Uma Hora a Mais escrita por André Tornado


Capítulo 2
Continuando através dos dias




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A sua carreira de streamer estava de vento em popa e Mike orgulhava-se de ter criado aquele momento para si e para os seus fãs. Três horas de distração, que incluíam música, conversa, um chat imparável, desenhos, jogos, uma sessão de perguntas e muito improviso. Aos poucos foi deixando as outras redes sociais e concentrava-se apenas em fazer as transmissões ao vivo no YouTube e no Twitch, mas já vinha avisando, há alguns dias, que em breve iria dedicar-se exclusivamente à última plataforma. Estivera a analisar as condições que lhe apresentaram para o exclusivo e ele gostara do que ganhava em retorno do seu tempo e do seu engenho. Em abono da verdade, a maioria dos seus seguidores mais fiéis já se encontravam no Twitch, por causa do sistema de pontos que se chamavam shinodabucks e que podiam ser trocados por perguntas, pedidos de desenhos ou escolher o tema do próximo jam de música, e todos os dias juntavam-se mais seguidores, vindos de outras plataformas.

 Mike sabia que o principal atrativo daquelas lives era a possibilidade que os fãs tinham de interagir consigo, quer através da janela de chat, quer através das perguntas no final da sessão, que ele escolhia de um lote que lhe colocavam todos os dias e que ele ia acumulando, pois nunca conseguia manter-se a par dos pedidos. Eram sempre tantos! Para fidelizar os espetadores do seu canal e da sua live, existiam jogos de azar e também uns pequenos cofres cor-de-laranja que apareciam de vinte em vinte minutos, para um número aleatório de utilizadores e que, uma vez apanhados, aumentavam os pontos desses utilizadores.

De vez em quando, no meio de uma música em que ele trabalhava, ou no meio de um desenho, aparecia um desses cofres e o chat, num sentido ínvio de entreajuda, desatava a gritar “CHEST!”, ou também, que ele já tinha apanhado essa pequena provocação inocente “CHESTer!”, ou mesmo “CHESTER!” com todas as letras.

Sorria para si mesmo, com aquela pequeno incómodo que o alfinetava de vez em quando: estariam ali a seguir o seu trabalho na live por causa dele e do que ele era capaz de produzir durante três horas ociosas, por causa dos Linkin Park e de tudo o que a banda significava, ou por causa do Chester? A avaliar pelas perguntas que lhe colocavam, a primeira razão eram os Linkin Park e a segunda era o Chester. Ele viria em último. Os seus seguidores acabariam por negá-lo se ele lhes apontasse essa tabela de preferências.

Mike nem tinha razões de queixa. Interagia diariamente, menos aos fins-de-semana, com um grupo heterogéneo e até bastante simpático. E ele, que algumas vezes tivera de pôr ordem no recinto e chamá-los à atenção de que o canal era dele e era ele que mandava ali, gostava bastante desse grupo e sabia que podia contar com alguns elementos para moderarem o tom do discurso no chat e na abordagem uns com os outros. Sentia-se muito orgulhoso deles, até tinham uma designação própria. Os seus seguidores eram os wombats. Não se lembrava exatamente como tinha surgido aquele apodo, pois um wombat era um roedor australiano que só existia nesse lado do mundo, mas achou-lhe piada e fez para que fosse aceite, encorajando toda a gente a usá-lo. Também aceitou que, carinhosamente, fosse tratado por Miik, quando um dos seguidores se enganou a escrever o seu nome numa pergunta.

Então, durante aquelas três horas, que começavam às dez da manhã, ele era o Miik com os seus wombats. Haveriam de escrever histórias sobre isso, anos mais tarde…

Colocava os auscultadores na cabeça, sobre o boné que lhe ocultava a cabeleira hirsuta e escura, pois durante a pandemia cortar o cabelo tornou-se um problema complicado e ele tentava ocultar as tristes aparadelas que o Otis lhe tinha feito, embora ele tivesse adorado o trabalho de barbeiro amador do filho, fora um momento muito interessante e único entre os dois, ligava o microfone e estava no sítio onde ele se entretinha e se esquecia do que acontecia no mundo exterior, que estava cada vez mais enlouquecido, fútil, perigoso e estúpido. Ele ainda não tinha perdido a fé na Humanidade, mas por vezes tornava-se difícil não entrar num estado de agastamento e de exaustão.

Naquele dia tentava abrir um caminho coerente pelo meio de sugestões de sons e de estilos musicais que os fãs lhe tinham indicado através do resgate dos shinodabucks que tinham pacientemente acumulado nas contas pessoais do Twitch que seguiam o seu canal, OfficialMikeShinoda. Ele apontava os pedidos em folhas de um pequeno bloco de notas, enfiava tudo numa malga à qual chamara Bowl of Destiny, a Tigela do Destino, e no dia anterior tirava à sorte um papelinho, ou mais do que um, e resolvia misturar tudo o melhor que conseguisse. Antes de entrar ao vivo, fazia uma breve pesquisa sobre as músicas que lhe podiam inspirar e depois entregava-se nas mãos dos fãs, das Musas e da sua paciência.

Estava tão distraído com o som que lhe enchia os auscultadores com uma barreira de batidas e de ciclos repetitivos de alguns samples, que não se apercebeu do que acontecia nas suas costas, mais precisamente no sofá.

Os auscultadores não lhe cobriam totalmente o sentido da audição, mas se ele estivesse imerso no seu mundo musical, o resto deixava de existir. Por isso, só se apercebeu quando uma ténue sombra se alongou ao seu lado esquerdo. Levantou a cabeça sobressaltado e o seu coração parou.

Ensonado, Chester esfregava os olhos, com os óculos graduados na testa.

— Acho que me deixei dormir… desculpa, Mike.

A sua primeira reação foi tapar o microfone com as duas mãos. Pôs-se de pé, de seguida, empurrando a cadeira de rodízios com as pernas, baixou-se e pediu um minuto aos seus seguidores. Tirou os auscultadores e verificou, numa análise rápida, que o Chester estava fora do enquadramento da câmara. Não o tinham visto, ou se apanharam alguma imagem fora apenas uma nesga da roupa. Uma camisa azul aos quadrados, umas calças verdes de ganga. O tecido bastante amarfanhado e cheio de vincos.

Empurrou-o para saírem do alcance do microfone.

— O que é que fazes aqui? – perguntou-lhe, tenso.

— Estava a dormir e acordei… Porque é que me deixaste dormir no teu sofá? Sabes que eu tinha de voltar para casa.

— Chester, estou no meio da live.

— Qual live? Ah, aquela coisa com os fãs… não quero atrapalhar-te, é melhor ir-me embora. Estou a dormir desde quando? Sei que cheguei aqui de madrugada e tu disseste-me que ias preparar-me uma cama, no quarto de hóspedes, mas agora acordo aqui… Devo ter caído para cima do sofá e fiquei. Estava bêbado? Não me lembro de ter bebido… Foi só meia cerveja. Duas meias cervejas.

— Eu disse… tudo isso?  Não, acho que não tinhas bebido. E duas meias cervejas não causam mossa… acho eu. Causam? Como tens andado a cortar no álcool… Quero dizer, andavas a cortar no álcool. Mas por que motivo eu insisto na conversa? – resmungou.

— Mike, que horas são?

— São… Passa das onze da manhã.

— Porra, está tarde. Vou-me embora. Estás aí nessa live

— Não, espera.

Mike voltou para a cadeira, recolocou os auscultadores. O chat estava inundado de piadas que começavam com ‘booty up’ e terminavam com ‘booty down’, uma alusão a quando ele tirava e sentava o cu na cadeira. Adoravam que ele fizesse isso e depois levavam a provocá-lo, a ver se ele lhes respondia.

— Amigos, tenho de me ausentar. Aconteceu um imprevisto – anunciou. Pelo canto do olho viu o Chester a bocejar e a coçar as costas, com todo o aspeto de que tinha estado a dormir um sono bastante profundo e que despertara de repente. – Hum… que horas são? Faltam dez minutos para o meio-dia. Talvez já não regresse. Continuamos amanhã. Ou talvez entrarei mais tarde, logo vejo… Tenho de verificar a minha agenda. Muito obrigado por terem estado hoje aqui. Estou a gostar bastante deste som que estou a fazer para vocês. Vemo-nos amanhã!

Fechou a ligação. Deixou a faixa a tocar em loop em pano de fundo. Certificou-se que a câmara estava desligada, para salvaguardar… a privacidade do seu estúdio. Em qualquer lugar havia sempre um engraçadinho que se aproveitava de imagens polémicas e as divulgava pela internet sem qualquer remorso ou critério.

Encarou o amigo. Era como no outro dia. Real e consistente. Nesta manhã, porém, havia um leve odor, entre perfume e suor. E ainda o cheiro natural dele, a insinuar-se nas suas narinas.

— Precisava de beber alguma coisa.

Mike espevitou-se.

— Água! Ou café? Tenho os dois… Posso ir buscar-te uma garrafa térmica. A Anna está com as crianças, a ajudá-las com a escola. Ficas aqui?

— Hum… arranja-me um café, por favor.

Foi numa corrida até à cozinha e regressou num pulo. Chester ainda continuava no estúdio, mole e apático, errando no espaço entre o sofá e a sua estação de trabalho, onde ele tinha o computador, os teclados e os misturadores, o equipamento de ligação à rede com as câmaras e os microfones.

Estendeu-lhe a garrafa térmica que estava quente no exterior. Tocou-lhe nos dedos que estavam frios. Arrepiou-se.

— Obrigado, dude.

Chester destapou a garrafa, bebeu diretamente do gargalo. Encolheu-se ao sentir o líquido escaldante passar-lhe pela garganta. Mike deu por si a olhar para o pescoço do amigo, com uma cobiça imprópria, à procura de marcas. Voltou a cabeça, incomodado com a sua morbidez.

— Precisava de um café. – Chester sentou-se no sofá, com a garrafa entre as pernas. – Estava cansado e dormi. Não devia… tenho de voltar para casa. Não devia ter passado aqui a noite, mas eu não consegui… Foram só duas meias cervejas, lembro-me, e estava muito triste. Tenho razão para estar triste, não me venhas com o sermão. Mike?

— Sim, Chester.

Aproximou-se hesitante. No seu outro encontro, Chester tinha-o acusado de não lhe ter dado um abraço. Mas naquela segunda ocasião também não sabia como fazê-lo, porque ele estava de pé e o amigo sentado. Teria de forçar a aproximação. Mas quando firmava essa ideia, sentia os habituais calafrios de aviso, ou de receio, ou de cautela.

— Está um homem com a Talinda. Vi-os os dois juntos… numa casa diferente. Sei que tínhamos vendido a nossa antiga casa, mas não me lembro da mudança, nem me lembro de ter andado a escolher coisas para deitar fora. A Talinda disse-me que tínhamos de fazer umas arrumações. Agora, ela está nessa casa nova, mas há um outro homem que entra em casa à noite, cansado e diz que vai tomar banho. Não fui atrás dele, nem fui tirar satisfações. Fiquei tão furioso!

Mike decidiu-se, então, a sentar-se ao lado de Chester que lhe estava a fazer uma confissão que o deixava apreensivo. A sua viúva, Talinda, tinha voltado a casar no início de 2020 com um homem chamado Michael Friedman e o Chester acabava de descobrir, nesse lamento pungente que lhe torcia a alma toda. Então, a sua mulher tinha-o visto? Mike estava a enervar-se.

— Estiveste com a Talinda? – perguntou-lhe, a arregalar os olhos.

— Estive! – exclamou Chester magoado. – Ela fingiu nem me ver. Perguntei-lhe onde estava o meu telemóvel. Continuo a não saber onde deixei o telemóvel e assim não posso gravar o vídeo para entrar no teu concurso. Rabisquei uma letra numa folha que arranquei de um caderno da Tali, mas ela nem se importou. Porque é que ela não fala comigo? Está zangada e nem sei porquê… Não lhe fiz nada, que eu me lembre. Pensei em comprar-lhe um presente para fazermos as pazes, mas se eu não sei o que lhe fiz, como posso pedir uma desculpa decente? Acho que foi por isso que eu dormi aqui… Estava triste. Vês? Tenho ou não razão para estar triste?

— Ela não falou contigo?

— Não. Fingiu nem me ver – repetiu Chester. Bebeu outro trago do café que já tinha arrefecido e daquela vez não fez nenhuma careta.

— Pode ser que ela não te tenha mesmo visto.

— O que é?

— A Talinda… ela não te viu.

— Mas eu estava mesmo ao lado dela. Não me quis ver. Está zangada e quando fica assim, faz-me isso. Ignora-me. Importaste-te de me receber aqui, nessas condições? Já não tenho idade para dormir fora de casa… A casa da Tali também é minha! Podia dormir no sofá da sala e não no sofá do teu estúdio, mas olha… irritei-me e talvez tenha feito uma tempestade num copo de água.

— Está tudo bem, Chester. Não me importo… que tivesses dormido aqui. Um sofá será sempre um sofá.

Mike quis mencionar o filme O Sexto Sentido, do M. Night Shyamalan, em que o Bruce Willis passava a maior parte da história morto, depois de um assalto à sua casa, a interagir com uma série de pessoas do seu círculo pessoal que não conseguiam vê-lo ou ouvi-lo. A única pessoa que era capaz de perceber a sua presença era um rapazinho que tinha a capacidade de comunicar com o além. Seria uma explicação para o que estava a acontecer, o Chester haveria de entender a analogia, ele gostara muito desse filme.

Mike engoliu em seco. Teria ele criado essas capacidades de intermediário com o outro mundo? Mas por que razão só agora e não desde 2017, quando a ligação podia ser mais estreita?

 – O que achas?

— Não sei o que posso achar disso, Chester. Muito sinceramente. – Suspirou. Retirou o boné e penteou o cabelo com os dedos, tentando dominar os tufos rebeldes e espetados. Absteve-se de falar no filme, seria complicado…

— Que cabelo é esse, dude? O teu barbeiro estava bêbado ou quê, no dia em que foste lá cortar o cabelo?

— Foi o Otis que me cortou o cabelo, há dois dias. Estamos em casa e não saímos há algumas semanas. Os barbeiros também estão fechados. Temos de conseguir fazer as coisas de forma caseira… E eu já não suportava o meu cabelo. Sabes como ele cresce bastante depressa.

Chester fez uma cara esquisita, de incredulidade e de mofa. Riu-se e Mike teve vontade de o apertar, porque sentira uma falta imensa daquele sorriso, daqueles olhos que se estreitavam quando as maçãs do rosto se comprimiam, criando rugas adoráveis no canto das pálpebras. Outra vez a adiar o abraço.

— Para a próxima pedes-me a mim para te cortar o cabelo. Faço-te uma carecada igual à minha e ficas bonito, assim como eu sou.

— Ah, nem penses Chester. Não quero um corte como o teu. O meu cabelo cresce depressa, mas não tenho paciência para esperar dois meses para que ele tenha um volume adequado.

— Afinal, meu caro senhor… queremos o cabelo curto ou comprido? – indagou Chester fazendo um sotaque italiano carregado.

— Queremos o cabelo ao meu gosto – respondeu Mike num sotaque inverosímil entre o espanhol e o russo.

Entreolharam-se na expetativa de continuarem a brincadeira, que era bastante comum entre eles, de criarem personagens com falas desconexas sobre assunto nenhum, mas Chester recuperou a sua anterior tristeza e Mike vacilou.

— Preciso de falar com a Talinda.

— Chester…

Contava-lhe ou não? Mike balançava entre o bom senso que sempre cultivara, e fizera por ser indispensável à sua postura, e a loucura de se achar no estúdio da sua casa, sentado no sofá, ao lado do amigo que perdera havia mais de três anos. E o que é que ele teria para contar que fosse compreensível ou decente?

Precisava da Anna. Ou da Ana. De qualquer uma das suas maravilhosas Anas, mas não chegara a contar à mulher, muito menos à sua assistente, o primeiro encontro com o Chester e porque esquecera, efetivamente, a questão depois de ponderar sobre esta e ter ajuizado que tinha sofrido uma qualquer desvario que ele não era capaz de explicar de uma forma saudável.

E se sucedesse como com a Talinda? Se mais ninguém conseguisse ver o Chester a não ser ele, não havia qualquer problema. O Chester podia andar consigo e ele só tinha de gerir a situação e evitar que o rotulassem de doido varrido por estar a falar para as paredes. Mas podia ser perturbador para o Chester, lembrou-se, pois se o amigo tinha ficado tão perturbado com o aparente desprezo da Talinda, podia ficar ainda mais ofendido com a negligência dos demais. A não ser que ele lhe contasse… lhe dissesse que… e o Chester desconhecia a sua condição? Porventura não saberia que estava do outro lado da vida?

Tantas perguntas e Mike esfregou a testa com os dedos, para prevenir a cefaleia que ameaçava aparecer com toda aquela apoquentação.

— Se eu tivesse o meu telemóvel, ligava-lhe… – aventou Chester pensativo. – Ei, podes emprestar-me o teu telemóvel?

— Eu não tenho o número da tua mulher gravado, Chester. Já tive, mas já não tenho – mentiu, porque continuava a ter o contacto da Talinda na sua lista.

— Ah… E a Anna? A Anna tem de certeza…

Fez menção de se levantar, Mike colocou-lhe uma mão no braço.

— Espera! A Anna… ela está com os miúdos.

— Ótimo! Assim vejo as tuas meninas. Gosto muito de brincar com elas.

— Eu sei – murmurou Mike, emocionado. – Elas também gostam de brincar contigo. Mas não é uma boa altura, agora. Estão em aulas e é como a escola a sério, mesmo que seja através do computador. É preciso estarem atentas e o professor pede-nos silêncio e nada de distrações durante esses momentos. Temos de respeitar

— Hum… certo. – Chester olhou para o computador. A faixa inacabada continuava a tocar, num ciclo infinito. – Estavas a trabalhar naquela música? Parece-me… faz-me lembrar…

— São estilos escolhidos pelos fãs, Chaz. Só faço o mashup usando sons reconhecíveis desses estilos. Uma coisa simples. É só uma brincadeira.

Mike levantou-se e carregou no botão do rato, interrompendo o som. Não adiantou mais explicações. Sentiu vergonha por estar a ocupar o seu tempo naquelas distrações fúteis, sentado confortavelmente atrás de um monitor, protegido da crítica azeda de quem não gostava dele e do seu estilo. Podia arriscar mais e tentar completar canções inéditas para alinhar com ‘Open Door’. Era essa a sua ideia inicial em fevereiro, antes da pandemia e da quarentena. Mas agora descansava confortavelmente no meio de uma profusão de faixas que até tinham o seu mérito, apesar de lhe terem dado trabalho e algumas até o tinham feito suar bastante, ao ponto de ele se ter irritado com a sua falta de jeito e de inspiração naquele dia.

Perante Chester, ou mais concretamente o fantasma do Chester… franziu-se com essa noção e resolveu não pensar nesses termos dali por diante. Não era um fantasma, era um desrespeito pensar que seria um fantasma.

Perante Chester, pensava, ele não conseguia assumir essa nova faceta de músico formatado em toda a sua amplitude. Temia ser acusado de desleixo e de preguiça.

Ao girar sobre os calcanhares viu Chester com um papel na mão esquerda. A direita agarrava na garrafa térmica destapada.

— O que é isso?

— Foi o que eu escrevi para o teu concurso.

— Diz para a minha canção, prefiro que seja assim. Tens uma letra diferente?

— Pode ser um refrão diferente, uma resposta ao que estás a cantar…

Encolheu os ombros, indeciso e vulnerável. Chester não tinha perdido essas características quando queria mostrar algo de sua autoria. Mike olhou-o sem conseguir dizer nada, afogado em emoção e teve novamente vontade de o apertar. Deu um passo em frente. Chester estendeu-lhe a folha e o braço esticado impediu-o de avançar.

— Queres ler, Mike?...

— Quero, sim. Podes ler tu.

— Preferia que lesses, se não te importas.

— Não, não me importo.

Mike tomou-lhe a folha da mão. Havia rabiscos, frases riscadas, palavras soltas que voavam nas margens. Ao centro havia duas estrofes com emendas. Rever a caligrafia do Chester, recentemente escrita, ainda era capaz de sentir o cheiro da tinta, embrulhou-lhe o estômago. Concentrou-se na leitura, esquecendo a sua origem ou não conseguiria ler nada.

Murmurou, enquanto lia:

 

Even if I disguise my fears properly

You´ll find me through your open doors

And this is where we can begin

Yes, we’ve been here before

 

Tell me where I can be myself

Inside these strange, closed doors

All I am is here for you to see

My soul is scattered on the floor

 

Mesmo que possa disfarçar bem os meus medos

Vais encontrar-se através das tuas portas abertas

E aqui é onde podemos começar

Sim, já estivemos neste lugar antes

 

Diz-me onde posso ser eu próprio

Dentro destas estranhas portas fechadas

Tudo o que eu sou está aqui para veres

A minha alma espalhada pelo chão

 

Era muito bonito e Mike até conseguiu cantar. Ficou a olhar para a folha sem conseguir descortinar que passo podia dar a seguir. Talvez agora fosse o tal abraço evitado e adiado… Seria uma excelente maneira de acolher o amigo e de defini-lo com mais precisão. Senti-lo e cheirá-lo e recordar-se do que tinha perdido com a sua ausência. Recuperar algum do tempo perdido e talvez… só talvez acreditar que tudo o que sofrera tinha sido uma mentira.

No entanto, antes de ele poder agir, Chester ergueu-se do sofá. Puxou o cós das calças para cima e disse:

— Vou mijar… Onde é que fica a casa de banho neste teu novo estúdio sofisticado?

Libertara-se da letra da canção, do exame à sua pequena obra, fora aceite, não tinha de explicar mais nada e, por isso, tinha recuperado a sua leveza. Continuava igual, continuava o mesmo Chester de sempre. Mike apontou para trás, ao lado da cabina de som.

— Ali. Estás a ver aquela porta?

Chester piscou-lhe o olho.

— Continuo a preferir o teu antigo estúdio.

— Era bastante mais pequeno… e não tinha casa de banho.

— Dá para tomar banho também?

— Sim, ali existe um duche.

— Alguma vez pensaste em tomar banho… no estúdio que fica na tua casa? É só subires as escadas e vais para a tua casa de banho de sempre. Qual é a finalidade?

Mike cruzou os braços, a folha de papel ficou pendurada.

— E qual a finalidade de construir uma casa de banho… sem a equipar com um duche? Ou é uma casa de banho, ou não é.

— Podia só ter uma sanita e um lavatório que continuava a ser uma casa de banho para mim.

— Vais mijar ou vais querer continuar a dissertar sobre casas de banho?

Chester foi para a porta. Mexeu uma mão num floreado zombeteiro.

— Ah, o Mike Shinoda não gosta que lhe critiquem o estúdio novo. Ah, somos tão ciosos do nosso estúdio novo – comentou a ciciar pronunciadamente.

Estava a troçar dele, o atrevimento! Mike bufou e foi afundar-se no sofá. Releu as estrofes escritas pelo amigo, uma e outra vez. Cantava-as mentalmente e havia outra parte do seu cérebro que imaginava a mirabolante ideia de escrever uma canção, de raiz, com o Chester. Naquele dia, naquele dia exato. Uma improbabilidade, mas eles podiam fazê-lo… porque estavam novamente juntos.

— A rever coisas antigas?

Um beijo na cabeça e ele saltou com o susto.

— Anna?!

— Sim, sou eu. Ainda moramos na mesma casa, creio, e pode acontecer eu aparecer e dar-te um beijo, de vez em quando. Se estiver bem-disposta e se achar que o mereces.

Mike olhou aflito para a porta fechada da casa de banho.

— O que foi? Não estás na live, tens tudo desligado… – observou a mulher seguindo o olhar dele, que parara antes, na sua mesa de trabalho, no ecrã estático cujo fundo era uma foto que ele tirara no início do ano a Manzanar, o histórico campo de concentração californiano que albergara civis japoneses durante a segunda guerra mundial.

Mike foi até à porta, bateu ao de leve e chamou pelo amigo num sussurro. Abriu-a, espreitei para dentro da casa de banho. Estava às escuras e não viu o Chester em lado nenhum.

— O que é que foste procurar aí?

— Eh… nada, Anna. Nada. – Olhou para a folha de papel. Explicou, acanhado: – Não são… coisas antigas.

Ela fez uma careta de descrédito.

— Não são coisas antigas? Pareceu-me uma coisa escrita pelo Chester… sou muito boa a reconhecer caligrafias, muito raro enganar-me nos autores de notas e de apontamentos. Uma chatice quando me mandam bilhetinhos secretos. Deixam de ser secretos. Isso é a mão do Chester, não é?

— Sim, é. – Mike parou junto à mesa. Contemplou a folha de papel e voltou a dobrá-la em quatro, usando os vincos das dobras anteriores. Não conseguiu prestar o esclarecimento, que se entalava no seu peito. Devia contar à Anna o que estava a acontecer e agora até tinha uma prova tangível. Mas não foi capaz. Forçou uma expressão neutra e perguntou: – O almoço está pronto?

Ela esqueceu a pergunta que fizera, distraída com o desvio que ele inventara.

— Hum-hum. Vamos, querido? A Abba quer contar-te sobre a aula de hoje.

— Sim, minha querida. Vamos – concordou ele, contente por a Anna não insistir sobre a folha. – Quero saber de tudo, incluindo os pormenores sórdidos.

— Não existem pormenores sórdidos numa aula de inglês, Mike…

À tarde, quando voltou ao estúdio para a sua rotina habitual de conferência do correio eletrónico, a folha dobrada, que ele tinha a certeza de ter deixado junto à tigela do destino, tinha desaparecido. Ainda procurou no meio dos outros papelinhos dobrados que enchiam o recipiente, com as indicações dos fãs para que ele construísse músicas num improviso que nem sempre se harmonizava, mas não estava aí também.

Ficou desapontado, porque gostara muito da letra, mas não se recordava exatamente das palavras, não as decorara porque achara que não era preciso fazê-lo. Fechou os olhos com força, espremeu o cérebro, mas desistiu da tentativa de replicar as estrofes a partir daquilo que se podia lembrar. Desligou o computador, aborrecido.

Ao passar pelo sofá viu a garrafa térmica pousada no chão, de onde o Chester bebera café. Continuava destapada e agora, vazia.

— Chester? Estás aí?

Silêncio.

— Chester?

Sem resposta.

Regressou à sala, sem saber muito bem se devia ocupar o pensamento com aquilo ou não. Talvez uma abordagem mais casual e despreocupada fosse a melhor opção. Se não insistisse muito, se não criasse uma obsessão, o Chester voltaria. Acontecia tudo pela iniciativa dele, afinal, e Mike apenas tinha de estar preparado para recebê-lo e aproveitar esses curtos minutos o melhor que conseguisse, sem acrescentar elementos desnecessários.

Sentia-se muito bem naquele faz-de-conta e achava que o Chester, muito provavelmente, sentiria o mesmo.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Um encontro especial numa ilha.