Uma Hora a Mais escrita por André Tornado


Capítulo 3
Um encontro especial numa ilha




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De noite, a sua casa entrava em modo furtivo. O sossego instalava-se, o barulho cessava, ativava-se o modo de suspensão de energia e era quando ele tinha uns minutos para si, sem outras exigências ou pendências. As crianças estavam na cama, a sua mulher estava distraída com um livro ou com um filme, e ele tinha permissão para fazer o que bem entendesse durante uma hora ou assim.

Precisava daqueles minutos de solidão. Para recarregar baterias, ao mesmo tempo que limpava o sistema de resíduos e deixava-o preparado para um bom sono, para que pudesse recomeçar na manhã seguinte. Nem sempre funcionava, nem sempre dormia bem, mas na maior parte dos casos a tranquilidade noturna acalmava-o.

Naquela noite o silêncio era absoluto e Mike sentia-se a flutuar num oceano morno. Estava no estúdio, com as luzes baixas, apenas com um candeeiro aceso junto à sua mesa. Concentrava-se no monitor e no comando que tinha entre as mãos, enquanto brincava no computador que se ligava à sua consola Nintendo Switch, com o cérebro completamente vazio. Todos os seus neurónios enviavam estímulos nervosos relacionados com o jogo, que o faziam agir e reagir conforme aquilo que se desenrolava no ecrã e que os seus dedos manipulavam com a destreza alcançada por muitas horas de jogatina com os seus companheiros e amigos. Quando andava em digressão com os Linkin Park, uma das principais distrações era, precisamente, jogar numa consola.

O jogo que o distraía daquela forma tão completa era o Animal Crossing, na sua versão mais recente que saíra em março de 2020 e que se chamava New Horizons. O jogador operava virtualmente um personagem que podia ser totalmente personalizado com uma série de atributos, vestimentas e acessórios. Começava-se por adquirir um pacote a um outro personagem chamado Tom Nook, um guaxinim japonês que era um clássico daquele jogo, e depois seguir para uma ilha para decorar conforme o gosto pessoal de cada jogador. A ilha passava a ser propriedade privada desse jogador que podia ser explorada e urbanizada, desenvolvendo nesse local uma comunidade de animais antropomórficos. As atividades incluíam construir e reunir objetos, apanhar insetos e pescar, tornar a ilha apelativa a outros jogadores. Animal Crossing era um simulador não-linear, jogado em tempo real, que comportava um máximo de quatro jogadores locais, ou oito online que se podiam reunir na mesma ilha.

Mike passara algumas noites, pacientemente, a construir a sua ilha, seguindo as instruções dadas pelas pistas que iam surgindo no ecrã. Encheu-a de recintos, de casas e de jardins, inventando elementos arquitetónicos arrojados. Numa primeira fase, ele teve de reunir materiais que convertia, depois, em ferramentas e mobiliário. Numa fase mais avançada, cumpria pequenos desafios para ganhar milhas Nook que podiam ser trocadas por objetos especiais que tornavam a sua ilha exclusiva.

A Anna e o seu filho Otis também tinham a sua ilha e era bastante divertido quando marcavam encontros para irem visitar as ilhas uns dos outros. Havia troca de presentes, momentos de lazer e atividades que ajudavam os jogadores a melhorar as suas casas e a sua pontuação global, num intercâmbio virtual.

Começou a pensar em mostrar-se a jogar Animal Crossing e fê-lo, uma vez, no seu canal do Twitch. Era de noite, nem todos os seus seguidores habituais assistiram à live em que ele estava apenas a relaxar e a jogar, era demasiado cedo para os europeus por exemplo, mas quem conseguiu apanhá-lo gostou da novidade e passou a palavra. Pouco depois, Mike incluiu no canal a possibilidade de se comprar uma visita à sua ilha, em troca de uma quantia avultada de shinodabucks, e já tinha tido alguns seguidores que alinharam na brincadeira. Aconteceram visitas e os frequentadores do chat encantaram-se com mais essa maneira de interagir com ele.

Naquela noite, contudo, Mike tinha a live desligada. Era uma noite só para si, que nascia daquela necessidade incontornável de ser egoísta, de tempos a tempos. Não queria ninguém ao seu lado, nem a partilhar o seu espaço virtual. Ele na sua ilha, a organizar o espaço, a cuidar dos pormenores, sem outros à volta a exigir e a perguntar. Chegava a ser cansativo, embora ele definisse muito bem os limites onde se movia quando era figura pública e quando era uma pessoa vulgar. Sim, ele conseguia distinguir as duas facetas da sua personalidade, com o método afinado de um ator cuidadoso.

Estava a plantar flores em canteiros que tinha aberto na vertente ajardinada da sua ilha. Estivera algum tempo a decidir-se o que fazer ali. Tinha experimentado catos que não o deixaram totalmente satisfeito e arrancara-os todos. Agora queria flores e estava a tentar desenhar um padrão geométrico seguindo uma paleta mais ou menos organizada de cores. Era fundamental que a aparência fosse harmoniosa e agradável à vista. Ganhava pontos extra, mais milhas Nook, mais objetos especiais, num ciclo que se autoalimentava a partir de um sistema de mérito e recompensas que levavam a novas conquistas.

— Não sei quanto a ti… mas começo a ter uma certa fome.

Gritou com o susto e lançou o comando ao ar. Este descreveu uma pirueta e só não caiu no chão, porque estava preso pelo cabo que o ligava à consola. Ficou a balançar no limite da mesa. Passou as mãos pelo rosto e gemeu.

— Chester…

— O que é que tens por aí que se coma? Ei, o que estás a fazer? Que jogo é esse?

Levantou-se da cadeira e voltou-se num movimento rápido para ver se assim deixava de o ver. Mas não aconteceu como previra. O amigo estava ali, mais uma vez. E quando ele aparecia, era para ficar e não se deixava afetar pela deslocação do ar, como devia acontecer a uma aparição, que era incorpórea, maleável e transparente.

— Tens fome? – perguntou num falso tom casual. A verdade era que forçara as palavras e a garganta doeu-lhe. Tossiu para o punho que encostou à boca.

— Hum… sim, tenho aqui um bichinho – admitiu Chester, hesitante. – Não preciso de nada elaborado, deve ser tarde, não é? É de noite e está tudo tão quieto… Silencioso. Não tens medo de ver as árvores a balançar com o vento, através daquelas janelas enormes? Eu tenho. Sinto-me… desprotegido. O teu estúdio antigo, sabes…

— Eu sei que preferias o meu estúdio antigo. Quanto às janelas, já encomendei umas cortinas para as tapar. Primeiro, para cortar a luminosidade que bate diretamente no monitor e cansa-me os olhos. Depois, por causa dos jardineiros que passam por ali durante o seu trabalho e não quero olhares indiscretos sobre o que estou a fazer.

— Os jardineiros passam por ali? – Chester acercou-se da grande vidraça, mãos na cintura e cotovelos espetados. Dobrou ligeiramente as costas enquanto escrutinava a escuridão do exterior a uma distância cautelosa. Ele teria medo da noite, do escuro ou do espaço? – Existe uma passagem ali? Um caminho?

— Na realidade… não. Mas é um atalho para darem a volta à casa e de vez em quando utilizam-no. A Anna já avisou o supervisor, mas esquecem-se das recomendações que lhes fazem e dos nossos pedidos. Sabes como é… quando existe uma via mais fácil, não se complica. Queres comer… podem ser cereais? Leite? Uma sandes… ou…

Chester voltou costas às grandes janelas e assentiu.

— Pode ser uma sandes de tomate, queijo e maionese. Espera… estou a ser demasiado exigente? Eu vou contigo até à cozinha. Dizes-me onde estão as coisas e eu faço a sandes.

— Dantes mexias no meu frigorífico à vontade. Não te acanhes agora, por favor.

— Dantes? Houve alguma coisa que aconteceu que…?

— Não, não – apressou-se Mike a emendar. Apanhou o comando que balançava como um pêndulo e aquele movimento estava a irritá-lo. Pousou-o na mesa e ficou cabisbaixo, a tentar encaixar-se no cenário. Era sempre assim quando o Chester aparecia… Nunca era simples, havia um processo que ele tinha de cumprir, etapa a etapa, para conseguir aceitar aquilo de ânimo leve e com naturalidade.

— De certeza que não te estou a incomodar, Mike?

— Diz-me tu…

— O que é que estavas a fazer? Que jogo é esse?

Animal Crossing… uma nova versão que saiu este ano, em março. – Recordou-se da data exata e os seus nervos tangeram. Não conseguiu levantar a cabeça e encarar o amigo. – Foi a… foi no dia vinte.

— No dia do meu aniversário? Ah! – Chester exclamou, feliz. – Então, esse jogo é quase como um presente para mim! Como é que eu não sabia disso? Tenho andado distraído… Há coisas que tu me dizes que não fazem muito sentido. Como este estúdio novo. Como as tuas canções mais recentes. Como essa tua nova carreira de youtuber.

— Chester, vamos comer – cortou Mike. Colocou o jogo em pausa.

— Também tens fome?

— Posso fazer-te companhia.

— E como é que se joga? Estavas tão concentrado que nem te quis interromper antes, mas o meu estômago tem menos paciência do que eu. Fiquei interessado… no jogo.

— Eu explico-te enquanto fazes a sandes.

— Então… posso mexer no teu frigorífico sem correr o risco de te estar a incomodar?

— Tu nunca incomodas, Chester.

— Obrigado, Mike. E a Anna?

— Já se foi deitar… ou melhor, está no quarto a ler. Eu disse que já ia ter com ela. Tenho… temos alguns minutos.

Chester contraiu-se. Mike reparou.

— O que foi, buddy? – perguntou-lhe num sussurro. Já tinham subido as escadas e era a primeira vez que o Chester estava fora do estúdio. Ele não queria alertar a mulher para o que se estava a passar na sua própria casa e falou baixinho. A Anna não se importaria nada com aquilo, de certeza, ela sempre gostara de temas místicos e estudava questões esotéricas, relacionadas com religiões e outras crenças, mais ou menos ortodoxas, mas Mike continuava cioso daquele segredo.

— Acho que tenho de passar a noite aqui. A Talinda… ela continua zangada. Não me quer ouvir, não fala comigo.

— Não há qualquer problema. Claro que podes passar a noite na minha casa.

Era quase uma redundância, pois parecia efetivamente que o Chester passava as noites e os dias ali. Quando não se mostrava, ou melhor quando ele não o via, devia continuar algures, num plano que o fazia invisível e indetetável, mas sempre naquela casa, a orbitar à volta da sua presença. Até quando ele fazia amor com a Anna? O pensamento causou-lhe uma certa repulsa. Olhou Chester de lado e ele captou esse olhar estranho.

— O que foi? Estas a reconsiderar a tua oferta?

Mike negou enfaticamente, mexendo as mãos:

— Não, não… Estava a pensar noutra coisa. Que pena que não consigas ler mentes…

— O quê? Ler mentes? Foi isso que disseste?

— Estou a falar demais, é do cansaço…

— E da fome?

— Sim, e da fome.

Mike abriu o frigorífico e indicou os recipientes e as embalagens que podiam servir para que o Chester fizesse a sandes como lhe estava a apetecer. Tomate, maionese, queijo, até pepino em conserva e talvez salame italiano. Foi buscar pratos e o pão embalado, enquanto Chester dispunha os ingredientes sobre uma tábua e agarrava numa faca para cortar o que fosse preciso. Mike disse-lhe que iria beber um copo de leite gelado e comer umas bolachas. Chester chamou-lhe guloso e ele revirou os olhos. Alisou a barriga e disse-lhe que continuava magro. O amigo observou-o melhor e concordou, ele estava mais magro. Não se lembrava de quanto tinha ele emagrecido.

— Aconteceram umas coisas… – respondeu Mike, evasivo.

Depois sentou-se à mesa, com o seu copo branco e um boião de vidro cheio de bolachas decoradas com pepitas de chocolate. Abriu o boião e retirou uma que molhou no leite. Chester sentou-se ao seu lado, com uma sandes de quatro andares no centro do prato, um guardanapo de papel por debaixo. Levantou-se e foi buscar um copo para si que encheu de água mineral gaseificada. Fechou a porta do frigorífico com o pé, num gesto casual que era típico nele.

— Conta-me lá então como se joga àquilo, Mike.

— Hum… claro – concordou Mike, mastigando rapidamente a bolacha. – É assim…

Fez um relato breve e conciso sobre o funcionamento da ilha, os objetivos do jogo, os personagens, a possibilidade de jogar em modo interativo com outros jogadores em rede. Chester apreciou especialmente essa última funcionalidade, que ele mencionou num tom de rodapé, mas que o amigo resolveu realçar com um entusiasmo infantil, também típico nele.

— Podemos visitar as ilhas de outros jogadores? – perguntou.

— Eh… sim. A Anna já visitou a minha ilha e eu a dela.

— Espetacular!  Se eu tivesse a minha ilha… também te podia visitar. É assim que funciona, certo?

Mike esboçou um sorriso enviesado, com o costumeiro pânico a enregelar-lhe o sangue. Nunca conseguia saber exatamente se estava a proceder bem, de uma maneira racional e responsável, naquela situação, não era capaz de defender as suas ações como as mais corretas no presente caso se tivesse de se justificar. Devia, ou não, alimentar as ilusões? As dele e as do Chester.

— Queres ter a tua ilha no Animal Crossing? – perguntou.

— Sim, claro! Empresta-me uma Switch e vou já começar a tratar disso – anunciou Chester, limpando os dedos no guardanapo. Acabava de comer a sandes com um apetite bastante voraz para alguém na sua condição.

— Não posso! – Mike mordeu a língua assim que lançou a negativa.

— Não podes porquê? Basta uma consola, não é assim?

— Sim… cada utilizador tem a sua própria ilha. Eu tenho a minha, a Anna tem a dela, o Otis tem a dele. Se te empresto qualquer uma dessas Switch, vais usar as ilhas que estão associadas a esses jogadores e parece-me que queres criar uma ilha só tua.

— Pois é… – Chester pôs-se a pensar, a olhar para o teto com um ar tão concentrado que dir-se-ia estar a resolver um complexo problema matemático. – E as tuas filhas? Elas também têm a sua consola… Posso usar o utilizador delas. Ou elas também têm uma ilha? Nesse caso, vamos piratear códigos na internet. Quero ter a minha ilha – sentenciou, teimoso. Fechou uma mão e bateu-a ao de leve na mesa para impor a sua posição.

— Eh… Sim, elas têm a sua Switch e…

— Então, está resolvido! – Chester deu-lhe um soco amigável no braço, levantou-se e foi até à pia lavar o prato e o copo, que colocou no escorredor, depois de lhes passar um pano para retirar o excesso de água. – Vamos, Mike?

Mike continuava sentado, a comer as suas bolachas e a beber o seu leite frio.

— Vamos onde?

— Tratar da minha ilha! Quero começar o quanto antes. Estou entusiasmado com a ideia! Personalizar um cantinho e construí-lo conforme o que vou inventando.

— Nota-se…

— Ah, para de ser um desmancha-prazeres. És um chato, Shinoda. Sempre que quero fazer alguma coisa, vens com alguma objeção e uma qualquer lição ridícula sobre preceitos e cautela. Continuas a ser um chato, passados todos estes anos – e cruzou os braços, amuado.

Mike guardou o pote das bolachas, foi lavar o seu copo que passou por água e deixou no escorredor sem o limpar com o pano. Imitou-o e também cruzou os braços, encostando-se à bancada.

— Sou um desmancha-prazeres.

— E um egoísta – acrescentou Chester com uma fungadela. – Queres ficar com a diversão só para ti.

— Não se trata disso e tu sabe-lo. É só… por uma questão prática.

— Qual questão prática? Se não me arranjas uma das consolas das tuas filhas, vamos buscar códigos à net, já disse, e…

— Não vou piratear nada, Chester. Tenho um canal em que me mostro ao mundo todos os dias e em que sou obrigado a seguir uma série de cláusulas sobre direitos de autor. Até estou com dificuldades em publicar as músicas que tenho estado a fazer nas lives, existem uma série de complicações jurídicas que a Ana está a tratar, neste momento.

— E o que é que o meu jogo tem a ver contigo e com o teu canal? – insurgiu-se Chester. – Achas que alguém vai investigar o teu computador para verificar se foram feitos downloads ilegais e por causa do teu canal ficas duplamente fodido? Explica-me lá isso melhor! Dá-me um portátil e eu jogo no portátil.

Mike ficou a respirar lentamente, a sua caixa torácica enchendo-se e vazando-se de ar, em inspirações e expirações profundas. Estaria a ser picuinhas e excessivo naquela questão? Bem, se lhe viessem perguntar quem tinha feito aquilo e ele respondesse que fora o Chester, ou riam-se na sua cara, ou internavam-no num hospital psiquiátrico. As sanções seriam todas relacionadas com a sua reputação. Podia arriscar. Continuava a fazê-lo ao deixar-se envolver naqueles momentos em que estava com o Chester… ou que fingia estar com o Chester. Ainda não tinha resolvido exatamente o que aquilo era.

— Anda lá. Não vou perder nada, no fundo.

Regressaram ao estúdio. Ligou a consola de uma das filhas a um portátil, ensinou o básico ao amigo e deixou-o a navegar pelo jogo sozinho. Ele que fizesse o seu caminho depois da introdução. Mike estava curioso em relação ao que iria acontecer – seria mesmo possível que uma ilha fosse criada no Animal Crossing pela mão, engenho e imaginação do Chester?

Sentado na sua cadeira, retomou o seu jogo e a organização do jardim. Mas os suspiros, os resmungos e os gritinhos do amigo distraíam-no de tal maneira que ele fazia e refazia a plantação das flores coloridas e não saía do mesmo lugar.

O seu telemóvel acendeu-se. A mulher enviava-lhe uma mensagem marota, desde o quarto deles, dizendo que precisava que ele lhe fizesse um exame importante a uma parte específica do corpo, estava a sentir uma dor e precisava urgentemente de alívio… Mike corou com a sugestão implícita nas palavras da Anna e corou mais ainda ao dar-se conta que o Mike pequenino tinha despertado.

Fechou o jogo e pousou o comando na mesa. Enfiou os dedos no cabelo, repuxou a franja para cima. Precisava de o cortar outra vez. Ao voltar-se, encontrou o Chester sentado no sofá, o portátil no colo, a consola ao lado, focado no jogo. Os ecrãs coloridos refletiam-se nas lentes dos seus óculos.

— Chester? Eu vou… deitar-me. A Anna está a chamar-me.

— Hum-hum. Vou ficar mais um pouco. – Lembrou-se do inconveniente daquela afirmação e, aflito, encarou-o. – Posso ficar?

— Claro que podes ficar.

Deixou-lhe um cobertor e duas almofadas. Chester continuava frenético a criar a sua ilha e Mike não o interrompeu mais. Com um pé no primeiro degrau das escadas, a sair do estúdio, olhou para trás e Chester continuava lá, dobrado sobre o portátil, no mesmo registo de suspiros, resmungos e gritinhos. Fechou os olhos, abriu-os e o Chester mantinha-se ali.

Foi para o quarto, fez o exame à Anna que não detetou qualquer problema assinalável, amou-a e depois dormiu mal, às voltas, cheio de calor e com dores nas costas, apreensivo porque tinha deixado o Chester no estúdio e ele ali, na brincadeira com a mulher.

Na manhã seguinte, um pouco antes das nove, correu para o estúdio e já não o encontrou. Claro que não, o que esperava ele? Eram tudo sonhos e fantasias e encontros breves que deslizavam da sua mente para a realidade. O portátil e a consola estavam no sofá e ele arrumou-os. Não encontrou o cobertor ou as almofadas.

Procurou pela ilha do Chester, mas não a descobriu, obviamente, no meio dos milhares de ilhas que existiam pelo mundo fora no Animal Crossing. Não sabia o nome, nem tinha o código de acesso. Esqueceu isso. Não existia ilha nenhuma.

Dois minutos antes de entrar ao vivo no seu canal, sentiu um toque no ombro. Um par de dedos que o picaram três vezes. Voltou-se e gritou alto.

— Porra, Mike. Sempre que me vês, gritas. Andas demasiado distraído. Ou preocupado. É alguma coisa que te preocupa?

Pousou uma mão no coração que batia a mil à hora. Conciliou a respiração e disse:

— Não, Chester. Não tenho nenhuma preocupação para além das normais. Estou quase a ir para a live… diz-me o que queres.

— Quero comprar-te uma visita à minha ilha. Ontem à noite contaste-me que os teus seguidores trocam aquelas moedinhas que ganham no teu canal…

— Os shinodabucks.

— Isso, os shinodabucks.

— Já terminaste a ilha?

O sorriso do Chester iluminou-lhe amplamente o rosto.

— Sim! E quero mostrar-te a minha ilha.

— Não é preciso que me compres a visita. Somos amigos e podemos trocar os nossos códigos de acesso sem que exista alguma contrapartida, ora essa… Fiz essa brincadeira com os seguidores do meu canal pois, por vontade deles, eu tinha de estar disponível para tudo o que eles querem de mim. Uma forma de os fidelizar e de me darem uma folga. Se não comprassem a visita, se fosse só pedir, tinha mais de cem visitas para fazer nesse jogo e não fazia mais nada.

— Eles gostam muito de ti, os teus hamsters.

— São wombats, Chester.

— É tudo a mesma coisa. Hamsters e wombats. Roedores peludos. Mas eu quero comprar-te a visita.

— Tinhas de seguir o meu canal – explicou Mike, a olhar para cima, crispando levemente a testa. Ele estava sentado e o amigo estava de pé. – Tinhas de ter juntado três mil e quinhentos shinodabucks. Pelos meus cálculos consegues juntar essa quantia num espaço de dois meses, mais coisa, menos coisa.

— Eu estou a seguir o teu canal.

O coração, que antes lhe batia a mil à hora, parou. Desatou a suar frio.

— O que dizes?

— Estou a seguir o teu canal, Mike. E já consegui juntar os três mil e quinhentos pontos, mais um punhado. Não sei ao certo quanto tenho, mas já dá para comprar a visita… queria dizer-te isso antes, para saberes que sou eu. – Piscou-lhe o olho.

— Quem és tu? Como é que te chamas… no Twitch? Nunca dei por nada… E estás no canal, a seguir-me… há mais de dois meses? Como é que fizeste isso, se só ontem à noite… entraste no jogo e montaste a tua ilha? Estás a seguir-me… a partir de onde? Computador ou telemóvel?

Chester coçou o cabelo, semicerrou as pálpebras.

— Isso não sei. O tempo para mim anda muito estranho. Continuo com lapsos de memória e os dias andam muito baralhados cá dentro. Já pensei que pode ser da medicação, mas também não sei que medicamentos ando a tomar… E para te responder, Mike… em relação ao Twitch.

Inclinou-se e segredou-lhe o seu nome de utilizador. Mike sentiu um arrepio debilitante a tolher-lhe os músculos que ficaram rígidos só com a aproximação maviosa do Chester. O cheiro era cada vez mais pronunciado, a tepidez da pele, o leve sussurrar da presença. A mentira tornava-se gradualmente mais envolvente e ele perdia-se nesse caminho esquisito que era agradável e perigoso. Podia não conseguir inverter os passos e deixar-se ficar eternamente nesse engano doce e confortável, caminhando de encontro a um fim…

Pestanejou para se obrigar a reagir.

— Esse… és tu?

— Sim, Mike.

— Então… então… – humedeceu os lábios. – Se já tens os pontos, compra-me a visita… – completou com um desânimo que contrastou com a sua euforia prévia e sentiu-se repuxado por essa dualidade de sensações. – Vais fazê-lo hoje?

— Sim, hoje. Vou comprar-te a visita hoje e depois tens de agendar isso, para eu estar preparado. O combinado é fazeres a visita à minha ilha… ao vivo, no teu canal, como fazes com os outros. Não aceito um tratamento diferente.

— Chester… acho que não posso.

— Porquê? Ninguém sabe que sou eu. Vamos enganá-los a todos e vai ser muito divertido!

— Mas eu sei que és tu e como vou eu agir, se sei que do outro lado… Ei, lembrei-me de um detalhe técnico. Tu vais ter de estar online comigo, ao mesmo tempo. Como é que pensas fazer isso?

Viu a mão do amigo estendida.

— Esse é o combinado. Vais visitar a minha ilha e será no teu canal do Twitch, para toda a gente ver. À hora que quiseres. De noite, de manhã.

Apertou-lhe a mão, selando assim o compromisso, e com aquele toque derreteu-se e reconstruiu-se. Pediu-lhe licença, já estava atrasado para começar a live e sempre que ele se atrasava tinha depois de se explicar aos seus wombats porque havia quem esperasse por ele, no chat, minutos antes da hora que ele definira para começar. Chester ficou pensativo e depois disse:

— Gostam muito de ti, Mike.

Nas duas horas que se seguiram, Mike concentrou-se na live e fez mais uma música. Acreditava que o Chester se teria ido embora, que já não estava no estúdio, e fez por olvidar essa preocupação, eliminando a impressão da presença dele nas suas costas. No fim da sessão conferiu os pedidos dos utilizadores um pouco nervoso e lá estava o do Chester. Tentou soar natural e levar a questão normalmente, mas as suas mãos tremiam e tinha a ponta dos dedos dormente. Sorriu ao despedir-se.

Com a câmara desligada, retirou os auscultadores. Apoiou os cotovelos na mesa, esfregou a cara demoradamente, procurando acalmar-se. Tinha como que a alma transviada, dividida em duas, uma metade ali com ele, a outra metade a buscar incessantemente pelo contacto com o amigo, numa sofreguidão que começava a afetar os seus ritmos biológicos. Bocejou cansado e recordou-se que dormira mal.

O resto do dia correu bem, porque ele bloqueou a metade pecadora da sua alma, aquela que queria rasgar com a sanidade, as convenções e a realidade, que queria procurar todos os cantos da sua casa para saber onde o Chester se escondia, porque nalgum lado ele deveria estar naquelas pausas em que eles não se cruzavam. Achava que ele não tivesse regressado à casa onde visitava a Talinda, ou visitado outros lugares, como o estúdio onde trabalhavam com a banda, ou algum palco do qual sentisse uma especial falta, agarrado a memórias únicas. A base do Chester era ali, já tinha determinado e aceitou esse facto.

E era assim que Mike conseguia manter alguma sensatez e até indiferença enquanto geria as suas opções no centro do vendaval que o ameaçava derrubar. Mitigava a ansiedade, disfarçava a excitação, procurava aceitar aquilo com a mente totalmente aberta.

Noutra das suas lives, marcou as visitas às ilhas dos seus seguidores e enfiou a do Chester pelo meio, colocando-a no mesmo patamar que as demais. Confirmou através do sistema de sussurros, que permitia a troca direta de mensagens com os utilizadores do Twitch, que o Chester estava disponível para fazer a visita àquela hora e naquele dia que ele agendara. Nem queria saber como. Algures, num recanto misterioso, o Chester conseguia acesso à rede, tinha possibilidade de aceder à rede… e usava a sua identificação de jogador de uma Nintendo Switch.

E a visita aconteceu, de uma forma fluida, depois de duas outras. O dia estava reservado integralmente para visitas a ilhas no Animal Crossing e iriam acontecer cinco. Quando ele mencionou o nome do utilizador e fingiu chamá-lo no chat, lutava para que a sua voz não falhasse, estremecia num estado febril e arfava sem fôlego. Portou-se o melhor que conseguiu e o Chester guiou-o através da sua ilha, feliz, irrequieto e simpático.

O local preparado pelo amigo enterneceu-o e a comoção aflorava sempre que ele comentava o que mais o impressionava, durante a visita guiada. A sala dedicada à música, o pequeno coreto onde os dois fingiram que cantaram juntos, as árvores cor-de-rosa feitas de algodão doce e a baía dos piratas onde podiam lutar com espadas de madeira. Havia arco-íris e unicórnios e chupa-chupas, e Mike tinha uma vontade imensa de chorar. No entanto, ele nunca chorava e as lágrimas acumularam-se todas dentro dele, inchando-lhe a alma de tristeza e de gratidão.

No fim trocaram presentes. O Chester deu-lhe o microfone com o qual tinham cantado, no espetáculo virtual. Podia-se ver, se se olhasse com muita atenção, a pequena faixa amarela, igual àquela que ornamentava o microfone que o Chester usava nos concertos. Mike fez-lhe um desenho no mural. O Boris, a meia fantoche que aparecera pela primeira vez no vídeo da sua canção ‘Ghosts’.

Realizou as duas últimas visitas do dia e foi excelente ter visitado a ilha do Chester no meio da sessão. Assim pôde libertar-se da tensão daquele momento em que mentia e era o mais honesto que alguma vez fora durante as suas lives, numa ambiguidade deliberada que ele não controlava inteiramente. No final da sessão, câmaras desligadas, levantou-se aflito da cadeira e chamou pelo amigo.

Estava sozinho no estúdio.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Existem tantas maneiras de disfarçar.