Presos Por Um Olhar escrita por Carol McGarrett


Capítulo 100
Tempo


Notas iniciais do capítulo

Dia de comemorar! É o capítulo 100!! Obrigada a todos vocês que leram a história até aqui e não deixaram ela ser um tremendo fracasso!
Aviso: O capítulo está imenso! E olha que tirei uma parte que não se encaixava no que venho escrevendo.
Assim, boa leitura, e não me xinguem pela demora em chegar ao final.. precisava costurar essas partes para iniciar o julgamento já no próximo.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/799284/chapter/100

“O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel.”

Platão

A segunda-feira chegou tão gelada quanto o domingo, uma leve camada de neve cobria as ruas e algo, que era a mistura de uma chuva congelada com os mais estranhos flocos de neve que já vi, caía do céu.

Aproveitei o clima frio para desenterrar algumas roupas que eu só usava no alto inverno, assim, mais do que nunca, eu parecia uma europeia perdida na Califórnia, enquanto os Californianos se aqueciam com roupas típicas para a prática de esqui ou snowboard.

— Isso não é justo! – Amanda chegou falando. – Eu não tenho roupa para esse frio todo! Não nasci na Europa! Cadê o calor, ou aquele inverno meia boca que faz aqui em LA? – Ela entrou reclamando no elevador, se abraçando no cachecol e na parca que usava.

— Bom dia, Amanda! – Cumprimentei-a.

— Chefa, leva esse frio de volta para a Finlândia! – Ela praticamente implorou.

— Deixa eu ser feliz nem que seja por pouco tempo!

— Você fala isso, Chefa, porque tem todas essas roupas chiques aí... se eu me vestir assim por aqui, vão perguntar se eu vim da Costa Leste! Californianos não têm sobretudo, não têm bota de salto acolchoada, não tem essas meias-calças revestidas com lã! – Continuou a falar, destacando as peças do meu guarda-roupa.

— Acho que vou te comprar algumas roupas de frio, então.

— E vai achar isso aonde por aqui?

— Vou trazer da Europa.

— Mas, um frio desses, só se faz de 50 em 50 anos, ou de 100 em 100, eu que fui azarada e acabei viva justo no ano que fez esse frio histórico! – Amanda se rebelava. Os demais ocupantes do elevador concordavam com ela.

— Larga de ser exagerada. – Pedi.

— Sabe quando foi a última vez que nevou no centro de Los Angeles? – Ela perguntou.

— Não.

— Nem eu!! – A adolescente jogou os braços para o ar em frustração. – Eu vivo em Los Angeles desde que nasci, e só vi neve nas montanhas de São Gabriel! Isso é um absurdo sem tamanho! Eu estou toda congelada! – Continuou a reclamar.

Chegamos no último andar e Amanda ainda não tinha parado de dissertar a sua tese de doutorado sobre “Como eu Detesto o Frio” e ia continuar a enumerar todos os contras que a estação gelada tem, quando foi cortada, sem cerimônia alguma por Milena, que muito mal humorada, soltou:

— O seu chuveiro está funcionando?

— Sim. – Disse a garota.

— Então pode parar de reclamar, o meu queimou enquanto eu lavava o cabelo, hoje de manhã, tive que terminar de tomar banho na água gelada. Você não tem direito nenhum de falar um pio contra o frio, se não tomou banho gelado hoje!

Amanda fez uma careta, e só soltou:

— Você tem toda a minha solidariedade.

Milena não abriu a cara e eu tive que me manter séria. Afinal, eu gostava do frio, mas estava preparada e acostumada com as baixas temperaturas, algo que as duas ocupantes da sala anexa não estavam.

Desejei apenas um bom trabalho (não fui louca de falar um bom dia, capaz que Milena decepasse minha cabeça com as próprias mãos), e assim que entrei na minha sala, decidi fazer algo para tentar amenizar o mal humor que se instalara no prédio.

Busquei na internet se havia algum food truck ou algum café que pudesse funcionar temporariamente no prédio hoje, fazendo bebidas quentes e algumas guloseimas para os funcionários. Achei alguns e fui logo lendo as avaliações, para a minha sorte, tinham dois disponíveis. Contratei-os e depois de dar as informações necessárias, ficou combinado que começariam a servir dentro de noventa minutos.

Dentro de setenta, os seguranças me avisaram que toda a equipe queria montar um café improvisado no saguão de entrada, dei a permissão e, menos de dez minutos depois a notícia já tinha se espalhado pelo prédio e Amanda entrou correndo na minha sala.

— Chefa... estão falando que tem um café instalado no saguão principal, dando chocolate quente, croissants e outras coisas gostosas! Isso é verdade?

— Sim. É verdade, Amanda.

A garota arregalou os olhos.

Milena entrou logo em seguida, fazendo as mesmas perguntas e antes que eu pudesse responde-las o telefone interno da minha sala tocou, pedi um minuto e atendi, era do Financeiro, dizendo que não tinha nenhum pedido de instalação da cafeteria do saguão, no orçamento mensal do escritório.

— Eu sei que não tem! – Confirmei.

— Mas, Katerina, como vamos explicar isso?

— Mitchel, eu contratei do meu bolso. Não precisa colocar no orçamento. – Expliquei e na minha frente, Amanda e Milena abriram um sorriso imenso.

— Você está pagando do seu bolso?

— Sim, estou. Fique à vontade para ir lá tomar um café e se esquentar, e pode liberar o pessoal para fazer o mesmo.

— Tudo bem. – Foi o que um muito pasmo diretor financeiro me respondeu.

Encerrei a ligação e olhei para as duas que ainda estavam paradas na minha frente.

— Chocolate quente de graça por todo o dia? – Amanda perguntou.

— Sim.

— EU TENHO A MELHOR CHEFE DO MUNDO! – Ela saiu gritando em direção à escada.

— O elevador está ali.

— Para baixo todo santo ajuda! – Disse a adolescente.

— Ela não vai parar de comer hoje. – Milena disse.

— Se for para melhorar o humor do prédio, nem ligo. Parecia que todo mundo estava querendo me matar, só porque eu vim de um país gelado... – Falei.

— Desculpa o meu mau-humor.

— Não ligo, o meu fica assim no alto verão. – Foi a resposta que dei.

— Melhor eu já começar a fazer um contrato para instalarmos uma sorveteria no saguão... ou uma loja de yogurt... – Começou a minha assistente.

— Milena, só aproveite a cafeteria, por favor.

— E como. Vou pedir para Amanda me trazer um capuccino.

E, enquanto o prédio subia e descia, tomando café, capuccinos e chocolates quentes, eu fiquei no meu chazinho de pêssego, trabalhando e ajustando os últimos detalhes para as próximas semanas.

O frio intenso permaneceu por quase toda a semana, bom para mim, que estava adorando e para meus dois huskies que estava se sentindo mais do que nunca em casa. Por outro lado, os casos de acidentes nas ruas, pessoas passando frio aumentou exponencialmente. A cidade que quase não vê frio extremo estava o caos. Cortes de luz pelo excesso de aquecedores ligados, transformadores queimando, pessoas em situação de vulnerabilidade tendo que ser recolhidas das ruas para não morrerem de hipotermia.

Na terça-feira à tarde, encerramos o expediente mais cedo, com os picos de luz e até mesmo com a falta dela em alguns bairros, decidimos que era melhor que todos fossem para casa ainda enquanto houvesse luz natural. Acabei por dar uma carona para Milena e Amanda, deixando as duas em casa e pedindo que, se a neve continuasse a cair, que elas ficassem em casa no próximo dia, poderíamos muito bem trabalhar remotamente.

Escolas foram fechadas, aulas suspensas nas universidades da cidade, o aeroporto estava o caos, com voos cancelados e adiados e até mesmo o Campeonato de Futebol universitário foi adiado.

A quarta foi de trabalho remoto, a meteorologia disse que além do frio, fortes rajadas de ventos atingiriam a cidade, e pediu que quem pudesse, que ficasse em casa. Em uma reunião rápida com os Chefes dos setores, ficou resolvido que ninguém iria para o prédio hoje, o trabalho seria feito de casa, no horário comercial.

No meio do caos que a tempestade de inverno causava nos transportes e nas nossas cargas e entregas – os portos foram fechados por conta da ressaca no mar, aviões não decolavam e as estradas foram fechadas, por falta de visibilidade e segurança – ou seja, meu trabalho estava dobrado, e eu permanecia praticamente o dia todo no telefone, contabilizando prejuízos, informando aos nossos clientes que os atrasos aconteceriam e que não era nossa culpa, além de tentar dar o maior apoio possível aos empregados que tinham que trabalhar em condições nada agradáveis ou que estavam presos em alguma barreira das estradas, recebi a visita de minha cunhada.

— Bom dia, Pepper! – Saudei-a, assim que abri a porta.

— Por favor, coloca esse frio na mala e leva de volta para Europa! – Ela pediu ao entrar na minha casa, se encolhendo de frio.

Tive que rir do pedido dela, mas a situação já estava ficando insustentável na cidade e no estado.

— Se eu pudesse...

— Tem algo quente para beber? – Perguntou.

— Tem chá, acabei de fazer. – Informei.

— Algo mais forte? Por favor, fala que tem. Eu só parei aqui, porque está inviável de chegar até a minha casa. Algumas redes de transmissão arrebentaram e fecharam as ruas, além de ter virado o caos nas avenidas sem semáforo.

— Vou ficar te devendo, Pepper. Posso fazer um chocolate quente para você. Porque de bebida quente, só vinho, e isso não vai te esquentar

— Serve o chocolate...

Fomos para a cozinha e acabei fazendo uma caneca de chocolate para mim também.

— Senhor, eu estou sentindo mais frio aqui do que senti na Finlândia!

— São as roupas... me desculpe, mas vocês não estão preparados para o frio.

— Sei disso. E já que tocou no assunto, estamos fazendo uma campanha nas Clínicas para doar roupas e cobertores para as pessoas em situação de rua.

— Conte comigo! Já mandei alguns cobertores para os abrigos, mas ajudar sempre é bom.

— Ótimo! Uma das minhas clientes é dona de uma loja de enxovais e roupas, fechamos parceria com ela, só me fala quantos vão ser que ela já separa!

— Vocês já sabem como vão entregar?

— Você está lendo minha mente, cunhadinha! Ia te pedir esse favor.

Passamos uma boa parte da tarde arrumando a logística das entregas dos cobertores, ainda bem que tínhamos vans para fazer isso, e antes que anoitecesse, pelo menos dois abrigos receberam as doações.

Pepper não conseguiu ir para casa, nem era aconselhável, assim, acabei ganhando uma companhia para a noite, para a alegria de Stark, que estava todo quentinho, deitado no colo dela.

— Quem está esquentando quem? – Perguntei, quando finalmente consegui terminar o meu trabalho.

— Aquecimento mútuo! – Foi a resposta que recebi.

— Ainda acho que Stark está levando a melhor. Pits sentem muito frio por conta da pelagem curta.

— Algo que Thor e Loki não sentem... – Pepper comentou, vendo que os dois não faziam questão de se deitarem perto da lareira.

— Não mesmo. Estão se divertindo com a neve lá fora. – Garanti.

Os dois só foram chegar perto do fogo, quando me sentei na frente da TV, e não tinha outro assunto nos noticiários, do que o mal tempo.

A moça da previsão estava garantindo que a massa de ar polar ficaria por aqui até o final de semana, diminuindo no domingo, para se dissipar totalmente na terça-feira. Ou seja, mais oito dias de caos.

Foi recomendado que as pessoas buscassem abrigos e que ficassem de olho nas pessoas mais propensas a adoecerem, pois era melhor evitar o colapso de hospitais.

— Falando nisso, você ligou para a Dona Amelia? – Pepper perguntou.

— Mandei mensagem para ela hoje de manhã. Ela reclamou do frio, mas disse estar tudo bem.

— Ela detesta frio, ainda mais persistente assim. Até hoje não sei como ela topou ir para a Finlândia.

— Te dou um único motivo! – Comentei rindo.

— Deixa eu ver se é o mesmo que o meu... – Disse minha cunhada.

— Elena! – Falamos juntas.

— Sim, a baixinha invocada da sua sobrinha é a única razão pela qual a nossa sogra encarou todo aquele frio. Eu aposto que se Elena estivesse por aqui hoje, ela não teria reclamado, muito pelo contrário, teria inventado de ir esquiar! – Pepper completou o raciocínio.

A mim, me restou rir da situação e fazer uma careta para a previsão do tempo que, pelo visto, iria me manter presa em Los Angeles no final de semana.

A quinta-feira veio mais gelada ainda e com uma novidade, a piscina tinha congelado, virado um lindo laguinho no meu quintal. Ainda presa em casa, trabalhei mais do que trabalharia no escritório, com um único conforto, estava de pijama e de pantufas, tomando uma caneca de chá atrás da outra e tendo meus cachorros como aquecedores de pés, bem, com a exceção de Stark que estava ficando cada segundo mais nervoso de ter que ficar encolhido como um enorme donut peludo de roupa ao lado da lareira ou do aquecedor.

Pepper não teve coragem de pegar o carro e ir para casa, disse que não tinha habilidade o suficiente para encarar as ruas congeladas e pediu que eu a levasse.

— Por tudo o que há de mais sagrado, é para ir com cuidado. Eu não quero conhecer as suas habilidades de piloto de rally.

Fui o mais devagar que consegui, e nem assim escapei de algumas derrapadas, que quase fizeram a minha cunhada ir no outro mundo. Com ela em casa, voltei literalmente correndo para casa, aproveitando para matar a saudade de como é correr no gelo e na neve e, caso algum policial me parasse, eu tinha a ótima desculpa de que eu não sabia dirigir nesse tempo!

Ninguém me parou e eu me diverti um pouquinho nesse dia gelado.

E, realizando reuniões por telefone, porque a internet resolveu ficar intermitente, fui arrumando as minhas malas para ir para Londres, foi a experiência mais estranha que tive na vida.

Na sexta, por motivos de problemas técnicos, não pude ter a minha reunião semanal com Londres e com Camilla, o que foi completamente entendível, tendo em vista o caos que a Califórnia tinha virado. E, como consequência do mau tempo, meu voo foi adiado para o sábado à tarde, que, ao que parecia, iria ter teto para decolagem.

O sábado amanheceu sem neve caindo, mas com um amontoado nas ruas e portas. E, antes de me arrumar para ir para o aeroporto, tive que tirar todo o acumulado da minha porta, caminho do carro, portão da garagem e calçada. Ao final, eu suava mesmo que a temperatura estivesse quase negativa.

Ao meio-dia recebi a confirmação de que meu voo decolaria às 18:00, somente com um atraso de trinta e seis horas! Acabei de arrumar a casa, fechei minhas malas, verifiquei meu passaporte e o passaporte dos cachorros, assim como as carteiras de vacinação e às 15:00 horas, fui para o aeroporto. Teria que cortar boa parte da cidade para chegar até o LAX – que era o único aeroporto da região que estava operando hoje.

Levei quase uma hora para chegar e mais trinta minutos para encontrar uma vaga no estacionamento coberto, dessa vez, deixaria meu carro por aqui mesmo, para que meu sogro, que já estava trabalhando, não precisasse ficar me buscando aqui, isso não era obrigação dele.

Passei pelo check in e fiscalização sanitária com os cachorros, sendo liberada para a área de embarque de voo privados. Enquanto esperava, conversei com minha sogra, que tinha ficado nervosa só de pensar que eu tinha feito a viagem sozinha e de carro de minha casa até o LAX.

— Dona Amelia, foi tudo bem. As ruas estão praticamente desertas. – Garanti.

— E o seu carro?

— No estacionamento coberto do aeroporto. Escolhi a área com vigilância 24 horas, nada vai acontecer.

Claro que ela não gostou disso.

— Dona Amelia. – Quebrei o silêncio pesado que tinha caído na nossa ligação. – Era a melhor opção tendo em vista o clima. Não era justo que o Sr. Pierce me desse uma carona e tivesse que encarar ida e volta debaixo dessa chuva congelada.

— Realmente, vendo por esse lado. – Ela concordou comigo. – Mas assim que o tempo melhorar vamos buscar seu carro. Não vou deixá-lo por quase duas semanas parado nesse lugar. Nunca se sabe o que pode acontecer.

— Tudo bem. Mas só quando o tempo melhorar. Não quero vocês se arriscando para buscar um carro. – Pedi. – A chave reserva está na primeira gaveta à direita na minha mesa. – Dei as instruções.

— Nem eu sou doida de deixar o Jonathan sair com esse tempo.

Fiquei mais tranquila ao ouvir isso. E nosso papo passou a ser a saudade que ela estava de Alex.

— Pelo menos Will está chegando amanhã... – Foi a consolação que ela encontrou.

— Alex volta para o país em quatro semanas. Passa rapidinho!

— Nem tão rápido assim, Kat.

— A senhora vai ver! – Brinquei com ela.

Ao fundo liberaram o embarque para o meu voo.

— Vá com Deus, minha filha, dê notícias, e por favor, nada de nos dar outro susto como em dezembro.

— Eu darei notícias sim. Prometo. E vou falar com o Alex que a senhora está morrendo de saudades. – Ia falando enquanto guiava Stark e Thor para o avião. Loki me seguia com a guia na boca.

— Ele vai rir de mim como sempre faz, mas agradeço.

— Ele só ri da senhora, Dona Amelia, porque também está com saudades e não tem coragem de falar.

— Deve ser isso mesmo. Me ligue quando chegar na sua casa. E leve esse tempo horroroso com você para a Europa, por favor! – Ela terminou brincando.

— Garanto à senhora que quando eu decolar, o sol aparece novamente. Beijos, Dona Amelia, até daqui a quinze dias.

Desliguei a chamada e coloquei o telefone no modo de avião. Ajeitei o trio peludo para que eles tivessem uma viagem confortável e me sentei na poltrona afivelando o cinto no exato momento em que as turbinas eram ligadas.

Nossa decolagem foi autorizada e com trinta minutos de voo eu não via mais nenhum sinal de Los Angeles.

Como o voo duraria de onze a doze horas e eu desembarcaria com o dia amanhecendo em Londres, decidi por tentar dormir, fazendo do enorme sofá uma cama bem confortável. Stark logo pulou aos meus pés e se ajeitou por ali, como o pobrezinho vinha sentindo um frio danado nestes últimos dias, deixei-o ali mesmo.

Estava quase pegando no sono, quando passamos por uma turbulência violenta que sacudiu o avião inteiro. Pelo rádio, o piloto me informou que estávamos saindo da massa de ar polar que chegara até a Califórnia. Pelos dados dele, essa foi tão forte que pegou toda a Costa e o Meio Oeste Americano.

Demorou um pouco, mas conseguimos sair ilesos dos sacolejos e depois que me acalmei um pouco, consegui dormir.

Acordei faltando duas horas para aterrissarmos, olhei pela janela do avião e tudo o que eu via eram as nuvens.

— Pelo visto o tempo também não está nada bom pelos lados da Inglaterra. Alex deve estar ainda mais mal-humorado do que já estava. – Falei sozinha, ou quase, pois fui eu citar o nome de meu noivo e Stark deu uma ganida. – Sim, seu friorento, você vai ver seu pai. – Acariciei a cabeça dele.

Aproveitei que tinha um tempinho de voo ainda e tentei me fazer apresentável. Troquei o conjunto de moletom quentinho que usava por roupas próprias para encarar o frio e a chuva de Londres e coloquei um par de botas impermeáveis só por precaução.

Dobrei os cobertores que usei, guardei-os junto com os travesseiros no compartimento no fundo da aeronave e só me restou esperar pelo aviso de que estávamos quase chegando.

Sentei-me no sofá e me debrucei no encosto, olhando pela janela igual a uma criança ansiosa e logo um pouco das pesadas nuvens se dissiparam e eu pude ver as luzes de Londres ao longe.

Como ainda estava relativamente escuro, dessa vez eu não poderia ver a curva do Tâmisa perto do Greenwich Park... então, me contentei, assim que baixamos a altitude, em ver as luzes da London Eye.

E nessa contemplação, me peguei pensando, um pouco mais de cinquenta dias atrás, eu cheguei em Londres cheia de expectativas sobre como seria a reunião do Conselho e hoje eu volto, não para uma outra reunião, mas para encarar a pessoa que quase me matou.

A passagem do tempo é no mínimo estranha.

Aterrissamos no London City e logo me vi livre da burocracia da chegada e, mesmo sendo bem cedo, eu já sabia onde ir, meu pai e Alex tinham vindo deixar o carro para que eu fosse para casa, já que o meu horário de chegada era incerto por conta do mau tempo na Califórnia, assim, peguei as minhas malas, coloquei-as em um carrinho e como sobrou um espaço, coloquei Stark ali também, para que ele não precisasse se molhar no asfalto gelado, amarrei as guias de Thor e Loki em meu pulso e caminhei devagar até o estacionamento.

No meio do caminho, pude jurar que tinha alguém me seguindo, olhei em volta e não vi ninguém. Depois ouvi um assobio. Fingi que não tinha escutado nada e continuei a andar, sabendo que se algum engraçadinho tentasse me encostar a mão, seria mordido por três cachorros.

Porém, parecia que não era meu dia de sorte, pois veio do nada, eu estava consciente dos meus arredores, afinal, ali ainda era um aeroporto e um lugar perigoso, contudo, não vi a pessoa que chegou atrás de mim e puxou a alça da minha bolsa. Não conseguiram tirá-la do meu ombro, e quando me virei, já pronta para soltar Loki em cima do desgraçado, vi quem realmente estava me importunando desde que eu pusera os pés no estacionamento.

— Bem-vinda à Londres, Rainha do Gelo! – Alex me saudou com um sorriso.

Encarei meu noivo. Toda a raiva que estava sentindo se evaporou em um piscar de olhos, pois, finalmente, estávamos juntos novamente!

— Achei que você preferiria ficar dormindo! Ainda é cedo!

Ele coçou a cabeça e só disse.

— De jeito nenhum. Para te ver mais cedo, vale a pena encarar esse tempo feio. – Ele encurtou a nossa distância e me deu um beijo.

Acontece que tinha muito tempo que não nos víamos, e o nosso beijo foi um tanto exagerado para o lugar onde estávamos.

— Também senti a sua falta. – Falei aos arquejos quando nos separamos.

Alex riu e, também sem fôlego, só completou:

— Eu ia chegar nessa parte.

— Sei que ia. – Confirmei ainda sem soltá-lo e era bem capaz que ficássemos assim por um tempo, se Stark não tivesse ganido, querendo receber atenção e sair do frio ao mesmo tempo.

— Hei, amigão! O que fizeram com você nesses últimos dias? Te transformaram em um picolé de cachorro, foi? – Alex foi brincar com o pitbull.

— Está mais para cachorro-quente mesmo. Pois ele mal saía de frente da lareira. – Comentei.

Alex ainda brincou um pouco com Thor e Loki e depois enlaçou a minha cintura com um dos braços e foi me guiando até o carro, fazendo questão de empurrar o carrinho com as malas e Stark.

Já no quentinho do carro, que eu dirigiria, pois meu noivo me disse que eu tinha que me acostumar novamente com a mão inglesa, fomos conversando sobre a quantas iam as gravações e se a previsão de ele retornar para os EUA no final de fevereiro permanecia.   

— Ainda é esta a programação. Tudo vai depender de quantos dias eu vou ficar afastado do set. – Ele deixou o assunto no ar.

— Não serão muitos dias para você. – Afirmei. – Eu que tenho que ficar até o final, você só precisa testemunhar no dia marcado.

— Acha que vou te deixar sozinha na frente de todos eles?

— Alex, é o seu trabalho. Você não pode, simplesmente, interromper uma produção inteira, por conta de um julgamento que envolve a sua noiva. Não se esqueça de que todas aquelas pessoas também têm família, têm uma vida e que nós não podemos prejudicá-las. Elas também devem estar sentindo falta de casa. Isso sem contar no orçamento do filme. Pelo que entendi até agora, vocês dobraram noites e mais noites de gravação por conta de aluguel de set... imagina se tudo tiver que ficar parado por sua conta?? É justo com quem já trabalhou tanto?

— Mesmo assim, Kat.

— Alex. – Tentei por um pouco de juízo na cabeça dura dele. – Você só tem que testemunhar no dia e hora marcados. O restante dos dias é comigo. E eu não estarei sozinha. Garanto a você isso.

Meu noivo fechou a expressão.

— Não fique emburrado. Sabe que o que falei é o certo. O mundo não gira em torno de nós, além do mais, eu sei que por mais que meu dia na Corte tenha sido ruim, eu vou te encontrar quando sair de lá.

— Eu deveria ir com você, Kat. – Ele frisou.

— Essa não é a sua luta. É a minha. Ou nem é minha, porque eu não assinei nada para que dessem início a este processo, mas acontece que eu fui a vítima, então eu tenho que ir, e acredite em mim, estava torcendo para poder dar só o testemunho por vídeo e fingir que nada disso estava acontecendo, contudo, não é assim que as coisas são.

Alex balançava negativamente a cabeça, esse assunto era um tanto delicado para todo mundo. Cada um tinha a sua opinião sobre Cavendish, sobre o que queriam que acontecesse com ele, todavia, os nossos desejos não virariam realidade só porque queríamos, precisávamos de expor tudo novamente para que um júri decidisse. E essa era a pior parte.

Acabamos que ficamos em silêncio até que chegamos em casa, algo que eu não gostei, tinha muito tempo que eu não ficava ao lado de Alexander para que acabássemos assim, calados e distantes um do outro, só por conta de um evento que não estava em nossas mãos.

Guardei o carro na garagem, desafivelei o cinto e abri a porta para descer, quando Alex me segurou pelo braço, me impedindo de seguir.

— Não foi assim que eu imaginei o nosso reencontro. – Começou. – Na verdade, eu nem deveria ter trazido este assunto à tona, mas de qualquer forma, só por hoje, durante o dia, vamos fingir que não tem nenhum problema no mundo?

— Também não foi o que eu imaginei, Alex. Contudo, infelizmente, temos que falar sobre isso... não precisa ser hoje, mas temos.

— Temos um domingo para nós, porque sei que à noite sua mãe vai querer sua presença no jantar... o que quer fazer?

— Ficar à toa, do seu lado está perfeito para mim... – Falei sem pensar e ele abriu um meio sorriso presunçoso e depois me puxou para um beijo apaixonado.

Quando entramos em casa, seguindo os latidos contentes de nossos cachorros, que enfim podiam alongar as pernas e saírem correndo sem rumo, tinha um cheiro de café e chá no ar.

— Você fez o café da manhã? – Perguntei incrédula.

— Boas-vindas completas. – Alex falou ao meu ouvido, já que ele ainda estava me abraçando.

— Que horas você se levantou?

Ele deu de ombros, como se não fosse nada demais ele ter madrugado para fazer o café da manhã e depois ir me buscar no aeroporto. Podia não ser muito para ele, mas para mim era tudo.

— Obrigada! – Agradeci roubando um beijo dele e aproveitando para me dependurar em seu pescoço.

— Você faria a mesma coisa, ou até mais, já que cozinha melhor do que eu.

— Mesmo assim, obrigada. Significa muito.

— Então vamos comer, porque eu tenho a estranha sensação de que você não andou comendo muito nos últimos dias.

— Muito pelo contrário. Trabalhando de casa, eu comi o tempo inteiro.

— Pipoca não é comida, Kat.

— Você não faz ideia de quantas caixas de chocolate eu comi. Devo até ter engordado!

Como estávamos sentados lado a lado, Alex só levantou a barra da minha blusa e me deu um beliscão de leve na cintura.

— Não engordou nada.

— Sério? Você sabe se eu engordei ou não só por me dar um beliscão?

— Tem outras maneiras de ver se você engordou ou não, mas acho que você não vai querer fazer isso aqui na cozinha... – Ele deixou a ideia no ar e eu senti o meu rosto corar.

— Não mesmo! – Falei até um tanto encabulada da ideia dele.

Ele não disse mais nada, porém, o sorriso em seu rosto me indicava que ele tinha planos para o restante do dia.

Acabamos de comer e aquela nossa rotina de sempre, em que ele lava e eu seco e guardo foi restaurada, como se um mês de distância não tivesse afetado em nada. Terminamos tudo não era sete e meia da manhã.

— Vai querer fazer o que com esse tempo maravilhoso? – Alex me perguntou, apontado para o dia cinzento e chuvoso do lado de fora.

Olhei para o quintal dos fundos e a única vontade que eu tinha era de ficar debaixo das cobertas, bem encolhida, vendo qualquer baboseira na TV.

— Eu te falei o que eu queria fazer ainda dentro do carro...

Alex não me deixou respirar, me pegou no colo e me levou para o segundo andar.

— Eu sei andar, sabia? – Reclamei.

— Assim fica mais fácil. – Foi a réplica dele.

— Parece até homem das cavernas. Será que pode me colocar no chão?

Alex fingiu que não me ouviu e quando eu vi, já estávamos dentro do quarto, e notei que a cama ainda não tinha sido arrumada. Porém, não foi isso que me chamou a atenção.

— Desde quando você está tão forte? – Perguntei assim que nós dois aterrissamos na cama, ele pairando sobre mim, apoiado pelos braços. – Está malhando quantas vezes por semana? – Passei a mão por seus tríceps ainda mais definidos do que antes.

— Todos os dias.

Arregalei meus olhos, era quase inconcebível que ele estivesse tão forte.

— Por que tão assustada?

— Nada... - Tentei desconversar. Mas a verdade era que eu estava um tanto intimidada com todos aqueles músculos. Isso porque ele ainda estava com o suéter.

— Não acredito em você... – Alex falou enquanto beijava a minha mandíbula.

— Tem muito tempo que eu não te vejo, Alex. Videochamadas não fazem jus a ninguém. – Comentei e foi um milagre que eu tenha conseguido falar uma frase completa, pois ele agora tinha decidido dar atenção a um determinado ponto em meu pescoço, enquanto uma de suas mãos descia pelo meu tronco e brincava novamente com a barra da minha blusa.

— Isso eu concordo com você, Kat. Você é muito mais bonita pessoalmente.

Como em todas as vezes em que ele me elogiara, senti um fluxo de sangue subir pelo meu rosto, o que agradou demais Alexander.

— Eu senti falta dessas suas reações mudas. – Agora ele me olhava nos olhos. – Às vezes você diz muito mais com os olhos ou com suas bochechas vermelhas do que com palavras ou ações.

Eu sabia que se ele continuasse a me olhar dessa maneira, eu continuaria a ficar ainda mais vermelha, assim, para evitar que ele tivesse o ego inflado só de saber que eu reagia descontroladamente à sua presença, enlacei uma de minhas pernas em torno de sua cintura e acabei invertendo as nossas posições, tentando, tomar o controle do nosso momento.

— Isso tudo é saudade, Katerina? – Ele perguntou um tanto rouco.

— Você não faz ideia da falta que eu senti de você! – Murmurei contra a pele de seu pescoço e dei um beijo ali.

Alex logo conseguiu levantar o meu rosto para que eu o encarasse, porém, não ficamos assim por muito tempo, logo travamos nossos lábios, em um beijo voraz e cheio de saudade.

— Céus, eu nunca mais quero ficar trinta dias sem te ver! – Alex sussurrou no meu ouvido quanto retomou o controle.

— Nem eu. É tempo demais.

E tinha chegado o momento de matar essa saudade imensa que sentíamos um do outro.

~~~~~~~~~~~~~~   

Acordei e me dei conta de que estava nos braços de Alex, com a cabeça apoiada em seu peito e abraçando sua cintura.

Pelo brilho que passava pelas cortinas com blackout, o dia já deveria ter passado da metade. Era mais do que hora de me levantar e dar um sinal de vida para minha família.

— Está acordada de verdade agora, ou é outro alarme falso? – Alex perguntou enquanto acariciava minhas costas.

—  Boa tarde para você também! – Dei um beijo em seu peito.

— Agora está acordada.

— Sim... e quantas horas?

Alex tateou a mesinha de cabeceira, até que achou o próprio celular.

— São 14:25.

— O QUE??!!

— Kat, é domingo. E ninguém vai julgar o seu desaparecimento. Você chegou de um voo de 12 horas, merece descansar. – Ele disse na maior cara de pau, como se os acontecimentos da manhã não fossem nada. E ao me lembrar dos “acontecimentos”, comecei a ficar vermelha. – Estava esperando por esse momento também... me pergunto qual te deixou assim?

Como ele tinha a coragem de perguntar qual?! Meu Deus! Eu diria que todos os momentos. Contudo, preferi ficar calada e só rememorar.

— Não sei o motivo de ter ficado tão quieta...

Levantei minha cabeça e encarei os olhos azuis que me fitavam com adoração.

— Só relembrando. Tem coisas que não quero esquecer.

Alex me apertou mais forte contra seu corpo e estávamos quase dormindo novamente, quando a campainha tocou.

— E você dizendo que ninguém iria ligar para o meu desaparecimento... – Falei.

— Não sabemos quem é, fica quieta que logo vai embora.

Só que não foram embora. A campainha foi tocada novamente, e dessa fez esqueceram de tirar o dedo do botão.

— Parece até criança... nunca viu uma campainha. – Alex murmurou.

Eu ia rir, juro que a risada já estava em minha garganta, quando me lembrei que na minha família tem uma criança de cinco anos. E, pelo visto, Alex se lembrou disso também!

— ELENA! – Falamos e pulamos da cama...

— Quem vai para o banho primeiro? – Ele perguntou.

— Você... pois é mais rápido... Eu vou atender a porta. – Falei e tentei buscar por alguma roupa que fosse quente, confortável e que não indicasse que estava na cama até agora.

Falando em cama, melhor trancar a porta do quarto....

Desci vestindo um moletom de Alex, larguinho, quente e que me livraria de qualquer suspeita e tentando amansar meus cabelos que estavam puro nó. Cheguei no térreo para me deparar com a cena de Thor, Loki e Stark brigando para tentarem chegar até os dedos de Elena que estavam aparecendo pela abertura da caixa de correios.

Tätiiiii[2]! – Ela falava. – Setääää[3]!! Abre a porta! Tá frio aqui!

Pude ouvir até mesmo Tanya xingando a filha.

— Estou indo! Cuidado com mão. – Respondi.

Elena deu um grito animado e eu pude ver a ponta de suas maria-chiquinhas pulando no vidro da porta.

— Oi! Boa tarde! – Cumprimentei Tanya que estava na porta e estendi os braços para que Elena pulasse em meu colo.

— Juro que não viríamos, mas essa aqui. – Tanya apontou para a filha mais nova que já tinha se apossado de meus braços. – Estava doida para ver a täti. Não atrapalhamos nada, não é?

— Não. Estava dormindo, para ser sincera, mas está tudo bem. Onde estão os outros dois e meu irmão? – Perguntei.

— Tuomas está dormindo. Chegou era oito da manhã, eu juro que não sei de onde esse garoto tira energia para virar a noite. Acabei de deixar Olivia no cinema, ela e a turma vão ver sei lá qual filme.

— E Olivia está bem agora?

— Muito melhor. Os ataques de pânico são raros, mas ela sempre pede para que alguém a leve nos lugares. Eu não ligo, acho até mais seguro, ainda mais nos dias de hoje, porém, também fico receosa que ela nunca mais tenha coragem de usar o transporte público.

— Por experiência própria, ela vai voltar. Uma coisa de cada vez. – Comentei.

— E você, conseguiu voltar a dormir?

— Consegui. Venho dormindo bem, arranjei um belo motivo para me fazer cair no sono.

Tanya deu um sorriso e olhou sugestivamente para o alto da escada.

— Eu começo a tocar violão. – Falei antes de mais nada.

— Sério?

— Sim, meio coisa de bebê, cair no sono ao som de música, mas têm funcionado, e isso é o que importa.

— Tem muito tempo que você não canta pra mim, täti! – Elena falou, nos dando ciência de que ela estava prestando atenção na nossa conversa.

— Vou fazer isso hoje, pode ser?

— Pode! – Ela me abraçou feliz.

— Olha as promessas! – Tanya me alertou.

— Hoje é domingo, e Alex me disse que minha mãe quer todo mundo lá na casa dela... que mal faz, passo na sua, coloco essa espoletinha na cama e depois venho para cá! – Brinquei com Elena apertando o seu nariz.

— Sim, ela quer. – Tanya me confirmou. – Dona Diana ficou muito preocupada com você nos últimos dias. Ela disse que tinha o pressentimento de que alguém iria atrás de você.

Mantive a expressão neutra, não queria alarmar minha cunhada sobre algo que já tinha acontecido, mas, eu devo alertar minha mãe sobre o que ela vem pensando. Pois ela estava certíssima.

— Tudo vai ficar bem. – Garanti à Tanya. – Quando esse julgamento acabar.

— Sei que vai. Você precisa de paz na sua vida, Kat. Aliás, vocês precisam. Digo isso, porque ele – Tanya apontou para o andar de cima. – é outro que vive preocupado com você.

— E como você sabe disso? – Inquiri.

— Pode parecer estranho, mas com a sua chegada iminente, seu pai, Ian e ele tiveram uma conversinha bem longa anteontem.

— Alex não me falou nada.

— E nem vai falar. Tentei puxar a língua de Ian, mas ele ficou calado. Aconteceu alguma coisa que os fizessem agir assim?

— Não. – Menti na cara dura. – Porém, não duvido que os três devam ter bolado algum esquema de segurança absurdo para mim.

— Não só para você. Escutei, por alto, os nomes dos meus filhos.

— Toda proteção é bem-vinda, Tanya. Toda. E nós sabemos que não de bom tom desfiar aquela corja.

A expressão de minha cunhada se alterou, passando da sempre calma e compostura, para uma raiva que ela ainda não conseguia conter.

— Nem me lembre disso.

— Também não gosto de lembrar, mas é o maior dos alertas.

Você é o maior dos alertas, Kat. Sempre se lembre disso.

Íamos continuar com essa conversa, contudo, Alex começou a descer a escada, até mesmo de forma barulhenta, nos fazendo voltar a falar de amenidades, como o desempenho de meus sobrinhos na escola.

Elena estava pronta para dar o pitaco dela, quando viu Alex e em um piscar de olhos, estava pulando do meu colo e correndo, com os braços abertos, na direção dele, que também estendeu os braços e se agachou. Antes de chegar até ele, minha sobrinha tropeçou nos próprios pés, mas Alex estava ali para pegá-la.

Setä!! Eu senti um tantão de saudade de você!

— Você me viu anteontem, Espoleta!

— Foi há muito tempo! – Ela respondeu, dando um beijo na bochecha dele.

Tanya riu diante da cena.

— É incrível como Elena adora Alex. Chego a pensar que ela gosta dele na mesma intensidade que ela gosta de você, Kat. – Comentou ainda observando os dois conversando. Elena contava para Alex como fora a aula de balé no dia anterior.

— Sabe o que é mais engraçado? – Falei baixo.

— O que?

— Alex já se considerava tio da Elena antes mesmo de conhecê-la pessoalmente. Bastou que ela o chamasse de tio em uma videochamada e ele ficou todo babão.

— Ele gosta de crianças...

— Não comece, Tanya. Sei que todo mundo na família já tem ou está à espera do filhote, mas eu não quero filhos agora.

Agora... isso já é um avanço. Você não queria filhos nunca.

E eu não tinha outra resposta a não ser:

— Tenho a pessoa certa ao meu lado agora. Mas não é o momento certo. E falando em bebês... como Elena está reagindo à chegada do primo?

— Tem dia que fica empolgada, dizendo que vai brincar com ele, que vai mostrar todos os brinquedos do mundo para ele. E tem dias que, bem, ela até chora, perguntando se não vamos mais gostar dela.

— Tadinha... mas Olivia foi a mesma coisa, e hoje é a protetora da irmã mais nova. Leninha se acostuma.

— Vamos ver o que vai acontecer. Mas de uma coisa eu tenho certeza.

Levantei uma sobrancelha para minha cunhada.

— Se ela perder a preferência de vocês, eu terei uma adolescente muito rebelde para tomar conta no futuro. Olha aquilo! – Apontou para a filha que agora tentava ensinar para Alex um passo de balé, e ele tentava fazer de qualquer jeito.

— Bem... que ninguém, jamais saiba disso. – Reprimi a minha risada.

—  Ele não leva jeito nenhum! – Tanya concordou comigo.

Com pouco, meu noivo, cansado de ser feito de aprendiz de bailarino, pegou Lena no colo e veio, finalmente, cumprimentar Tanya.

— Só veio vocês duas?

— Tenha dois adolescentes em casa, e você percebe que eles não querem mais saber dos pais. – Minha cunhada fingiu uma falsa ofensa.

Foi Elena quem explicou a situação, bem do jeito dela:

— Tuomas está sempre dormindo de dia, para sair de noite... ele até parece um morcego! Liv está com as amigas dela... mas ela falou que preferia ter vindo... só não veio porque é o aniversário de uma delas, que eu esqueci o nome.

— Então, senhorita fofoqueira, já acabou o relato da vida dos seus irmãos? – Tanya perguntou.

— Já... ou tem mais coisa para contar? – Ela se sentou no chão e abraçou Stark que estava deitado na frente da lareira. – Acho que não.

Eu e Alex reprimimos um sorriso diante da atitude nada convencional de Elena e voltamos a conversar.

Com pouco, o celular de Tanya tocou, era do hospital.

— Uma emergência a essa hora... lá se vai a minha noite de descanso.

— Ninguém mandou ser uma cirurgiã renomada. – Brinquei com ela.

— Pois é... e ainda tenho que passar em casa para deixar essa aí.

— Deixe-a aqui. Levo a Elena para o jantar e de lá, vocês assumem.

— Vocês acabaram de se reencontrar depois de mais de um mês separados e vão tomar conta de uma criança? Não acho justo!

— Tem uma vida para ser salva, Doutora Nieminen. Vá logo. Nós bancamos as babás!

Tanya se despediu de nós e pediu juízo para a filha e mal se afastou da porta, já foi ligando para o hospital, para saber de que se tratava a emergência.

Elena logo voltou para perto de mim e pediu colo.

— Não vai dormir agora, vai, Espoleta?

— Não, é saudade, täti.

— Será que essa saudade sua pode esperar que a tia tome um banho?

— Acho que pode. Mas eu posso subir com a senhora?

Lembrei do quarto todo bagunçado... mas foi Alex quem me salvou nessa.

— Está tudo arrumado lá em cima.

— Vamos lá, então.

Elena se agarrou no meu pescoço e foi me contando a vida dela, as coisas que ela fez, que viu e aprendeu, nesse tempo em que não nos vimos.

Quando cheguei no quarto, coloquei-a em cima da cama, mas ela foi logo me seguindo para dentro do closet, me ajudando a escolher a minha roupa.

— Eu vou tomar um banho, fica quietinha aqui na cama, ou se preferir, pode descer e ficar com o seu tio. Mas cuidado na escada. – Adverti.

Entrei no banheiro, sem trancar a porta, com Elena por perto, tudo era possível. E quando eu saí, a Espoleta estava enroscada na cama, ao lado de Alex, que lia um livro para ela. Quando me viram, me convidaram para me juntar a eles.

Subi na cama, coloquei Elena no meu colo e Alex passou o braço por meus ombros, para que eu me escorasse nele, continuando a ler o livro.

Elena ficou atenta a cada palavra dita por Alex, ainda mais quando ele mudava de tom de voz para fazer os diferentes personagens, e essa foi a primeira vez em que minha sobrinha não dormiu enquanto alguém lia para ela. Ficou acordada do início ao fim do livro, que não era tão grande, mas era adequado à idade dela, e depois ainda foi e agradeceu à Alex por ele ter lido para ela, com um beijo e um abraço.

Kiitos, setä[4].

— Sempre que quiser, Espoleta. – Ele respondeu dando um beijo no alto da cabeça dela.

Quando ela voltou para meu colo, tive que perguntar o motivo da sessão de leitura ser exatamente aqui.

— E por que no quarto? – Eu quis saber.

— Na verdade, eu queria ver um desenho...

— Mas ela não queria te deixar aqui em cima sozinha. Assim, como não temos televisão no quarto, falei com ela para escolher um livro. – Alex completou a explicação.

— Uma escolha muito melhor. – Puxei a ponta do dedão dela e Elena deu uma gargalhada gostosa.

— Não faz isso täti!! – Ela reclamou ainda rindo, porque agora eu tinha puxado o outro dedão.

— Não gosta, é? E se eu fizer isso aqui? – Comecei a fazer cosquinhas na barriga dela.

Elena ria de quase chorar, pedindo ajuda a Alex que também começou a fazer cosquinhas, só que no pé dela. Quando ela conseguiu escorregar de meus braços, ficou de pé na cama e depois se jogou em cima de mim, tentando me fazer cosquinhas. Ela não conseguiu, mas Alex sim... e eu me vi gargalhando tanto quanto Elena.

— Viu... essa foi a minha vingança. – Ela falou se sentindo muito importante por ter me feito quase chorar de rir.

— Sua vingança? – Perguntei incrédula da escolha de palavras. – Onde aprendeu a falar isso?

Elena, que tem a língua solta, só se sentou em cima da minha barriga, já que eu ainda estava deitada, me recuperando da sessão de cosquinhas, e disse:

— Com Liv. Ela diz isso muito para o Tuomas, principalmente quando ele dorme o dia inteiro.

— Nem tudo o que a sua irmã e irmão falam, você deve ficar repetindo, viu, papagaio loiro. Principalmente na escola.

— Tudo bem, täti, não vou mais fazer isso. – Ela falou solene, e eu sabia que a Pequena realmente não faria mais isso.

E logo em seguida, se ajeitou na minha barriga para dormir, colocando os pés no colo de Alex.

— Não vai dormir agora não... senão você vai ficar acordada até tarde, e o seu pai vai me chamar de a pior babá do mundo!

— Mas, täti...

— Nada de mas... vamos levantando!! - Coloquei-a de pé ao lado da cama e a aprendiz de dramática, só se jogou de volta no colchão.

Para espantar o sono da garotinha, Alex deu a ideia de dar uma volta no quarteirão com Thor e Loki, já que tinha parado de chover.

Coloquei um casaco mais quentinho em Elena, que ficava aqui em casa junto com outras roupas dela, e saímos. No início, ela não estava muito animada, e andava do meu lado caladinha, depois começou a cantarolar e dançar, enquanto pulava os degraus, até que pediu para começar a correr.

— De casa em casa, pare e nos espere.

Ela saía correndo um pouco, parava, nos esperava, e assim que a alcançávamos, ela voltava a correr. Nosso passeio foi um pouco mais longo do que o planejado, e assim que viramos a esquina do quarteirão, Elena, que corria na nossa frente, disparou até que parou na porta de nossa casa.

Tinha um carro parado do outro lado da rua, e assim que minha sobrinha começou a pular, nos pedindo para andar mais rápido porque agora ela estava com fome, o carro arrancou cantando pneus, assustando Elena, que quase que escorrega e cai na escada e quando passou por nós, Loki começou a latir alto e, se ele estivesse sem a guia, teria corrido atrás do carro.

Acelerei o passo para ver se Elena estava bem, graças aos céus, ela só tinha se assustado mesmo, logo abri a porta e a coloquei para dentro, minha sobrinha, já totalmente recuperada (o bom de ser criança, é isso), entrou correndo, sem notar o envelope que estava no chão.

Alex chegou e eu ainda estava agachada, olhando para o envelope que estava em minha mão.

— Que isso? – Questionou assim que libertou os cachorros das guias.

— Estava aqui quando abri a porta.

— Posso? – Estendeu a mão para me ajudar e pedindo pelo envelope ao mesmo tempo.

— Sim.  – Respondi, porém, meu estômago se contorceu, algo me dizia que quem me mandara isso estava dentro daquele carro que saiu em disparada. Aproveitei, fechei e tranquei a porta. Como se isso fosse deixar qualquer um que quisesse o mal da minha família lá fora.

Alex abriu o envelope e de lá tirou duas coisas. Uma folha dobrada e uma foto.

A foto era minha, sentada no restaurante de Dottie, e pela roupa que eu usava, fora tirada na sexta-feira da última semana.

— Se lembra desse dia? – Alex perguntou, observando a foto.

— Sim. No mesmo dia em que vi Lucca. – Respondi.

— Você não notou ninguém te seguindo?

— Não. Juro que não. No restaurante só tinha duas pessoas e eu.

— Não reconheceu ninguém?

— Não.

Logo Alex passou para a folha, desdobrando-a, e lendo o que estava impresso lá. Eu não queria saber o que era, pois só a sua expressão me informava que não era nada de bom.

Ele apertou o papel com tanta força que o amassou todo. Estava para tentar tirá-lo de suas mãos, quando Lena me chamou, pedindo para que eu fizesse um chocolate quente para ela.

— Se acalme um pouco antes de nos encontrar na cozinha... não quero Elena assustada. – Pedi para Alex, dando-lhe um beijo na bochecha. – Respire fundo, Alex. É só respirar. – Pedi a ele, que tinha travado todos os músculos e exalava fúria.

Ele fez o que eu pedi, e começou a respirar.

— Conversamos sobre isso mais tarde. - Fiz um carinho em seu rosto e dei um beijo em sua têmpora.

Alex assentiu e eu o deixei sozinho, indo ficar com Elena, antes que ela aparecesse na nossa frente e despejasse um milhão de perguntas em nós.

Estava brincando de Jogo da Forca com a pequena, enquanto esperávamos o chocolate quente esfriar um pouco, no momento em que Alex entrou na cozinha. Cruzei meu olhar com o dele, perguntando se já estava mais calmo, e com um menear de cabeça, ele me respondeu que sim, vindo a se sentar do meu lado, já olhando para a folha de papel que tínhamos em nossa frente, onde havia um meio desenho de um boneco palito.

— Está difícil essa, Elena?

— Tá sim, setä... tô com medo de enforcar o Tim.

— Tim?!

— Sim, meu boneco palito se chama Tim...

— Então, agora você tem um ajudante, não vamos deixar a sua tia enforcar o Tim! O que acha?

— Eu topo! – Ela estendeu a mão e deu um toquinho na dele.

Ficamos jogando Forca até que deu uma hora adequada para irmos para a casa de meus pais. 

Dei um banho rápido em Elena, que tinha ficado toda suada da correria que aprontou em nosso rápido passeio, depois me troquei, quando desci, com minha sobrinha em meus braços, Alex estava na janela da sala, olhando para a rua.

— Já estamos prontas, setä! – Elena nos anunciou.

Alex levou alguns poucos segundos para se virar e quando o fez, estava sorrindo. Porém, como eu o conhecia muito bem, sabia que era um sorriso falso, colocado ali para não assustar nossa sobrinha.

— Vai ser um jantar na casa dos seus avós ou no Palácio de Buckingham? Porque você está muito bonita! – Ele passou, fez uma cosquinha na barriga dela e deu um beijo em sua testa.

— Vai ser na casa da vovó!! – Elena disse toda feliz com o elogio.

— Estou achando que você está mentindo para mim!

— Não tô não, setä! – Ela clamou.

— Olha lá, hein? – Ele brincou e quando subiu alguns degraus, se virou para mim, e sem falar alto, me indicou que não era para ficar perto da janela.

Levei Elena para a cozinha novamente, com a desculpa de continuar o jogo, enquanto esperávamos Alex ficar pronto. E meu noivo foi ainda mais rápido, e logo estava do nosso lado, pegando Elena no colo e a jogando para cima, fazendo-a gargalhar alto.

— Eu dirijo? – Perguntei.

— E então, Espoleta? Deixo a sua täti dirigir ou não?

— Deixa!! Ela a piloto aqui!

— Então, täti, você vai dirigir hoje.

Fechamos a casa, colocamos a cadeirinha de Elena no carro, e abrimos a garagem, confesso que estava até tensa, com medo do que nos esperava na rua, não tinha nada, nem um carro sequer.

Só me afastei de casa, depois de me certificar que o portão estava totalmente fechado, e assim acelerei para a casa de meus pais, sempre olhando pelos retrovisores, buscando por algum carro que, porventura, estivesse nos seguindo.

Ninguém nos seguiu por hora nenhuma e, mais rápido do que de costume, estava abrindo o portão da garagem da casa e guardando o carro.

Foi somente quando o portão se fechou completamente, que eu soltei o volante, que estava segurando com mais força do que o necessário, mesmo sem notar.

Elena logo se agitou no banco de trás, já abrindo o cinto da cadeirinha, doida para descer e ver os avós.

Descemos, libertamos a Espoleta, que saiu correndo da garagem e já foi entrando chamando por minha mãe.

— Agora eu quem te peço para respirar. – Alex falou comigo. – Se você entrar na sala com essa cara, seu pai e sua mãe vão achar que aconteceu algo.

Mas aconteceu algo! – Sibilei.

— Ninguém está ferido, Kat. Estamos bem.

— O que você viu?

— O mesmo carro.

— Reconheceu alguém?

Alex abriu um sorriso sarcástico.

— Sim. Seu ex. Acho que ele percebeu o que jogou fora. – Fez piada.

— Sabe que não é isso...

— Sei. Sei muito bem.

— Então deveria ser ele quem estava mandando as mensagens... – Conjeturei.

— Isso eu não sei... mas o bilhete foi ele.

— E o que estava escrito no bilhete?

— Que a sua hora está chegando.

Meu estômago se revirou novamente. E Alex, para me acalmar, me deu um beijo.

— Acalme-se, Kat. É difícil, mas faça isso. – Ele pediu e começou a me guiar para a porta.

Nem passamos por ela, e vimos meu pai, que já vinha ver o que estávamos fazendo que demorávamos tanto.

Hei, isä! Hyvää iltaa![5]— Cumprimentei-o com um abraço.

Meu pai me abraçou de volta e depois cumprimentou Alex com um aperto de mão.

— Que cara é essa, garoto?

— O que conversamos aconteceu. Foram lá em casa. – Ele estendeu o bilhete e a foto. – E foram atrás da Kat em Los Angeles também.

— Conversamos depois do jantar. Mas vocês estão bem?

— Não chegaram perto de nós. – Garantimos.

— Certo. Vamos jantar, conversar com a família. Resolvemos isso depois. – Papai falou e se virou, pois logo vinha minha mãe.

— Jari... ela não é só a sua filha!! – Demandou e passando como um raio por meu pai, veio me abraçar. – Hei, tytär[6]... estava tão preocupada com você. Como foi a última semana em Los Angeles? Tudo normal?

— Longe de ser normal, äiti[7]. Nevou o tempo todo. Mais do que aqui. Tive que trabalhar de casa!

— Eu realmente vi isso nos noticiários, mas não achei que fosse te incomodar.

— E não incomodou... mas vamos dizer que os californianos, definitivamente, não gostam do frio e são péssimos motoristas quando cai neve... - Dei uma cotovelada em Alex para trazê-lo para conversa. Ele, ainda um tanto disperso, só me chamou de exagerada.

Aos poucos fomos andando pelo corredor, até a sala, onde Ian e os filhos já estavam.

Täti!! Setä!— Liv veio nos cumprimentar. – Eu juro, se eu soubesse que a Leninha ia para a casa de vocês tinha dado uma desculpa e não ido no cinema! – Falou nos abraçando ao mesmo tempo.

— Não se preocupe, Liv. Que filme viu? Valeu a pena?

King’s Man: A Origem. E sim, vale muito a pena! Até o Tuomas está querendo ver esse. Se alguém animar, eu até vejo de novo no cinema... – Jogou a isca.

— Se pagarem meu ingresso eu vou também! – Tuomas levantou a mão.

— Você recebe mais mesada do que eu, pague seu ingresso! – Liv retrucou.

— Estou guardando dinheiro para ir a Glastonbury... o ingresso é caro. E é um lugar onde você não pode ir, Olivia.

Olivia fechou a cara, e só soltou.

— Tudo bem... mamãe falou que posso ir ao show da Adele no Hyde Park em junho... ganhei até os ingressos.

— Podem ir parando com a briga, os dois. – Ian colocou ordem. – Ou ninguém vai a lugar nenhum e eu vendo os dois ingressos na internet.

— Eu compro o do show da Adele... – Comentei casualmente, me sentando ao lado de Liv que me lançou uma encarada mortal. – E não tenho medo de cara feia... já vi muitas ao longo da minha vida.

Liv só se escorou no meu ombro e cruzou os braços, ficando em silêncio e encarando Tuomas que estava no sofá na nossa frente. No meio disso tudo tinha Elena que não estava entendendo nada e resolveu correr para o colo do pai e contar sobre o jogo da forca que brincamos à tarde.

Entramos em um conversa um tanto tranquila, falando da vindoura temporada da Fórmula 1 e até mesmo do Super Bowl, já  que Alex comentou por alto que talvez fosse ao jogo, já que o pai dele já tinha reservado um camarote.

— Mas vocês vão a um jogo ainda sem saber quais times vão jogar? – Perguntei... – Achei que o objetivo era ver o time do coração.

— Kat... não é só pelo jogo, é pelo espetáculo, só indo para você entender.

Resolvi  que não ia encher a minha cabeça com a forma de torcer de Alex e fui para a cozinha ajudar a minha mãe. Deixando, meu pai, Alex, Ian e até mesmo Tuomas discutindo sobre as diferenças entre o futebol e o futebol americano.

E, no meio do caminho, eu só gritei:

— Um se joga com os pés, e o outro com as mãos. Esse último nem deveria ser chamado de futebol!

 Não estava na sala, mas pude imaginar a cara que Alex tinha acabado de fazer.

Entrei na cozinha rindo e logo minha mãe se virou na minha direção.

— Senti falta dessa sua risada. Ainda mais nestas últimas semanas.

— Isso aqui não é felicidade. Mas sim pura provocação. – Emendei e fui lavar as mãos para ajudá-la. – Faço o que?

— Pode ser a salada, você sabe como o seu pai gosta.

Caímos naquele silêncio confortável que sempre existiu quando eu e minha mãe estamos juntas. Até que ela começou a ficar inquieta, batendo os pés, o que significa que tem algo muito importante para falar.

— Pode perguntar, mãe. – Falei em finlandês.

Ela respirou fundo e começou a conversa, só que em escocês, já que ninguém que estava na casa sabia falar esse idioma, e isso me dizia que o assunto era sério.

— Conte-me a verdade. O que aconteceu em Los Angeles?

— Foi na sexta-feira passada. Lucca apareceu na porta do prédio, enquanto eu esperava pelo Uber.

—  E onde estava o seu carro? Por que se arriscar com um motorista desconhecido?

— Pietra me pediu para entregar a Ferrari que ela tinha alugado na concessionária... não quis voltar em casa e depois ir para o prédio, é muito longe... assim, pedi que me deixassem no trabalho. Ponderei como voltaria, das opções que tinha, o Uber era a mais segura... só não contava com a materialização da assombração do meu lado.

— O que ele fez com você?

— Nada. Falou um monte, disse que eu não era ninguém, que eu estava sozinha... Minha sorte é que ele não se deu conta de que estávamos na frente do prédio e os seguranças viram que ele estava me importunando e vieram ao meu socorro. E como é característico de Dempsey, ele correu.

— Ele não foi atrás de você depois? Fiquei com medo, você sozinha, naquela casa...

— Não, mãe, ele não foi. Mas pediu alguém para me seguir, pois tiraram uma foto minha e hoje deixaram lá em casa, junto com um bilhete.

E Dona Diana se virou para mim, com olhos arregalados.

— Fizeram algo com vocês?

— Não. Tínhamos saído para dar uma volta no quarteirão para distrair Elena, o envelope foi jogado pela caixa de correios.

Minha mãe parou no meio da cozinha, um tanto pálida demais.

— Mas o que eles querem?

— Me enlouquecerem, mãe. Todo mundo sabe o que eu sofri no ano passado. Não tem um ano que estou melhorando... uma recaída e pode ser o fundo do poço, podem usar isso contra mim, dizendo que eu sou instável e que atirei em mim... tudo vale na Corte.

— Só esqueceram que você não está sozinha...

— Não... acharam que eu estava na Califórnia. Por isso foram atrás de mim lá.

Minha mãe respirou fundo e segurou a resposta que ia falar... mudando de assunto e de idioma para que ninguém desconfiasse de nada.

Colocamos o jantar na mesa e chamamos o restante da família. Tanya não conseguiu voltar, pelo visto a cirurgia era mais complicada do que todos prevíamos.

 O jantar foi um evento estranho, todos conversaram entre si, mas pairava uma nuvem de preocupação. Meus sobrinhos não perceberam nada, falaram o tempo inteiro, e ainda queriam fazer planos para o próximo final de semana.

Com a sobremesa servida e todos satisfeitos, fomos arrumar a cozinha, tarefa que meu pai tomou para si. Dizendo que era para colocar Elena na cama, porque já estava passando da hora de ela ir dormir.

Minha sobrinha não protestou, e a frase de meu pai causou estranheza nos outros dois filhos de Ian, que encararam o pai.

Isä?

— Vamos ficar por aqui essa noite, tenho que conversar com seu avô e não quero vocês saindo no meio da noite com esse tempo. – Foi o que meu irmão disse e isso viraria lei.

— Vou ficar com o antigo quarta da täti! – Liv foi falando e depois saiu para pegar um livro na biblioteca. Tuomas ficou sentado e remendeou a irmão, exagerando na careta.

Peguei Elena no colo e subi as escadas, a Pequena já estava quase apagada nos meus braços, mas teve forças para me lembrar da promessa que fizera mais cedo.

Täti... você tem que cantar para mim! – Disse depois de um bocejo.

— E eu vou cantar.

Liv, que subia atrás de mim, só falou:

— Queria ter cinco anos de novo para que alguém me colocasse na cama e cantasse pra mim...

— Nunca se é velha demais para uma cantiga de ninar. – Comentei.

Liv balançou negativamente a cabeça e entrou no quarto que um dia me pertenceu, sabendo que por lá já tinha algumas roupas dela.

Segui para o quarto de hóspedes, que é mais adequado para Elena, e a caçulinha da família ia brincando com a ponta do meu cabelo, se segurando para não dormir.

Já no quarto, não acendi a luz direta, apenas um abajur, ajudei-a a se trocar, escovei os dentes dela e depois de colocá-la na cama, comecei a cantar a cantiga de ninar que tinha composto para ela, fazendo de suas costas um piano, movimento que rapidamente acalmou a garotinha e logo ela estava ressonando abraçada em um bichinho de pelúcia.

Fiquei um tempo maior no quarto, só para ter certeza de que ela não acordaria, Elena nem se mexeu quando me levantei da cama e fiz meu caminho para a porta, que acabei por deixar encostada.

No corredor, encontrei com Tuomas que estava com uma cara horrível.

— Eu já te falei, pare de misturar bebidas. – Dei um tapa na cabeça dele. – E pare de apresentar carteira de identidade falsa nos lugares, um dia vão te pegar. Faltam poucos meses para o seu aniversário de 18 anos.

— Como a senhora sabe que misturei bebidas? Nem bebe!! – Ele reclamou.

— Já resgatei muito bêbado por aí... reconheço de longe.

— Droga... se a senhora sabe...

Dei um sorriso para ele.

— Seu pai foi um dos bêbados que já resgatei...então ele também sabe. Vê se não apronta muito nos próximos dias, Tuomas, por favor.

Meu sobrinho me olhou meio desconfiado.

— Melhor não saber o motivo. Só fique mais em casa e eu vou tentar garantir a sua ida a Glastonbury. Temos um acordo?

Tuomas balançou a cabeça positivamente e abriu a porta do quarto que era de Kim.

—  Hyvää yötä, täti[8].

Hyvää yötä. – Respondi.

Passei na porta de meu antigo quarto e vi que a luz ainda estava acessa, só para variar, Liv não conseguia dormir cedo. Bati na porta para não assustá-la.

— Entra.

— Hora de apagar a luz... – Falei.

— Mas, täti... não banque a mamãe, são onze da noite.

— E você tem aula amanhã, Olivia. Se fosse sexta, eu te deixaria lendo.

Olivia se sentou na cama e me pediu para entrar e fechar a porta.

— Sim? – Perguntei.

— Por que a senhora e a vovó estavam conversando em escocês?

Tínhamos esquecido que Liv estava querendo aprender escocês, e pelo visto ela escutou tudo.

— Coisas que não era para a curiosa escutar...

— Não entendi muito... só fiquei curiosa porque, bem, vocês nunca fazem isso, e todo mundo parece meio tenso. Até o tio Alex tá um tanto diferente.

— Alex está cansado. As gravações estão em um ritmo meio puxado.

— Não foi isso, tia... Vocês estão nervosos com algo. Dá para notar. É o julgamento? – Perguntou puxando a ponta do cabelo loiro.

— Sim. É o julgamento. E ninguém quer que você fique pensando nisso.

— Mas... algo pode dar errado?

— Não sei, Olivia.

— A senhora vai me contar se algo sair fora do normal?

Olhei para a minha sobrinha mais velha, era errado mentir para ela, sabia disso, mas não tinha outra opção.

— Vou.

— De verdade?

— Sim. – Menti pela segunda vez.

— Eu posso ter medo do resultado, ou é besteira?

— Como em qualquer júri, Liv, o resultado cabe a pessoas desconhecidas, que muitas vezes não entendem de leis e são influenciadas pelo que é dito pelos advogados e testemunhas. Temer o resultado quando nem o julgamento começou é sofrer por antecipação. O que você tem que levar contigo é: nós sabemos a verdade, nós sabemos o que aconteceu, nossas consciências estão limpas.

Liv fechou o livro, que ainda estava aberto em seu colo, e depois o colocou na mesinha de cabeceira.

— Eu sei disso, täti. Apesar de não saber os detalhes, nós vimos como você ficou... eu falo que estou com medo, porque, bem, não dá para confiar neles... e se eles aprontarem algo? Tentarem algo contra a senhora?

Eu sabia que Liv era observadora, mas isso já está passando dos limites e eu tinha que acalmá-la de todas as formas.

— A essa altura é suicídio. – Foi a minha resposta. – É declaração de culpa, Liv. Não fique pensando nisso. Saiba que estão todos seguros.

— Se a senhora falou, eu acredito. – Minha sobrinha me respondeu e tive que engolir o bolo que subiu na minha garganta, porque, mais uma vez eu mentia para ela.

— Isso é bom. Agora vá dormir! Precisa que eu cante para você também?

Ela riu, contudo, deu de ombros e disse:

— Não faria mal, né? Desde que ninguém fique sabendo.

Comecei a cantarolar baixinho, sentada ao pé da cama. Olivia se ajeitou como queria no meio dos travesseiros e fechou os olhos, levou mais tempo que Elena, mas logo ela dormiu. Cobri-a direito com os edredons, e dei um beijo em sua testa. Sai apagando as luzes e ela nem se mexeu. Quando fechei a porta, escorei minha cabeça e murmurei:

— Desculpe por mentir para você, Liv. Essa é uma das mentiras necessárias que temos que contar de vez em quando.

Assim que me virei, vi Alex parado no alto da escada.

— Que mentira você contou para Liv?

— Que estávamos todos em segurança e que eu contaria se algo mudasse durante o julgamento. Sinto-me péssima. – Abracei meu noivo, que me abraçou de volta e me guiou escada abaixo, direto para o escritório de meu pai, onde ele nos esperava.

Essa era outra conversa que não seria agradável.

 

[1] Por favor.

[2] Tia, em finlandês.

[3] Tio, em finlandês

[4] Obrigada, tio.

[5] Oi, pai! Boa noite!

[6] Oi, filha!

[7] mãe

[8] Boa noite, tia.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bem... é só isso tudo.
Obrigada a todos que estão lendo e acompanhando!
Semana que vem tem mais.
Até lá!
xoxo



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Presos Por Um Olhar" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.