Sinais escrita por Sirena


Capítulo 19
Vai ficar tudo bem, ok?


Notas iniciais do capítulo

Obrigada fran_silva, Isah Doll, Maia Oliveira, heywtl, Mimila Mirela e ScarlettFox pelos comentários ♥
Obrigada harleyQuinnMP, Okumura Rin e Maia Oliveira por favoritarem ♥

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Mathias

Mordi os lábios, grifando frases-chaves do livro de história e anotando as palavras e datas mais importantes em post-its. Ajustei meus óculos enquanto lia.

Eu não uso óculos, mas quando estudava em casa, gostava de usar. Não tinham grau nem nada, eram apenas de enfeite. Mas, me sentia mais focado quando usava óculos. Coloquei meu colar de sodalitas e âmbares para dentro da camisa. Tinha quem acreditasse que aquelas pedras ajudavam a melhorar o intelecto. Eu não sou uma pessoa de acreditar em coisas místicas, mas, eu acredito em placebos.

Então, acreditar que ajudava, fazia ajudar mesmo se no fim das contas aquelas pedrinhas não fizessem nada. Por isso, eu usava e acreditava e torcia para que desse mesmo certo.

Pulei de susto ao ouvir meu celular tocar e o coloquei no silencioso imediatamente enquanto atendia a chamada de vídeo.

— Alexia? – uni as sobrancelhas, confuso. — Você tá bem?

Na pequena tela, Alexia andava de um lado para o outro, parecendo nervosa, usando um pijama do Superman e soltando e prendendo o cabelo num coque repetidas vezes, até os cachos estarem embaraçados e esticados.

— Amorzinho, eu fiz merda! – ela declarou, os olhos arregalados enquanto falava. — Puta que pariu! Muita merda! Muita, muita, muita! Que inferno!

— O que você fez? – arquei a sobrancelha.

— Tipo, talvez eu tenha chamado a vizinha para vir aqui com o cachorro dela para o Ícaro ver que não tinha porque ter medo e o cachorro se empolgou pensando que o Ícaro queria brincar, pulou em cima dele e começou a lamber ele e o Ícaro surtou e começou a empurrar e chutar o cachorro e o cachorro surtou e começou a latir na cara dele e...

— Espera, o quê? O Ícaro tá bem? Por que você fez isso? Ele se machucou? Eu tinha mandado mensagem pra ele mais cedo, mas ele ainda não respondeu, achei que vocês estavam sem internet ou sei lá. Onde você tava com a cabeça?

— Eu não sei! – ela sumiu um instante antes de voltar, puxando uma cadeira giratória e se jogando nela. — Sabe, eu presto atenção no meu irmão. Na primeira vez...

Alexia ficou em silêncio, girando na cadeira.

— Na primeira vez?

—... Ícaro ficava me pedindo para ir fazer as compras de casa com ele, depois começou a me pedir para fazê-las no lugar dele, inventava desculpas, dizia que tava com dor de cabeça ou que tinha que estudar... Ele se assustava com sombras nas paredes e ficava horas na sala, olhando pela janela lá pra fora... Também começou a comer menos e dormir menos... Só depois disso tudo ele parou de sair. Teve um processo sabe? – ela pressionou as mãos contra os olhos enquanto falava, ainda girando na cadeira. — Foi a mesma coisa da última vez. E eu percebi que tava começando de novo, então... E a sessão de terapia dele tá marcada pra só daqui a um mês, era muito tempo! Então... Não foi a ideia mais bem pensada do mundo, eu sei. Mas, eu só pensei que se ele visse que não tinha porque ter medo daquele cachorro...

— Você tinha boas intenções.

— O inferno tá cheio de boa intenção! – ela bufou, me olhando irritada e girando outra vez. — Eu piorei tudo! Puta que pariu! Duvido que ele vá querer sair agora! Merda, eu sou uma idiota!

Suspirei.

Era um pouquinho.

Mas, eu não era doido de dizer isso, Alexia sendo Alexia provavelmente daria um jeito de atravessar o celular para me enforcar. Ou então começaria a chorar. Às duas opções eram assustadoras.

— Alexia, foco. Como ele tá?

— Tá... Sei lá. Se trancou no quarto depois do almoço e não saiu para jantar. Tia Viviane tá tentando convencer ele a sair e tio Flávio e meu pai tão conversando, tentando decidir o que fazer... E minha mãe tá furiosa comigo, é claro. Com razão. Ai, droga! Tirem de mim o prêmio de melhor gêmea do mundo, eu não mereço!

Suspirei.

— Alexia... Você acha que ele vai ficar bem?

Lexi finalmente parou de girar na cadeira, descobrindo os olhos inchados.

— Não, amorzinho. Não acho. – ela fungou, afastando as lágrimas do rosto. — Mathias, me escuta agora, ok? Você sabe o trauma que faz o Ícaro ficar meses sem sair de casa, mas você não faz ideia das coisas que ficar trancado aqui fizeram ele passar. Ele vai tá muito ansioso e assustado e principalmente, irritado e se ele não ficar bem... Logo ele vai querer comprar briga por qualquer coisa... E eu sei que você é muito paciente com meu irmão, mas, isso vai exigir um nível diferente de paciência, então... Por favor, por favor...

— Ok, Alexia. – dei um sorriso. — Valeu o aviso.

— Você é um anjo, sabia disso? – ela suspirou. — Ah, e... Se acabar sendo demais pra você... Avisa ele, tá? Você não é obrigado a aguentar, de verdade, não é. Mas... Só não some.

Uni as sobrancelhas sem entender bem o porquê de ela ter sentido necessidade de fazer esse acréscimo, mas concordei.

Quando Alexia desligou, abri o chat com o Ícaro.

[Mathias]
Mo, Lexi me contou o que aconteceu
Como vc tá?

 

Apoiei o queixo na mão, cerrando os lábios e esperando. Pareceu se passar uma eternidade antes da resposta dele.

[Ícaro]
A gnt pode cancelar de sair amanhã?

 

Hesitei.

[Mathias]
Claro
Quer que eu vá aí amanhã?

 

[Ícaro]
N, quero ficar sozinho

 

[Mathias]
Tem certeza?

 

[Ícaro]
Tenho

 

Suspirei, afastando o cabelo do rosto e erguendo os olhos para o teto sem saber o que dizer. O celular vibrou na mesa atraindo minha atenção de novo. Desbloqueei o aparelho apressado.

[Ícaro]
Desculpa
Juro que eu n queria ficar assim dnv, me perdoa
Te amo tá?
Muito

 

[Mathias]
Também te amo
E vc n tem que me pedir desculpas
Vai ficar tudo bem, tá?

 

[Ícaro]
Não vai não

 

Antes que eu pudesse responder, ele apagou a mensagem e ficou offline.

***

A casa do Eric era maior que a minha.

Ainda era pequena, mas era maior que a minha.

As paredes tinham um tom de rosa perolado e sem mofo. Era tudo bem organizado, de uma forma que daria inveja na minha mãe. No canto da sala tinha uma mesa de computador, sem computador, invés disso tinham vários quadros de fotos e flores, muitas flores.

O Eric e a mãe dele sempre colocavam flores novas, eu também sempre trazia flores quando vinha aqui.

A mesinha era um altar para o Diego.

Eu gostava de gastar minhas horas vendo aquelas fotos. Eram lindas, acompanhando desde o momento que o Diego foi adotado e chegou aqui até a última foto que tinham dele vivo.

Minha foto favorita era uma em que o Diego tinha uns dezenove anos, os cabelos crespos presos num coque alto, algumas mechas escapando e caindo na frente dos óculos redondos, ele estava sentado no colo do namorado de quem eu nunca lembrava o nome, mas que achava gato. O namorado de Diego tinha várias tatuagens nos braços e um piercing no nariz, apesar disso, parecia um Golden Retriever alegre, com um sorriso enorme e a aparência de quem com toda certeza riria quando você tropeçasse na rua. Eles pareciam tão bem e felizes na foto... Eric explicara que no dia do acidente, após ir mal numa prova, Diego foi para uma festa onde acabou brigando com o namorado e foi embora, bêbado e irritado. E aí... Bom... Carros, ruas movimentadas e tal. Eric disse que a mãe ainda chamava o namorado do Diego (ex-namorado? Não sei, ele já tinha outro namorado então, acho que ex), para jantar com eles. Eles se davam todos muito bem.

E, pelo que eu podia perceber hoje, Eric estava tentando disfarçar, mas era fácil para mim perceber que ainda estava mal por ter levado um fora da Eloá. A questão com Eric levar um fora nunca era levar um fora. O sentimento se misturava a todas às vezes que ele foi rejeitado pela mesma razão. Não era fácil pro Eric conseguir confiar o bastante em alguém para contar e no fim ser sempre a mesma coisa.

Tenho certeza que não era nada fácil chegar na pessoa que você gosta, disposto a ser completamente sincero e contar que tem HIV.

E é, eu entendo até certo ponto o medo e o senso de proteção com a própria saúde que podem tornar isso um choque tão grande pras garotas, e pras pessoas no geral, realmente... Mas, não precisava ir longe para ver que havia preconceito e ignorância envolvido também. Era como se deixassem de ver ele como uma pessoa e passassem a ver como uma seringa ambulante de vírus e todos os sentimentos que parecia haver, de repente não existiam mais. Eu entendo, ou pelo menos tento entender todo esse medo... Mas, vamos aos fatos:

É mais seguro transar com alguém que tem sorologia positiva e sabe disso e faz o tratamento do que transar com alguém que não sabe a própria sorologia, pode ter HIV e se tiver vai te transmitir sem saber.

Eu sabia que não era fácil para elas, mas também sabia que não era fácil para ele. Já o tinha visto desabafar sobre isso várias e várias vezes. Era sempre a mesma coisa. A relação ia ficando séria, ele achava melhor não omitir nada e de repente a garota parava de responder, bloqueava ele em todas as redes sociais e fingia que ele não existia, algumas iam além e o xingavam de tudo que era nome, diziam que ele queria contaminá-las e faziam comentários que, como ele dizia, eram dignos dos anos 80/90 quando teve a epidemia de AIDS e HIV e haviam todos aqueles estereótipos.

Samantha foi a única que quando ele contou olhou como um detalhe, algo que exigiria um cuidado a mais, mas que não interferia nos sentimentos que tinham. Mas, como Eric dizia, Samantha era inteligente. E de qualquer forma, eles terminaram um pouco depois de ele mudar de escola porque acabaram se distanciando.

Lembro que tinha uns quatorze anos quando descobri sobre ele ser soropositivo. Foi na primeira vez que vim para cá.

Lembro como fiquei encantado pela cozinha americana, de como passamos a tarde jogando e eu fui basicamente massacrado no Mortal Kombat e da sua coleção de gibis que até hoje me causava inveja.

A mãe do Eric chegara a noite do trabalho e me cumprimentou sorrindo antes de vir dar um beijo na cabeça do filho.

— Já tomou o remédio hoje? – ela perguntou, fazendo carinho no cabelo dele.

Eric estava sentado ao meu lado no sofá e ficou imediatamente tenso, me olhando pelo canto do olho enquanto negava.

— Vou tomar. – murmurou se levantando e indo rapidamente para cozinha.

— Remédio de quê? – perguntei e a mãe dele arregalou os olhos para mim antes de se voltar pro filho que olhava desconfortável pra sala enquanto pegava um copo d’água.

Eric hesitou, pegou um comprimido e engoliu junto da água antes de falar.

— HIV. Meus... Minha mãe biológica, ela tinha e... Enfim... – ele deu de ombros, me olhando como se esperasse que eu fosse levantar e sair correndo. Mas, eu continuei sentado, processando. Não sei se foi impressão minha, mas acho que naquele momento, ele e a mãe prenderam a respiração um instante. — Tem um tratamento, que ela não fez, para mães soropositivas terem filhos soronegativos. Mas, como eu disse, ela não fez, então...

— Ah, tá! – respondi voltando a atenção para a televisão. — Entendi.

— Você prefere ir embora? – Eric havia perguntando.

— Por que eu iria querer isso?

E aí, acho que eles voltaram a respirar.

— Normalmente... – ele soava hesitante enquanto voltava para sala. — É o que todo mundo prefere. Por isso eu não tinha amigos na minha sala antes de repetir... Eu contei para os amigos que tinha e eles espalharam pra todo mundo. Ficaram me chamando de “aidético” e “carimbador” pelo resto do ano. Foi um inferno. Meu pai quis processar todo mundo.

— Carimbador?

— Pessoas que passam HIV de propósito. – engoliu em seco enquanto falava e forçou uma risada ao acrescentar, as mãos tremendo. — E eu nem transo! Enfim... Acabei aprendendo ser melhor deixar essa informação só para mim.

— Ah. – mordi os lábios, sem saber o que dizer. Só pelo seu olhar ao explicar o termo percebi o quão medo ele tinha disso. — Bom, eu não quero ir embora. Vamos voltar a ver o filme?

Lembro que Eric riu e veio praticamente aos pulos para o meu meu lado.

— Valeu. E... É, valeu por não fazer perguntas. Eu odeio a parte das perguntas. – ele tinha dito sorridente enquanto sentava-se no sofá.

— Mas, eu vou fazer perguntas. Só que depois. Eu gosto desse filme. – respondi lhe dando um soquinho no braço. Eric riu de novo.

— De verdade, Mat, valeu não ir embora.

Lembro de olhar para ele confuso por um instante antes de voltar minha atenção para o filme. Essa lembrança me vem a mente com frequência. Demorei a entender o quanto importava para ele eu não ter dado as costas e o quanto isso me levava a um patamar de amizade diferente para ele. Eric estava acostumado às pessoas olhando diferente quando sabiam dessa condição dele, amigos, namoradas e até parentes, todo mundo olhava diferente. A sociedade é uma merda.

Ao longo dos anos, eu fui fazendo minhas perguntas. Nunca muitas de uma vez, apenas aos poucos, apenas para satisfazer minhas curiosidades sem transformar o diálogo num interrogatório.

Afastei a lembrança, voltando a me atentar ao presente.

— Quantos anos você tinha quando foi pro abrigo? – perguntei, hesitante, mexendo nas fotos no altarzinho do Diego.

— Três. – Eric deu de ombros ao meu lado, ajeitando as flores que eu tinha trazido. — Fui adotado com cinco.

— Isso é rápido?

— Ah... Sei lá. – ele deu risada. — Quer dizer, até que sim, mas... Um garoto branco, abaixo de dez anos e sem irmãos biológicos tende a ser adotado bem mais rápido que isso. Só não foi rápido porque ninguém quer adotar crianças doentes, só a doida da minha mãe.

— Você não é doente. – observei.

— É, mas a maioria das pessoas não sabe a diferença entre um vírus e uma doença. – ele deu de ombros. — A minha mãe sabia. Mas, ainda acho ela doida, afinal ela adotou o Diego.

— Adotar um guri de onze é doideira?

— Na verdade, não, é só modo de dizer. – Eric riu de novo. — Mas, muitas pessoas diriam que sim. Ninguém quer adotar criança grande, nem criança preta, nem criança doente, nem criança... Enfim, ninguém quer adotar criança!

Dei risada, balançando a cabeça. — Ninguém gosta de criança. Geral só gosta da ideia de ter uma.

— Exatamente. Querem o comercial de margarina, não a responsabilidade. – ele suspirou. — Eu dei sorte. Minha mãe realmente queria o trabalho de criar uma criança. Mais ainda, queria o trabalho de criar duas crianças que normalmente ninguém mais iria querer. E ela quer adotar mais, claro.

— Quer? – me virei para ele sorrindo.

—... A gente tá vendo... É difícil. Adoção é complicada, é demorada... Minha mãe não é tão exigente quanto a maioria dos pais que querem adotar, então... Não deve demorar tanto. E eu tenho que tomar meu remédio.

— Não tá na hora. – semicerrei os olhos.

— Eu esqueci de tomar mais cedo. – ele deu de ombros, me dando as costas.

Franzi a testa. — Esquece não! Você vai acabar morrendo se esquecer, filho da puta!

Ouvi a risada dele da cozinha enquanto procurava os remédios. — Eu não vou morrer, larga de drama que não funciona assim, tá legal? E relaxa, eu tomo todo o dia sem falta. No máximo eu confundo os horários, mas nunca esqueci de tomar um dia. E se algum dia eu por acaso esquecer, juro que vou correr para uma consulta com o infectologista.

Dei risada enquanto ia me deitar no sofá da sala.

Dormir na casa do Eric era sempre uma boa experiência:

Comida caseira feita na hora e não algo que foi feito semanas atrás e eu descongelei.

A mãe dele era presente, conversava com ele e conversava comigo também. Ela era um doce.

Comíamos sentados no chão da sala, conversando e assistindo novela. A mãe dele era noveleira.

E a melhor parte era ficar até de madrugada jogando no computador e conversando com o Eric, dávamos risada e... Por algumas horas, eu podia me sentir um ser humano normal e não um bicho estranho digno de todas as zoações possíveis.

— Quantos remédios você tem que tomar? – perguntei, observando-o da sala.

— Um só. – deu de ombros. — Tá vendo esse comprimido? Ele é três antirretrovirais em um. Antigamente, o coquetel era realmente vários remédios, hoje em dia é só esse. Tipo, existem outros remédios porque o vírus age diferente em cada corpo, mas, esse é o que a maioria faz uso. Um comprimido, uma vez por dia, todos os dias, sem falta até o fim da vida. Tudo isso porque os idiotas que me pariram não fizeram um pequeno tratamento para que eu não herdasse esse trem porque achavam que Deus os havia curado. E é assim, que o poder familiar é destituído e as crianças vão parar na adoção.

— Então, descobriram e você foi tirado deles? Sua guarda não devia passar pra alguém da família dos seus pais, ou sei lá?

— As famílias eram ainda piores até onde eu sei. – Eric fez careta. — Meu avô biológico largou o tratamento de câncer em fase terminal porque disse que Deus iria curá-lo. As autoridades viram que o melhor pra minha própria segurança era ficar bem longe deles.

— O quão ruim você tava quando te tiraram deles? – perguntei, decidindo que seria a última pergunta do dia.

Eric franziu os lábios e coçou o queixo.

— O exame mais antigo que eu tenho guardado é de quando eu tinha dois anos e meio. Não lembro a carga viral que tá lá, mas lembro que meu número de CD4 era cinquenta e um... A carga viral devia tá pra lá dos dez mil.

— CD4? – uni as sobrancelhas e ele sorriu. Entrar nesse assunto com Eric era descobrir um monte de palavras novas. PEP, PrEP, indetectabilidade...

— Células de defesa. – explicou. — O ideal para uma pessoa saudável é entre quinhentas e mil e quinhentas células por mililitro de sangue. Então, cinquenta era...

— Muito ruim. – constatei arregalando os olhos e ele deu de ombros.

— Tem números piores. Enfim, longe dos meus progenitores, eu comecei o tratamento certinho e logo meu número de CD4 normalizou e a minha carga viral ficou baixa o bastante para ser indetectável.

— A ciência é maravilhosa.

Ergui os olhos vendo a porta se abrir.

A mãe do Eric, Ana, entrou ao lado da namorada.

Ana era uma mulher baixa, de cabelos crespos e olhos pequenos, nariz arrebitado, lábios grossos. Lavínia era alta com músculos torneados e uma pele bronzeada, os braços cobertos de tatuagens e o rosto fino, o cabelo liso e loiro preso num rabo de cavalo alto.

— Oi. – cumprimentei, nervoso.

— Mathias! – a mãe do Eric largou a bolsa no chão e veio correndo me abraçar. Sorri sentindo o cheiro doce do perfume dela, enquanto era pego em um abraço apertado. — Há quanto tempo, querido! Que bom te ver!

— É muito bom te ver também, tia Ana. – sorri, apertando suas mãos enquanto ela me dava beijos na testa. — Como você tá?

— Ah, eu to bem! E você? E sua mãe?

— A gente tá bem! – sorri, encolhendo meus ombros e dando um meio sorriso, antes de voltar meus olhos para Lavínia. — Oi, prazer.

— O prazer é meu. – ela sorriu vindo pra perto de mim e estendendo a mão. Apertei. — Ana fala muito de você.

Senti meu rosto ficar quente enquanto rapidamente soltava a mão de Lavi.

 É... A mãe do Eric era legal.

E presente.

Minha mãe não conseguia folgar para ir nas reuniões da escola, então a Ana ia, via o que falavam do Eric e perguntava sobre mim, olhava minhas notas e trazia a pasta com minhas atividades.

Quando eu vinha aqui, ela me perguntava da escola, se eu tava bem, cobrava que eu me alimentasse melhor, perguntava sobre rapazes... E... Eu sei que minha mãe tem as razões dela para ser tão ausente, ela trabalhava muito, fazia o possível. Eu sei. Mas... Mas, era inevitável pensar às vezes que a mãe do Eric parecia mais minha mãe do que ela.

Me sentia mal por pensar isso, claro, mas...

Balancei a cabeça tentando afastar esses pensamentos.

— Já tomou o remédio hoje, Eric?

— Acabei de tomar, mãe. – ele respondeu, entediado.

— E a escola, como vai, Mathias?

Respirei fundo. — Ah, tá tudo uma merda!

Tia Ana me lançou um olhar de repreensão e eu dei de ombros.

— Desculpa. Tá horrível. Bom... Minhas notas estão caindo.

— Por quê?

— Porque eu não tenho paz pra prestar atenção quando os professores explicam! – dei de ombros. — As implicâncias estão... Ficando mais constantes.

Eric bufou do meu lado.

— Mais constantes como?

Dei de ombros. — Não sei explicar. Antes eram uns empurrões fracos, mas agora são mais fortes. Antes só me derrubavam no chão e seguiam a vida, agora param pra me chutar... – cerrei os lábios.

Lavínia fez careta. — Que filhos da puta!

— Amor!

— Desculpa, meu bem. – Lavínia encolheu os ombros pegando a mão da namorada.

Tia Ana odiava palavrões. Odiava nível quase colocar o Eric de castigo por três semanas sempre que ele falava algum perto dela.

— Mas, eles são isso mesmo. – concordei. — É difícil prestar atenção quando se está tenso e eu fico tenso demais! É como se a qualquer segundo fossem fazer algo comigo!

— Você tá sempre esperando um ataque. – Eric murmurou do meu lado, unindo as sobrancelhas. — E se você mudasse de escola ano que vem?

— Mudar de escola no último ano não é boa ideia. - dei de ombros. — Só vai atrapalhar meus estudos.

— Estudar lá atrapalha seus estudos! – ele gritou, irritado. — Porra, cara! Muda pro Manje, pro Vieira, Calhim, sei lá, só muda! Qualquer colégio é melhor que aquele!

— Eric... – a mãe dele chamou sua atenção antes de vir se sentar no braço do sofá, me olhando com atenção. — Mathias, querido, você tem certeza que vale a pena?

Encolhi os ombros. — Eu acho... Que não, mas... É... Sei lá. Toda escola tem bullying, então... Não ia adiantar muito trocar. Melhor o diabo conhecido do que o desconhecido.

— Vocês fazem de propósito, não é? – tia Ana cerrou os olhos para mim antes de pegar minhas mãos. — Amor, você já falou com sua mãe sobre tudo isso?

—... A gente não conversa muito.

— Sua mãe é legal, Mat. – Eric suspirou. — Podia ser bom falar com ela.

— A gente não tem tempo pra conversar! – bufei.  — Ela trabalha muito para conseguir me manter lá! Você quer que eu faça o quê? Diga pra ela “valeu seu esforço pra manter num bom colégio por nove anos, mas eu quero sair porque aquele lugar é horrível e não to nem aí pro tanto que você se esforça!”

— Tenho certeza que ela não vai ver assim. – Lavínia suspirou. — Amor, eu vou fazer o jantar, tá bom?

— Obrigada, meu bem. – Ana sorriu, corando um pouco enquanto a namorada ia para a cozinha.

Ela e Lavínia trocavam olhares, muitos olhares, o tempo todo. Elas estavam aqui a menos de cinco minutos e eu já tinha conseguido reparar no quanto se olhavam e em como se olhavam o tempo inteiro.

Ficavam bem juntas.

— Mathias, querido... Você já tentou falar com alguém da direção?

— Oh, mãe! E aquela direção lá já fez alguma coisa? – Eric bufou e bom, ele tinha experiência própria nesse assunto.

—... Realmente. Sem provas, sem punição. É quase o lema de lá. A melhor coisa que o seu pai fez foi se despedir daquele lugar. Levar a direção não ia adiantar nada.

— Eu realmente acho que você devia pensar em mudar de escola. – Eric suspirou. — Enfim... Sabia que tem uma academia perto da sua casa que dá aula de Muay Thai e autodefesa? Eu não to dizendo que a violência é a saída, mas... A violência é uma opção. E você devia ficar ciente disso.

— Eric...

— Eu só to mostrando as opções, mãe. – ele deu de ombros. — Chega desse assunto, vamos jogar enquanto o jantar não fica pronto.

— Vamos.

***

Doze vitórias depois, Eric já estava cansado de vencer e me olhava irritado enquanto eu mexia no celular, sem dar atenção.

— Ok, o que tá rolando? – ele questionou, dando um chutinho no meu ombro, o que só foi possível porque ele estava sentando na beira da cama enquanto eu estava no chão gelado. O quarto dele era abafado para caralho.

Suspirei. — Só to preocupado com o Ícaro, só isso.

— Arre! – ele me olhou feio, dando pause no jogo e se levantando da cama, vindo sentar ao meu lado no chão.

— Rolou uma coisa... – tentei explicar, cutucando os azulejos que imitavam madeira.

— O que você fez?

— Por que acha que eu fiz alguma coisa? – arquei a sobrancelha, ainda focado no meu celular. — Não fiz nada, sério. Ícaro tá com problemas, só isso.

— Que tipo?

Hesitei.

Provavelmente não seria bom eu contar todo o trauma do Ícaro com cachorros, então devia ser melhor eu ser o mais superficial possível.

— Ícaro... Passou por uma situação um tanto traumatizante, anos atrás, que fez ele ficar meses sem sair de casa e... Rolou um negócio que fez ele reviver essa situação e agora...

— Entendi. – Eric fez careta. — Quando você virou terapeuta?

Olhei feio. — Eu só to preocupado, ele não me responde, tenho medo de ele tá mal. Não sou terapeuta, mas... Você também não é e me aguenta quando eu to mal, então isso não é argumento. Eu tenho direito a ficar preocupado com meu namorado quando ele some.

— Justo. – ele suspirou franzindo os lábios. — Olha, eu não faço ideia do que aconteceu com ele, mas na minha experiência, a pior parte de se afastar de algo é quando a gente tem que se reaproximar e ver tudo que mudou enquanto tava longe. É pior ainda se estávamos longe por razões tristes.

— Como você sabe isso? – perguntei, bloqueando meu celular e desistindo de mandar mensagens por hoje.

— Porque depois que o Diego morreu, eu fiquei meses na casa da minha prima em outra cidade. – Eric abaixou a voz, os olhos ficando perdidos. — Quando voltei tudo parecia diferente. Minha família tava diferentes, minha casa tava organizada de um jeito diferente, até a rua parecia diferente... E eu era o único que parecia não encaixar. Foi difícil me reacostumar porque não era só o lugar e as pessoas que tavam diferentes. Eu também tava. A dor muda a gente, sacou?

— Saquei.

Eric assentiu para o nada e respirou fundo, como se tentasse afastar aqueles pensamentos nebulosos da mente.

— A vontade era ir embora. Era desistir de tentar ficar ali. – ele murmurou. — Eu realmente quase desisti... Se não fossem meus pais me obrigando a continuar indo pra escola... Cara, sei lá o que podia ter acontecido.

Hesitei. Eu já tinha decidido não fazer mais perguntas, mas naquele instante não pude evitar:

— Como era com você quando as pessoas da escola descobriram sobre você ter HIV?

Eric respirou fundo. Ele não gostava de falar disso, eu sabia que tinha sido mais sério do que o que acontecia comigo porque os pais dele realmente chegaram perto de processar várias pessoas. Mas, não sabia bem o que aconteceu.

—... Expor a soropositividade de alguém com intuito de humilhá-la é crime. Já começa daí. - ele começou, a voz baixa. — No geral, era o básico do isolamento. Não me deixavam chegar perto, nada de trabalhos em grupo ou provas em dupla, igual com você. Faziam piadas... Riscavam minhas coisas com palavras como "aidético" e "veado" porque, você sabe, LGBTS são grupo de risco do HIV então, automaticamente concluíram que eu era. Eu descobri a quantidade de piadas relacionando gays com HIV e, caralho, são muitas, mesmo! Homofobia é mesmo uma merda.

— Eu sei. - concordei apoiando a mão no queixo.

— Enfim... Como eu disse, eram inteligentes. Então só o que precisaram fazer pra minha vida virar um inferno foi... - parou e respirou fundo. — Eu não sei quem, mas alguém expôs meu número de celular. Eu não contei pros meus pais porque fiquei com medo... Mas eu recebia várias mensagens de números desconhecidos desde mensagens falando pra eu me arrepender e ameaças de morte, gente falando que eu devia me matar até gente falando que isso era a "justiça divina" pelos meus crimes. Também tinha gente legal de ONGs, psicólogos especializados em atender quem tinha em HIV, eu fiz amizade com  galera, sério. Mas... A maior parte era ridícula. Eu era só uma criança! E eu não sei quem foi, mas... Alguém pichou "aidético" no portão de casa. Considerando a proporção que tomou, pode ter sido gente de fora da escola.

— Meu Deus! - arregalei os olhos.

Eric fungou virando o rosto. — Quando picharam o portão, não deu mais para esconder, então eu contei pros meus pais. Tive que mudar de número. Aí, eu perdi a paciência, bati em um garoto e fui suspenso. O Diego disse "dane-se, se falarem de novo, você bate mais forte." Meus pais começaram a brigar com a direção, procurar escolas pra me transferir e tal. Aí o Diego morreu, eu fiquei meses sem ir pra escola e quando eu voltei... Alguns começaram a fazer piada com a morte dele.

— Tá zoando, né? - minha voz não passou de um múrmuro. Eu sei que as pessoas da escola são cruéis, mas aquilo...

— A gente estudou com um monte de psicopata, Mathias. É a única explicação! - ele deu risada, tentando esconder os olhos vermelhos. — Enfim, eu comecei a realmente responder no soco e aí diminuiu... E aí eu repeti e fiquei com fama de brigão. Foi isso. Eu tinha uns doze ou treze anos e fizeram isso. Não mudei de escola nessa época porque como minha mãe tinha perdido o emprego, o dinheiro ficou muito apertado e meu pai achou melhor eu continuar lá, mas ele disse o mesmo que o Diego. "Se alguém falar algo, você mete um soco."

Respirei fundo tentando imaginar a situação. Um mini Eric que tinha acabado de perder o irmão e sido exposto para basicamente todo mundo aguentando tudo aquilo e ainda aguentando os professores chamando sua atenção por não conseguir se concentrar nas aulas ou acompanhar a matéria. Parecia pior do que o inferno.

—... Eu não sou uma pessoa violenta, cara. Não gosto de apelar pra agressão. É só que... Às vezes, a gente realmente não tem outra opção. - ele deu de ombros. — Mas, não se engana. Eles só queriam um pretexto pra entrar na minha cabeça e zombar comigo, assim como eles só queriam um pretexto pra zombar com você. Qualquer escorregão ia te fazer ser assombrado pra sempre.

— O que quer dizer?

— Que eu estudei lá de graça porque meu pai trabalhava lá. E que você recebe oitenta por cento de desconto. E que é uma escola pra quem tem dinheiro. - Eric deu de ombros. — Quem tem dinheiro não quer dividir sala com pobre. E a direção não faz nada justamente porque se a gente sair de lá, entra alguém que paga, entendeu? A vida é uma merda. Se não fosse por você ser gay, ia ser por sua mãe ser mãe solteira, se não fosse por isso ia ser por outra razão. Eles iam achar uma razão pra mexer com a sua cabeça. As pessoas são um lixo.

Cerrei os lábios tentando pensar no que dizer. Ele tinha razão, estudávamos com psicopatas.

Meu celular vibrou no meu colo e imediatamente eu o desbloqueei, ansioso.

— É o Ícaro?

— Aham.

— Vou ver se o jantar tá ficando pronto. – Eric sorriu se levantando.

— Aham. – murmurei.

Abri o chat, com os dedos tremendo.

[Ícaro]
Oi

 

[Mathias]
Oi
Como vc tá?
N me responde tem uns três dias
Fiquei preocupado

 

Como eu imaginava, ele ignorou minha pergunta.

 

[Ícaro]
Vc pode vir aq amanhã?
N quero ficar sozinho em casa

 

[Mathias]
Claro

 

[Ícaro]
Se n for incomodar claro
N quero te atrapalhar
Se for atrapalhar n precisa vir

 

[Mathias]
N vai atrapalhar
Te vejo amanhã ♥

 

[Ícaro]
Ok
To com saudade

 

[Mathias]
Eu tbm
To com MUITAAAA saudade ♥

 

[Ícaro]
Desculpa

 

[Mathias]
Pelo que tá se desculpando?

 

Ele parou de responder.


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Notas finais do capítulo

Ícaro se desculpando me partiu o coração



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