Sinais escrita por Sirena


Capítulo 5
Violetas e Música


Notas iniciais do capítulo

Obrigada heywtl, Natália, Júlia Potter, Isah Doll, Joshua de Vine, Juliarcanedo e Asheley Dream pelos comentários maravilhosos ♥
Obrigada a Juliarcanedo, Lilith, Ace and Joker e Kurai koduku por favoritarem ♥

Então, apesar de essa ser uma história e um capítulo leve no geral, o começo é um pouco tenso então... Não sei se serve de gatilho, mas na duvida, leiam num momento calmo e com um copo d'água do lado ♥



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Mathias

Quando Eric me contou que faria prova para mudar de escola, eu já sabia que as coisas ficariam ruins para mim. Na época, tudo era mais fácil, o máximo que faziam eram piadas idiotas por eu usar maquiagem, mas se ele não estivesse ali, teriam ido além das piadas há muito tempo. E eu sabia disso.

Lembro que no final da nona série, eu tinha conseguido me convencer de que ia ficar bem mesmo que ele mudasse de escola. Mas, o último dia de aula deixou bem claro que eu estava errado. Não era exatamente dia de aula, era só uma festinha e a única razão para eu ter aceitado ir foi porque ia ter doces gostosos e grátis.

Naquela época, além de lápis de olho, eu gostava de usar delineador, rímel e uns batons clarinhos. Nos últimos cinco minutos do dia, eu tinha decidido ir ao banheiro para retocar a maquiagem porque a maior parte já tinha saído.

A chave do banheiro estava do lado de fora da porta quando entrei, mas não liguei pra isso. Eram os últimos cinco minutos. Eu só queria ajeitar o rímel e o batom e talvez prender meu cabelo.

Enquanto olhava meu reflexo e pegava o batom no bolso, a porta bateu. Eu pulei de susto e fui tentar abri-la assustado, ainda sem entender o que estava acontecendo. Quando tentei... Bom... É. Não abriu.

Nos primeiros instantes eu pensei que tinha alguém segurando. Mas o sinal bateu, eu ouvi todo mundo indo embora e a porta não abria. Foi quando eu me lembrei da chave e percebi o que realmente estava acontecendo.

E, eu tenho um problema: minha mente escala rápido demais. Ou seja, logo que pensei "eu to trancado aqui", eu também pensei "é o último dia de aula, vão fechar a escola daqui a pouco, ninguém vai perceber que eu to aqui e eu vou acabar morrendo de fome ou sede e só vão descobrir quando as férias acabarem, vierem abrir a escola e encontrarem meu cadáver se decompondo no chão do banheiro."

Eu sei que ainda tinha o período da tarde, então com certeza abririam o banheiro logo, mas na hora, não consegui pensar nisso. Só consegui entrar em desespero e começar a bater na porta gritando por ajuda. Eu estava tremendo e, eventualmente, acabei chorando desesperado enquanto tentava achar uma saída, mas... Mas, não havia e antes que me desse conta estava arfando, caído no chão e olhando assustado para as paredes.

Não era do tipo claustrofóbico, mas eu estava com fome e suado, o banheiro era abafado e tudo estava fechado, a ideia de ficar preso ali por não sei quanto tempo, estava realmente me fazendo passar mal. Meu coração disparava e meu pescoço apertava enquanto eu buscava por ar, olhando ao redor como se uma porta mágica fosse aparecer do nada. De repente, eu batia nas paredes, chorando assustado e gritando, com minha voz saindo arranhada.

Em algum momento, entre um pensamento mais desesperado do que outro, eu consegui pensar no óbvio: eu ainda estava com meu celular.

Tive que tentar quatro vezes para finalmente conseguir desbloquear e ligar duas vezes para o Eric finalmente atender.

— Cara, onde você tá? Tu sumiu, filho da puta!

— E-eu to na escola. - murmurei, sem conseguir falar mais alto que isso. — Eu não sei o que... Eu... Alguém me trancou, eu... Eu...

— Onde exatamente você tá, Mat? - o tom do Eric, de repente era mais atento, preocupado.

— No banheiro... A porta tá trancada. Me ajuda!

— To voltando pro colégio! Já chego por aí!

Pareceu levar uma hora para o Eric chegar, mas, na verdade, demorou só dez minutos. No total, eu fiquei apenas trinta minutos, preso, naquele banheiro, mas realmente pareceu uma eternidade.

Quando a porta abriu, eu caí tremendo nos braços do Eric, meu rosto estava vermelho e meus olhos inchados enquanto eu tentava voltar a respirar normalmente, me sentindo a ponto de vomitar.

— Ei, ei, tá tudo bem, Mat! Tá tudo bem, eu to aqui. Ninguém vai te fazer nada, ok? Eu to aqui, calma. - ele tinha murmurado, tentando me ajudar a ficar de pé. — Calma, tá? Vem beber uma água. Você não saiu do armário pra ficar preso num banheiro, cara! Tá tudo bem.

Lembro que a tia da limpeza estava do lado dele, que me pediu desculpas e disse que não sabia que tinha alguém trancado no banheiro, contou que tinha esquecido a chave na porta e alguns garotos da minha sala tinham devolvido pra ela um pouco antes da aula acabar.

— Tudo bem, tia. Não foi sua culpa. Mas, se eu descobrir quem trancou essa porta... - o olhar do Eric ao dizer isso, poupou que tivesse de concluir a frase. Ele suspirou voltando o olhar para mim. — Eu vou te acompanhar até em casa. Você já tá mais calmo?

Concordei com a cabeça. Eric me acompanhou e ficou comigo o resto do dia. Vimos uma série qualquer e divertida, conversando sob amenidades até eu quase esquecer o que tinha acontecido. De qualquer forma, foi naquele dia que eu soube que o próximo ano seria uma merda.

E adivinhe?

Eu tava certo.

E surpreendentemente, o meu segundo ano estava conseguindo ser ainda pior.

***

— O Ícaro? É sério? – Eric revirou os olhos pra mim enquanto descíamos a rua para minha casa. Fazia um mês que não nos víamos e, embora conversássemos com frequência por mensagem, eu tinha ficado com pé atrás em contar isso virtualmente. — Cara... Vocês nem falam a mesma língua!

— Não é tão diferente de uma brasileira com um americano. – argumentei cruzando os braços, desconfortável com o julgamento.

— É diferente sim! A brasileira pelo menos vai ganhar um Green Card. Você por acaso vai ter direito a sentar no reservado do ônibus? Não, né? Então! Bem diferente!

Bufei.

— Eu to aprendendo Libras. A gente conversa bastante e os sinais que eu ainda não sei, a gente digita no celular.

— Legal, então... Ainda por cima você tá correndo risco de acabar sendo roubado!

Parei de andar e cruzei os braços.

O Eric ainda deu uns três passos antes de se virar pra mim.

— Que é? – perguntou, parecendo confuso.

Hesitei, pensando em como falar o que tava na minha cabeça. Eu não sou bom batendo de frente com ninguém. A ideia de tentar fazer algo assim, de tentar fazer algo assim com a única pessoa que sempre me protegeu na escola... Era assustadora.

Mas, respirei fundo me obrigando a falar.

— Você... Pode, por favor, não falar assim? – sussurrei.

— Cara, eu só to sendo realista. – ele revirou os olhos, vindo pra perto de mim.

— Qual o problema afinal?

— Mathias, tu não aguenta defender a si mesmo. Surdo sofre preconceito, tu vai fazer o quê? Defender ele? Como? Cê corria pra se esconder atrás de mim no intervalo quando os caras mais velhos apareciam!

Senti meu rosto ficar quente com a lembrança.

— Não acho que você vá aguentar defender caso veja alguém sendo merda com ele.

— Que nem você tá sendo agora? – arquei a sobrancelha.

— Ah... – Eric virou a cara, o rosto ficando vermelho.

— Cara, eu to feliz! – declarei, meu tom soando mais insistente que tudo. — Tu é o único com quem eu falo sobre essas coisas e eu to tão feliz! Você pode, por favor, só ficar feliz por mim? O Ícaro é legal! A conversa com ele rende tão fácil, eu nem preciso pensar no que to falando! E você sabe o quanto isso costuma ser difícil pra mim! Tipo, tá, é difícil a gente conversar às vezes, barreira linguística e tal... Mas a gente dá um jeito! E a gente se diverte junto! Então, por favor, por favor, só fica feliz por mim!

Ele ergueu os olhos, me analisando com cara de júri antes de rir passando o braço em volta dos meus ombros.

— Tem sorte de eu te amar.

— Eu sei. – murmurei.

— Vamos logo. Aí a gente assiste alguma coisa e você me explica melhor como caralhos isso funciona, tá legal? – ele riu, enquanto voltávamos a andar. — Se você tá feliz, eu tô feliz. É o que importa, né?

Concordei com a cabeça, contente pela compreensão.

***

Eu odiava apresentar trabalho. Desde que o Eric saiu da escola, esse se tornou meu momento menos favorito.

Deixa eu explicar: minha escola é particular e não dá bolsa. A mensalidade de ensino médio era muito cara para gente bancar e minha mãe ia me trocar de colégio... Só que, apesar de muito tímido, eu sempre fui um bom aluno. Na verdade, ótimo. Minha menor nota era 9,5.

E... Formar alunos com essas notas e que tem boa chance de passar em primeiro lugar em algum vestibular faz boa fama para a escola. Por isso, morrendo de medo de eu sair,  o colégio me ofereceu um desconto de 80% na mensalidade desde que eu mantivesse minhas notas.

Isso mesmo. 80%.

Era ótimo... Até o resto da sala descobrir. Eles ficaram sem entender como o garoto esquisito que entra mudo e sai calado e que passa boa parte da aula retocando o lápis de olho conseguiu isso. Acontece que invejosos são filhos da puta então.... Além de várias piadas sobre meu desconto envolver favores sexuais, para ver se eu realmente merecia, eles transformavam os seminários em um inferno. Como?

Bom... Eles me enchiam de perguntas durante as apresentações. Uma por cima da outra. Uma mais difícil que a outra. Até eu estar tão nervoso e confuso que não conseguia responder. E, obviamente, isso me fazia perder nota.

Dobrei o cartaz e corri pro meu lugar, enquanto os risos a minha volta continuavam. Minhas mãos estavam tremendo e eu estava enjoado. Pelo menos eu consegui controlar o enjoo, da última vez eu vomitei no meio da apresentação.

Tentei ignorar os olhares debochados na minha direção enquanto outro grupo começava a apresentar e peguei meu celular embaixo da mesa, olhando o mais disfarçadamente que podia.

Se o Eric ainda estudasse aqui, duvido que aqueles idiotas iam se atrever a me perguntar qualquer coisa. Ele sempre fazia esses trabalhos comigo e todos tinham medo dele porque ele tinha fama de brigão. As coisas seriam bem mais fáceis se ele ainda estivesse perto.

Desbloqueei meu celular vendo que tinha algumas notificações de mensagem.

 

[Ícaro]
Ei, Mathias
Oi
Oi
Oiiiiiiii

[Mathias]
Eu tô em aula!?!!!
Espera dez minutos

[Ícaro]
Desculpa
Só ia perguntarr
A gente tá namorando né????

 

[Mathias]
Bom, a gente ta saindo a um mês né
Mas, n sei onde acaba o ficando sério e começa o namoro
Existe um ponto certo que isso acontece? Tipo, ta escrito em algum lugar ou algo assim? Pq eu n entendo real e.e

[Ícaro]
Ai, tá bom tá bom
A gente tá namorando então

 

Dei risada.

[Mathias]
Ok, vlw por avisar então xD

 

[Ícaro]
Por nada kkkk 

 

Coloquei o celular no bolso quando ouvi o sinal tocar e corri pro pátio.

Desci as escadas correndo e tropecei ao sentir um puxão no meu cabelo. Me apoiei no corrimão e cerrei os dentes enquanto um grupo de garotos da minha sala passavam rindo. Qualquer dia desses, eu ainda acabaria cortando o cabelo para não ter que aguentar mais isso. Odiava que mexessem no meu cabelo.

Suspirei voltando a andar e parei do lado da Samantha que me olhou de sobrancelha arqueada.

Sam era ex do Eric. Tinha cabelos castanhos com luzes loiras e um rosto fino pequeninho, olhos castanhos e pescoço longo. Parecia alguma atriz daqueles filmes alternativos, ou simplesmente alguém que matinha o mesmo gosto musical por Avril Lavigne e Guns And Roses do começo da década. Juro que ela precisa ouvir músicas novas.

De qualquer forma, ficamos amigos enquanto ela e o Eric namoravam e, depois que ele mudou de escola, ela virou meio que minha guardiã no colégio. Tinha gente que implicava com ela, mas eu nunca entendi bem o por quê. Eu chuto que é porque ela é maravilhosa demais para as pessoas saberem lidar. De qualquer forma, Sam sabia se impor melhor do que eu, então a maioria não implicava muito com ela. O que queria dizer que a dose de pessoas implicando comigo no intervalo também diminuía quando eu estava perto dela.

Sim, eu sou um covarde.

Apesar de sempre lancharmos juntos, não éramos mais tão próximos quanto antigamente. Samantha estava sempre ocupada agora, ela estava no último ano e entre o cursinho pro vestibular, o emprego meio-período e cuidar de três irmãos mais novos, tempo não era exatamente algo que ela tivesse.

— Samantha, adivinha quem tá namorando? - sorri me sentando do lado dela e pegando meu celular.

Só naquele instante percebi que tinha esquecido meu lanche na sala, mas, isso era o de menos. Prioridades primeiro.

— A Mariana do primeiro? Ou o Rogério da sua sala? - ela respondeu, fazendo uma trança no cabelo escuro.

— Como eu vou saber? - fiz bico. — Eu tava falando de mim, poxa!

— Osh, e isso lá é novidade? É aquele bonitinho de cabelo colorido e que parece uma flor?

— Que flor ele parece? - perguntei, curioso.

— Ele me lembra das minhas violetas. - ela deu de ombros. — Tudo roxo.

— Faz sentido. Agora deixa eu me concentrar.

— Você que...

— Shhh! - mandei, segurando a mão dela e apertando. Ela me olhou estranho, puxando a mão.

Quando o Ícaro falava demais, eu apertava a mão dele para que parasse. Acho que peguei o hábito de fazer isso com todo mundo que eu queria que ficasse quieto.

Foco, Mathias, foco.

 

[Mathias]
Ei ei
Pq a pergunta de repente?
Não que eu não teja feliz, só to curioso
Tipo, foi do nadaaa tendeu?
Não to reclamando eu só

Minha barriga roncou de fome enquanto eu digitava a próxima mensagem. Peguei um punhado do salgadinho que a Samantha comia.

[Ícaro]
Mathias
Para
Entendi
Pode parar
Meus pais tavam perguntando ontem noite
Fiquei na dúvida do que responder
 

[Mathias]
Aaaaa
Entendi
Pq eles tavam perguntando, vc sabe?

 

[Ícaro]
Tavam te chamando pra vir aqui :x

***

Minhas mãos suavam enquanto eu parava na frente da casa do Ícaro. Ele morava numa rua residencial e a primeira coisa estranha que eu notei, foi a campainha que não tocou quando eu apertei. Mandei mensagem para minha mãe avisando que havia chegado e guardei o celular, nervoso. Fiquei mexendo no colar que usava que tinha uma pedra da lua, tentando conter o medo de a campainha não estar funcionando e eu ficar parado no portão até alguém achar estranho um garoto desconhecido na rua e chamar a polícia.

Mas, para a minha surpresa, antes que eu pegasse meu celular para mandar mensagem pro Ícaro, ele veio correndo abrir.

“Oi.” — cumprimentei, sentindo meu rosto ficar vermelho depois de ele me receber com um beijo meio longo demais. Garoto, por favor, eu estou indo conhecer seus pais, não me beija assim, pensei. – “A campainha funciona?” — perguntei, sem graça, porque eu realmente fiquei na dúvida.

Ele olhou de mim para a campainha e da campainha para mim algumas vezes antes de responder em sinais:

“É campainha de luz. Não faz barulho, acende e fica piscando quando toca. Na verdade, pode fazer barulho, mas a A-L-E-X-I-A não gosta do som, então a gente deixa desligado.”

“Entendi.” — sinalizei concordando com a cabeça e deixando ele me puxar para a sala.

A casa do Ícaro era um térreo e os cômodos não pareciam muito grandes. As paredes tinham um tom amarelo claro e via-se por toda parte quadros dele e da Alexia ainda crianças com roupinhas combinando.

Alexia estava jogada no sofá, vendo TV num volume realmente alto. Quase perguntei por que ninguém mandava abaixar aquilo, mas me impedi a tempo percebendo a gafe, já bastava não ter raciocinado que não fazia sentido a campainha fazer barulho.

Os pais do Ícaro vieram da cozinha, rindo e conversando em sinais. Eram ambos negros, com cabelos crespos escuros. A mãe dele tinha olhos verdes estreitos e não era muito alta. Já o pai, tinha olhos castanhos como os do Ícaro e a pele um pouquinho mais clara que a dos gêmeos, marcada por sardas.

E eu sei que é estranho pensar isso do pai do meu namorado, mas… Achei ele bonitão. De um jeito velho e totalmente cara de pai, mas… Bonitão.

"Oi. Prazer conhecer vocês dois." — senti minhas mãos suarem com medo de estar confundindo os sinais enquanto falava.

— O prazer é nosso. - a mãe do Ícaro falou devagar ao mesmo tempo em que fazia sinais com a mão. — Ícaro falou muito de você. Meu nome é Marina e esse é o Felipe. - ela soletrou o nome deles e em seguida fez o sinal de cada um, o que me deixou contente.

Aprendi que ter um sinal era tipo, o básico necessário pra interagir com um surdo.

— Ah, Mathias! - Alexia me chamou de repente, se sentando no sofá. — Meu sinal é esse aqui, olha… - enquanto falava, ela fez um sinal que parecia com o de "sorriso" só que com apenas uma das mãos, e com a mão em A. — É por causa de um machucado que eu fiz no queixo quando era bebê.

Concordei com a cabeça, voltando a atenção pros pais dela, ainda me sentindo nervoso enquanto pensava no que falar.

Antes que pudesse raciocinar qualquer pergunta, o pai do Ícaro começou a fazer vários sinais e embora eu tivesse chegado a reconhecer alguns, não consegui saber o que significavam porque ele fazia muito rápido pra eu pegar. Ele também falava, mas sua voz era muito baixa para eu entender.

Não consegui esconder a confusão na minha cara.

Percebendo isso, o Ícaro apertou meu ombro para atrair minha atenção e começou a repetir o que o pai tinha dito, mais devagar e soletrando as palavras que eu não conhecia.

Até aquele instante, eu não tinha percebido o quão mais devagar ele falava comigo.

Merda, eu tinha que melhorar em Libras logo.

"A gente conversa só por Libras, mas se tiver alguma palavra que você não conhece, pode falar em português. Meus pais sabem L-E-I-T-U-R-A L-A-B-I-A-L." 

"Ok." — respondi, sentindo meus ombros relaxarem de repente. Eu tava com medo de aquilo acabar sendo tipo uma prova surpresa de língua de sinais em que se eu não passasse não ia poder mais ver o Ícaro. Eu sei, minha mente funciona de um jeito estranho, mas pareceu um medo razoável.

"Só toma C-U-I-D-A-D-O de falar sempre com cabeça levantada, devagar e de frente pros dois. Ou não entendem." 

Assenti com a cabeça e fomos para cozinha almoçar. Alexia ainda enrolou um pouco na sala antes de desligar a TV e vir também.

Como vocês se conheceram? – a mãe do Ícaro perguntou em voz alta, depois de se servir com um bife à milanesa. A voz dela parecia com a da Alexia um pouco, suave e mandona na mesma medida.

"Eu tenho um amigo em comum com a Alexia. Ele me chamou para sair com ele e os colegas de escola e nesse dia, a Alexia e o Ícaro também estavam."— respondi, tentando não me atrapalhar com os sinais.

— Agora ele não tem direito reclamar quando fazemos sair com Alexia. – o pai dele comentou fazendo Libras enquanto falava, dando risada.

Do meu lado, o Ícaro se mexeu desconfortável.

"Eu continuo preferindo não sair com os amigos da Alexia." — Ícaro declarou fazendo careta. - "Melhor ficar em casa."

"Você fica muito em casa, Ícaro." — a mãe dele falou. - "Ano passado vivia saindo, agora não quer sair nem se a casa pegar fogo."

Ícaro revirou os olhos. - "Bom, eu saí nos últimos quatro fins de semana com o Mathias. Posso ficar em casa sem ninguém reclamar agora? Ou vou ficar vendo reclamação?"

O pai do Ícaro lançou um olhar severo ao filho antes de voltar o olhar pra mim sorrindo.

"Você já sabia Libras quando se conheceram?"

— Não, senhor. É que quando eu vi ele, quis muito poder falar com ele. Aí resolvi aprender. - assim que terminei de falar, percebi que provavelmente teria sido melhor falar com as mãos, mas nem o Felipe e nem a Marina pareceram incomodados. Apesar disso, Ícaro me olhava confuso mas, deu de ombros levantando as mãos.

"Ele soletrou o nome errado quando foi falar comigo."

"Por quanto tempo você vai me lembrar disso?" — perguntei, sentindo meu rosto quente de vergonha.

A conversa seguia naturalmente, o que me fez relaxar aos poucos. Eu fiquei realmente com medo de acabar sendo odiado pelos pais do Ícaro. Mas, eles pareciam realmente muito simpáticos e divertidos.

"A primeira vez que os amigos da Alexia vieram aqui em casa, o Ícaro tinha uns seis anos. Ele ficou confuso vendo eles falarem com a boca." — a mãe dele contou.

"Claro que fiquei confuso! A boca deles mexia e eles entendiam o que era pra fazer, era esquisito! E se eu falasse algo, eles não entendiam! Eu não sabia porque eles não falavam com as mãos." — Ícaro se meteu, dando risada. - "Ouvintes são tão estranhos!"

"Ele ficou revoltado quando explicamos que nós que éramos diferentes pro mundo." — o pai dele completou, dando risada. - "Não queria aceitar de jeito nenhum."

"E ele era encrenqueiro quando começou na escola." — dona Marina falou, sorrindo de lado. - "Tinha sempre que ir buscá-lo."

"Eu não fazia nada demais." — Ícaro se defendeu. - "A professora dizia que não quisesse ver a aula saísse, aí eu saía."

Cobri a boca com a mão para abafar o riso.

— Debochado. - murmurei.

"Não era só isso." — Marina fez careta. - "Você brigava muito com as professoras."

"Porque elas ficavam mandando em mim. 'Não faz isso, para de falar, senta ali'... Eu não gosto que mandem em mim."

"Teve uma vez..." — Felipe sorriu, parecendo tentar não rir. - "A professora dele contou que ele dava as lições dele para a menina que sentava do lado dele e ia conversar com os amigos."

"Ela gostava de fazer minha lição." — Ícaro deu de ombros. - "Dizia obrigado toda vez, então não tinha problema."

"Teve a vez que a gente fugiu." — Alexia contou, rindo. Arquei a sobrancelha. - "Para ir ao shopping comprar sorvete."

"Eles se perderam." — o pai do Ícaro fez careta. - "Pegaram o ônibus errado."

"Não é que pegamos o ônibus errado. É que na mente de crianças de seis anos, todo o ônibus vai pro mesmo lugar." — Ícaro deu de ombros quando acabou de falar, como se essa realmente fosse uma defesa válida.

— Meu Deus. - murmurei.

"Acabamos numa loja perto do centro. Eu pedi pra moça ligar pra minha tia e ela avisou minha mãe, aí ela foi buscar a gente desesperada."

"A moça da loja nos deu sorvete. Não foi viagem perdida." — Ícaro riu.

"Realmente." — concordei tentando não rir também.

***

Depois do almoço, todos sentaram na sala para assistir uma série. Alexia estava fazendo careta enquanto ativava as legendas e colocava a TV no mudo. Eu não sabia que série era aquela e sinceramente, não estava entendendo nada.

— Eles não gostam de incomodar os vizinhos. - ela me explicou se sentando. — É chato porque eu me sinto mais confortável ouvindo. Mas qual o sentido de deixar a TV no alto se praticamente ninguém tá ouvindo?

Concordei com a cabeça deitando o rosto no ombro do Ícaro, desinteressado. Só entendi que tinha algo com assassinos e monstros.

"Não conheço essa série." — falei pra ele. Ícaro suspirou

"É uma série legal." — contou franzindo os lábios antes de dar um sorrisinho. - “Quer ouvir eu tocando teclado?”

Concordei com a cabeça e deixei ele me puxar até o quarto mesmo que preocupado com o que os pais dele achariam disso.

O quarto do Ícaro tinha paredes roxas bem clarinhas e quadros brancos com desenhos em estilo esboço. A cama estava bem bagunçada e acima dela haviam três prateleiras cheias de livros. As portas do guarda-roupa eram cobertas de figurinhas e adesivos. O gancho na parede estava cheio de roupas. O teclado vermelho estava montado num canto do quarto.

“Pode sentar.” — ele disse, indicando a cama.

Obedeci.

Ícaro estalou os dedos das mãos, parecendo animado e rindo igual bobo enquanto ia para trás do instrumento musical. Ele pareceu pensar um instante antes de começar a tocar.

Não reconheci a música, mas gostei do jeito que as notas soavam e do jeito que ele tocava sem hesitar, deixando o som inundar o quarto. Apoiei o queixo na mão, observando o sorriso do Ícaro enquanto tocava, o cabelo roxo já desbotando e a postura relaxada de quem sabia o que estava fazendo e sabia que estava arrasando. Era simplesmente impossível desviar o olhar.

Caralho.

Eu tava realmente encantado por aquele garoto.

Mordi a bochecha, pensando um instante antes de me levantar.

Fui pro lado dele, hesitei um instante, enquanto ele continuava focado na música, o abracei por trás, beijando seu ombro. Ícaro começou a tocar mais devagar enquanto eu ia beijando seu pescoço. Ele encostou a cabeça no meu ombro, respirando fundo... A música parou enquanto ele se virava para me beijar, as mãos deixando as teclas e segurando meu rosto.

Me encolhi assustado ao sentir ele puxar meu cabelo, mas relaxei quando suas mãos desceram apertando meus ombros, enquanto o beijo ia ficando mais intenso e meu corpo esquentava. Nervoso. Era bom, mas eu estava um pouquinho nervoso, já que, apesar da porta estar fechada, a sala era ali do lado e mesmo que os pais dele não escutassem nada... Eu sou paranoico e a vida é difícil quando se é paranoico.

Senti as mãos dele entrando por baixo da minha camisa enquanto eu me encostava na parede, apertando sua cintura... Os lábios do Ícaro alcançaram meu pescoço e minha pele se arrepiou com os beijos que ele deixava ali. Quer saber? Foda-se o nervoso. Passou já.

Não passou não. Ouvi o barulho de passos no corredor e imediatamente me afastei do Ícaro.

“Alguém vindo.” — sinalizei e ele arregalou os olhos, voltando rapidamente pra trás do teclado e abaixando o rosto enquanto a porta abria.

— Tudo bem aqui? – Alexia perguntou, entrando com a sobrancelha arqueada. — Mamãe pediu pra ver, disse que vocês estavam sozinhos tinha muito tempo já.

Forcei um sorriso.

— Claro. O Ícaro tava tocando teclado e eu tava aplaudindo. – enquanto falava isso, fiz palmas de surdo, balançando as mãos levantadas. Na verdade minhas mãos estavam tremendo de medo de ser pego, mas, daquele jeito dava para disfarçar.

Alexia arqueou ainda mais a sobrancelha antes de dar de ombros.

— Suponho que essa seja uma vantagem em namorar um ouvinte, né, Ícaro? - ela sorriu maliciosamente, fazendo Libras enquanto falava. Então deu um sorrisinho e saiu do quarto, deixando a porta aberta.

"Eu vou matar a Alexia." — Ícaro falou se virando pra mim com um sorriso envergonhado.

Dei risada. - “Melhor continuar isso quando sua irmã e seus pais não estiverem.”

Ele fez bico, virando o rosto por um instante antes de me olhar para falar:

“Você que começou.”

“Você fica S-E-X-Y tocando, não tenho culpa.”

Ícaro riu alto, se voltando para o teclado novamente e começando a tocar outra música. Me encostei na parede e fiquei observando e ouvindo, sem conseguir conter um sorriso. Era realmente algo bonito de se observar e de se ouvir. Às vezes, eu me perguntava como ele sentia a música. Ele já tinha me dito que gostava de sentir a vibração das notas enquanto tocava e eu ficava me perguntando como seria exatamente essa sensação.

Ainda nas primeiras notas, Ícaro parou, me olhando assustado antes de sorrir.

"Eu já sei!"

"Já sabe o quê?" — perguntei, arqueando a sobrancelha.

Ele deu risada, me puxando para sentar na beira da cama e sentando do meu lado, uma perna por cima da minha. Riu de novo parecendo repentinamente afoito enquanto levantava as mãos.

"Quando a gente foi no parque, você disse que não era bom em nada. Eu já sei no que você é bom!"

Dei risada, me sentindo confuso. - "Tá. E no que eu sou bom?"

"Você é bom em aprender idiomas."

"Isso não parece muito legal." — fiz careta, sem ter certeza se ele estava zombando de mim ou não.

"Mathias, você tá estudando Libras tem o que? Um mês? Um mês e meio? E conseguiu manter uma conversa com três surdos sem mal soletrar, e foram poucos os sinais que você perguntou. Isso é um avanço muito rápido e é lindo."

Pensei um instante e encolhi os ombros, envergonhado.

"Acho que o fato de eu ter um namorado surdo ajuda."

"Não!" — Ícaro bufou, me olhando seriamente. - "A gente se vê só uma vez por semana, não sou de grande ajuda com isso. Eu não sou razão pra você melhorar tão rápido, isso é esforço seu! Mesmo se eu for a razão pra você ter querido aprender, não sou a razão pra você estar indo tão bem. Você aprende idiomas rápido, se esforça pra isso. Acho que conseguiria aprender qualquer língua que tentasse fácil. Você é bom nisso e isso é muito legal."

— Ícaro... - mordi os lábios sem saber o que dizer ou que sinal fazer enquanto ele sorria para mim, com os olhos brilhando enquanto me observava completamente animado.

"Eu - fez um sinal que eu não conhecia. - Você."

"O que?" - perguntei, unindo as sobrancelhas.

"O-R-G-U-L-H-O" - soletrou. - "Eu estou com orgulho de você."

Abri e fechei a boca, sem saber o que dizer enquanto Ícaro continuava sorrindo pra mim. Desviei o olhar, sentindo meu rosto ficar quente.

"Obrigado." — falei por fim, o olhando incerto.

"Eu não vou agradecer por você estar aprendendo, não me entenda mal, mas pra mim isso é o mínimo."

Dei risada, resistindo ao impulso de revirar os olhos. O que posso dizer? Ícaro era do tipo "quer falar comigo? Você que lute." Fazia sentido ele não agradecer isso.

"Mas, fico feliz que esteja tentando tanto." - completou. - "Muito feliz mesmo."

Desviei um olhar um instante, sentindo meu rosto ficar quente. Ícaro meloso é novidade. Respirei fundo antes de falar.

"Qualquer coisa por você."

Ele sorriu passando os braços em volta dos meus ombros e me dando um beijo na bochecha.

"Vamos voltar para a sala." — declarou se levantando e me puxando pela mão enquanto eu ainda processava tudo que ele havia dito.


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Notas finais do capítulo

A parte dos pais do Ícaro colocarem a TV no mudo, eu me baseei no livro "A Imagem do Outro Sobre a Cultura Surda" da Karin Strobel e que dá essa e várias outras informações que me ajudam muito a escrever as narrações do Ícaro e cenas na casa dele ou com os pais dele.
Enfim, por essa semana é isso. Espero que tenham gostado, qualquer erro por favor me avisem ♥



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