Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 5
Bela Droga




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796659/chapter/5

Chegou rápido a entrevista de Milena e Patrick. Estavam bem ansiosos. Era praticamente a única chance que tinham antes das contas vencerem. O curioso era que Milena só tinha tido um emprego de carteira assinada na vida, e ele tinha sido em uma lanchonete também. Ela tinha trabalhado por dois anos no vilarejo,  como assistente, assim que terminara a escola, até o estabelecimento fechar. Depois, só conseguiu o freelancer do início da história, que não lhe chamou mais. 

Enquanto caminhava com Patrick até a lanchonete do seu Xisto, eles foram conversando:

— Sabia que eu nunca consegui fazer um amigo de verdade tão rápido assim?  Quer dizer, a gente se conheceu outro dia e já estamos aqui, um ajudando o outro...

Milena na verdade, até então, só tinha como amigos os outros moradores do seu vilarejo de origem, pessoas que praticamente conhecia desde que nasceu. Não imaginava que se podia estabelecer uma conexão tão forte com alguém que conhecia há pouco tempo.

— Ahh, mas nenhum de nós aqui podia se dar ao luxo de negar ajuda! - Comentou Patrick, rindo. Milena começou a rir também, concordando, até seus olhos encontrarem os de uma senhora idosa do outro lado da calçada, sentada no chão, suja, e com as roupas em péssimo estado.

— Bem, pelo menos a gente ainda tem um teto e roupa lavada.

Milena se sentiu mal pela moradora de rua, porém, se parasse para falar com ela poderia perder a hora da entrevista. Então passou direto e entrou na lanchonete, mas não sem um incômodo na consciência. 

Lá dentro, haviam mais umas cinco pessoas além de Milena e Patrick. Pelo visto, não estavam atendendo naquele dia. O seu Xisto falava, na frente de todos:

— Procuro alguém sem medo de serviço pesado. Quem for contratado ganhará um salário mínimo, mais auxílio alimentação.

Depois foi chamado um por um para o escritório dele, onde precisavam responder perguntas quanto aos dados pessoais.  No fim, todos foram dispensados sem saber quem seria contratado.

— Veja pelo lado bom, Milena: se você não for contratada, provavelmente eu também não serei. Você não estará sozinha em sua derrocada. - Completou com risos de escárnio.

Milena não prestou muita atenção. Estava observando a rua, vendo se a senhorinha ainda estava por lá. Mas ela já parecia ter ido para outro lugar.

No dia seguinte, os celulares de Patrick e Milena tocaram juntos. A moça conseguia ouvir o celular do seu vizinho de baixo tocando a versão brega-funk de “DORIME”enquanto atendia ao seu próprio, cujo toque era “93 Milion Miles” do Jason Mraz.

Era seu Xisto e seu sub-gerente informando que os dois tinham sido aceitos para o emprego. Eles trabalhariam em turnos alternados. Milena de 8 às 14hrs e Patrick de 14 às 20. Ficaram um pouco desapontados por não trabalharem juntos, mas os dois serem contratados já era bom demais.

 Mas durou pouco a paz no sobrado. No mesmo dia, de noite, Patrick recebeu uma mensagem curta e breve do pai, informando que ele tinha sido diagnosticado com câncer de pulmão. O rapaz teve vontade de ignorar completamente a ausência do pai nos últimos anos e sair procurando onde quer que seu velho estivesse nem que fosse só para dar um abraço nele, porém não podia, pois teria que trabalhar no dia seguinte. Milena lhe ajudou a se acalmar mostrando que, com o emprego, poderia tentar juntar dinheiro para passar uma temporada na cidade do pai. Só teria, infelizmente, que esperar.  O rapaz tentava não transparecer, mas o tempo, na condição do pai, era o que mais lhe preocupava.

 

Milena deveria estar feliz no seu primeiro dia de trabalho, mas não estava. Além de estar preocupada com o emocional do amigo, encontrou a mesma senhorinha do outro dia, sentada na calçada, e dessa vez tossindo. A moça chegou rápido no celular o horário. Estava bastante adiantada. Resolveu tentar falar com a idosa. 

Assim que se aproximou, notou que o olhar da moradora de rua ganhou brilho. Milena ficou lhe encarando, comovida, tentando escolher as melhores palavras para usar naquela situação. 

— Oi, eu trabalho naquela lanchonete. - Milena disse apontando para a loja de seu Xisto. - Você quer que eu arranje algum sanduíche para você?

— Me diga, qual o sentido da vida deles?! - Disparou a idosa, de repente. - São gente mas fingem ser algo acima...

A moça logo entendeu que ela devia estar delirando. Então assumiu que isso era um forte sinal de que seria bom sim trazer um pouco de comida para aquela moradora de rua tão magra. No seu horário de almoço, faria um sanduíche e levaria para a senhora. Depois era só descontar do seu salário. 

Dito e feito, assim que deu 11 horas, seu horário de almoço, ela embrulhou um sanduíche e levou até a senhora que ainda estava lá, sentada no mesmo lugar. Silenciosamente colocou a comida nas mãos dela. A velha não se fez de rogada, desembrulhou rapidinho e começou  a comer. Depois de umas três mastigadas, perguntou à Milena o que ela fazia da vida, o que foi respondido com orgulho, depois de tanto tempo desempregada: ajudante de cozinha na lanchonete do seu Xisto!

— Mas que bela droga! Esse povo pega a primeira porcaria que aparece. Tanto que pensei e repensei e não achei que fosse outra coisa. Você devia ser cantora.

Ainda resmungou um pouco com o mundo, dizendo que se ele estivesse rodando direito era isso que a mulher parada na sua frente devia estar fazendo: cantando. Então, como se não bastasse isso tudo, a senhorinha começou a cantar com uma voz linda e impecável, a música “Além do Horizonte”. Milena tinha crescido ouvindo os discos de Roberto Carlos, Erasmo e toda a Jovem Guarda que o pai tinha, então quase automaticamente, sem perceber, acabou acompanhando a senhora.

— Espera! Como você sabe que eu… já gostei de cantar?

A idosa não deu ouvidos e começou a cantarolar outra música; agora era Rita Lee. Milena ficou parada, de pé, atônita ao lado da senhora que quase dava um show no meio da rua. Então a senhorinha estendeu os braços frágeis, quase como que implorando para que a funcionária da lanchonete voltasse a cantar com ela. Tremendo de insegurança, ela voltou a acompanhar bem baixinho.

— Está vendo? O povo clama por sua voz!

Mas não havia mais ninguém na rua. Milena tentou, com toda a paciência, explicar isso, recuperando um pouco de sanidade à idosa. A velhinha então, novamente se sentou na calçada e voltou a olhar a rua com um olhar desanimado.

— Er...bem. Me desculpa, mas eu preciso voltar ao trabalho agora.

— Não, eu que preciso me desculpar… Mas é que você me fez querer voltar a cantar!

Se sentido tocada, Milena permitiu-se dizer baixinho:

— O prazer foi todo meu.

Voltando para a loja, um homem que trabalhava no caixa, comentou com desdém:

— Eu vi daqui a cena. A sua Broadway com a mendiga velha. Chegou num dia e já está causando? Ai, ai, esses desqualificados...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!