Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 4
Pipoca e Sardinha




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Milena podia dizer que tinha azar na vida. Foi para a cidade grande pensando em melhorar um pouquinho a condição da família, mas ela mesma estava à beira de um colapso financeiro. Nunca teve regalias; presente de natal era o mesmo de aniversário; dia das crianças, um abraço e olhe lá. Ainda tinha perdido a mãe cedo… por isso sempre gostava de assistir aquelas histórias recheadas de tragédia e superação, como 2 Filhos de Francisco; Quem Quer Ser um Milionário; A Teoria de Tudo; O Náufrago e até mesmo os filmes do Rocky Balboa. Enquanto assistia essas coisas ela se permitia se sentir um pouquinho melhor. 

Para música ela tinha um gosto bastante eclético. Só não suportava uma certa ídola fabricada por marqueteiros. Por que para uma, tudo era tão fácil e para a outra, nada parecia ser tranquilo de conseguir?

Cansada depois de um dia inteiro caminhando de uma ponta a outra de Brasília com seus currículos, e sem ter nenhuma candidatura eletrônica respondida, Milena resolveu ligar para seu pai, Antônio. Ele não sabia mexer com redes sociais muito bem, nem com smartphones, então um telefonema era mais garantido. Da primeira vez que chamou, deu ocupado. Da segunda, ele atendeu com uma voz de cansado porque tinha passado o dia todo fazendo concerto na casa da vizinha.

— Mas tá tudo bem aí em casa?  E a Maninha? - Milena preferiu tirar o foco dela na ligação, para evitar de contar sobre seu problema com as contas do próximo mês. Antônio certamente ficaria furioso com Ana, que ele chamava de “prima desmiolada”, por ela ter garantido que Milena conseguiria um emprego se fosse morar em Brasília. 

Antônio morava no vilarejo desde que nasceu e era extremamente apegado ao seu “pedacinho de chão”. Amava conhecer cada cantinho do lugar, o cheiro de ar puro que sentia por lá, caminhar vendo as fazendas do entorno… Aprendeu o ofício de encanador sem fazer cursos, só ajudando um sítio que tinha muitos vazamentos. Até que cansou de trabalhar nessa terra e começou a vender seus serviços. Ele andava às vezes, até as cidades pequenas próximas, procurando seus “bicos” para fazer. Foi em uma de suas primeiras andanças pelas regiões vizinhas que Antônio conheceu Manoela, mãe de Milena.  Quando se casaram, ele tinha 27 anos e ela, 25. A primeira filha foi Milena, nascida no final de 1990 e batizada com um nome em homenagem ao novo milênio que se aproximava. Dar nome com homenagem ao tempo foi algo que a irmã de Antônio também fez, chamando sua própria filha de Ana, referência a “ano” pois a menina nascera dia de ano novo. Também Débora, a irmã caçula de Milena, ganhou esse nome por ter nascido uma década depois do casamento dos pais. 

A casa onde Milena nasceu e cresceu era bem pequena e simples, na beira de uma rodovia. Quando saiu de lá, as paredes do banheiro estavam em um estado decadente. Por isso, fez questão de perguntar:

— E a obra do banheiro? Conseguiu começar?

— Ah, sim. Consegui negociar os rebocos com o armazém da esquina. Já tá tudo coberto de argamassa. Precisa ver a cara da sua irmã com a lambança que tá! - comentou rindo. Milena riu também.

— Eu imagino.

De repente, um som muito alto vindo de fora impediu Milena de continuar ouvindo a ligação com clareza.

HOJE TEM GOL DO RIBAMAR! RIBAMAR! HOJE TEM GOL DO RIBAMAR"

— Mas que porcaria é essa?!

Milena tampou o microfone de seu celular com a mão e seguiu a direção de onde vinha o som. Descendo as escadas do sobrado parou em frente à porta de Patrick, onde o som estava ensurdecedor. Começou a dar murros, gritando:

—  Ôôu, abaixa aê, amigo!

Levou alguns instantes até o som ser desligado. Logo em seguida, Patrick abriu a porta com uma camisa autografada do Vasco, um balde de pipoca e a TV ligada num programa de pré-jogo.

— E aí, Milena?! Quer assistir ao clássico de hoje?! Jogo contra o Flamengo sempre promete!

— Ahn… não. Na verdade eu vim pedir pra você abaixar o som mesmo. Eu tô numa ligação com meu pai e não conseguia ouvir nada!

Patrick murchou na mesma hora.

— Caramba, desculpa! Eu não sabia… Acho que realmente me empolguei demais. Mas, ei, pode passar aqui depois, se quiser, mesmo assim, tá bom?

Milena acenou com a cabeça, voltando falar no telefone com pai. Mandaram muitos abraços e beijos um para o outro e se despediram direito. Desligou o telefone cheia de saudades, mas se encaminhou para a sala de Patrick, já que este deixara a porta encostada. Assim que entrou, viu ele vindo da cozinha com um prato de arroz, feijão e sardinha.

— Achei melhor deixar o restante da pipoca para você e adiantar a minha “incrível” janta. Mais gourmet impossível, não? Senta aí! - disse indo para o sofá com o prato na mão e indicando um lugar ao lado dele. Milena se sentou, rindo do jeito bagunçado dele. Patrick acabou rindo também.

— Mas então… deve ser legal ter um pai com quem você possa conversar quando quer. O meu, nem que eu vá até a casa dele, com toda a empolgação do mundo. É capaz dele virar as costas e nem me olhar na cara. 

Milena encarou o amigo meio abismada.

— Ah, ele tem lá os problemas dele, talvez seja melhor me manter afastado mesmo. - Patrick falou, dando de ombros. Então mudou de assunto - Deixa eu aumentar só um pouquinho mais o volume, que eu acho que é hoje que o Vasco dá uma surra no Flamengo! 

A vizinha de cima pareceu não se empolgar tanto.

— Foi mal, Milena, você aí cheia dos seus problemas e ainda fui te encher com os meus… Eu quis te chamar pra te alegrar um pouco, mas como sempre, eu nunca faço nada direito!

— Sabe do que a gente realmente precisa? Independência. Mas não essa de simplesmente sair de casa e viver de merreca encalacrado pelo resto da vida… Indepência para conseguir fazer bem tudo que precisar, um salário decente ao menos. Céus, isso não era um direito básico?

Patrick de repente deu um pulo no sofá, se lembrando de algo.

— Você já conheceu a lanchonete do seu Xisto? Eles iam fazer uma seleção para ajudante de cozinha. Eu iria me candidatar, se soubesse fazer mais do que sardinha enlatada e pipoca de microondas. Talvez você tenha mais chance.

— É aquela do fim da rua? Ainda não fui. O cheiro de salgado na esquina dela é tão bom que eu tenho medo de entrar lá e não poder comprar nada. - comentou rindo.- Mas no meu desespero, acho que vou tentar sim.

Patrick esticou o braço por trás dos ombros dela e falou sorrindo.

— Tenta sim. Se eles não te contratarem, são uns idiotas e vão estar perdendo a maior chance deles.

Milena riu alto.

— Eu acho então que você também devia tentar. Sempre pode ter uma vaga reserva no caixa.

Ele se aprumou.

— Sabe que você tem razão? Meu último emprego eu consegui fazendo entrevista  para ser vendedor. Fui contratado como telemarketing. Foram dois anos de pouca glória, até eu ser mandado embora. Mas pelo menos rendeu um salário… Foi como eu consegui pagar o aluguel daqui nos últimos anos. É isso, Milena, você vai conseguir o dinheiro pra pagar seu aluguel sem ajuda da Ana, lá na lanchonete do seu Xisto, escreve minha profecia aí!- comentou pondo as mãos na testa.

— Devagarzinho e sempre  a gente chega lá. - Ela disse propondo um brinde com a pipoca dela e o prato de sardinha dele.


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