse capítulo, a ideia de se ter uma guerra ainda não passava por nossas mentes, então, me desculpem, porém, já era uma parte do passado do casal principal se encontrarem na I Guerra, e não tem como eu mudar, ou vai ter um enorme buraco na história.
Mas lembrem-se, guerra não leva a nada. Ninguém ganha. Só traz dor e desespero para os inocentes que a presenciam.
Espero que tenham gostado.
No próximo final de semana trago o próximo capítulo.
Obrigada por lerem até aqui!
xoxo



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Presos Por Um Olhar" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.