Hölle escrita por Dev Lish


Capítulo 14
Aftersome


Notas iniciais do capítulo

Gente que inferno os traços que eu uso pra marcar diálogo viram pontinhos no sistema do nyah, pqp



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A mão em minha nuca é firme como aço, cinco dedos humanos me mantendo imóvel, como se eu fosse um cachorro ou outro bicho raivoso e perigoso.  De fato, queria ser um. Queria poder morder, rasgar, arranhar, destruir. Mas não posso. Não posso sequer fazê-lo ouvir meus insultos, com meu rosto firmemente pressionado contra a mesa de madeira. 

— Assim… você parece com a sua mãe.

 

Eu sei que pareço com ela, já ouvi isso um milhão de vezes. Dele, dela, do meu pai, de toda pessoa que nos encontrava na rua. Não aguento mais o fardo de nós termos a mesma cara. 

— Você pode gritar, ninguém vai ouvir.

 

Ele me puxa pelo cabelo, arqueando minha coluna em um ângulo tão desconfortável que mastigo minha bochecha para conter o som. Eu não vou gritar. Eu não vou dar essa satisfação a ele. A dor não me distrai como pensei que faria, agora preciso suportá-la, em silêncio, duas vezes. 

— O que foi? Vai bancar o difícil agora? Ahn? AHN? 

 

A frase é pontuada por puxões no rabo de cavalo enrolado em sua mão. Não é meu cabelo, eu penso. Não sou eu, não sou eu, não sou eu. Repito como um mantra em minha cabeça. Ele pode fazer o que quiser com meu corpo, mas é incapaz de controlar as coisas que penso. E eu penso.

E eu não estou curvado sobre a mesa da cozinha. Eu estou enfiando as mãos na terra da praça, estou ouvindo minha mãe cantar e sentindo um leve sopro em minha franja, estou caminhando de mãos dadas com meu pai.

O líquido quente escorre por minhas pernas, mas em minha cabeça é o sorvete que derrete antes que eu consiga comê-lo. Você não tem poder aqui, repito triunfantemente em minha cabeça.



Os dedos, os mesmos que estavam fechados em punhos nas memórias, desliza por minhas costas, traçando um padrão invisível.  Minha língua pesa em minha boca e meus lábios se comprimem. Confino as palavras dentro de mim. Encontro plausibilidade em todas as ações de Dana. Se eu tivesse que conviver com essas memórias, não gostaria nem que olhassem para mim.

E ainda assim, Dana, de olhos fechados, confia que eu não faria o mesmo. 

— Não tem nada que você queira me perguntar? - Dana sussurra, sua voz sonolenta. Talvez ele já esteja dormindo quando eu responder.

Resisto ao puxão familiar. A respiração de Dana se aprofunda - sinto contra meu peito o subir e cair do seu. 

— Não. Pode ir dormir. Eu te acordo na hora de voltar para casa.

— Hm.

 

 

Dana suspira em seu sono, as pálpebras arroxeadas tremulando. O mínimo que posso dar a ele, depois de tudo que já arranquei de suas mãos, é uma noite de sono.

Seguro Dana contra mim. Sua figura adormecida trai tudo o que sei sobre ele. A leveza no arco de seus lábios, o cenho liso, os ombros relaxados. Ele não parece com o garoto subjugado de suas memórias, nem com o garoto reprimido que eu conheço. O suor derreteu sua maquiagem e o gloss se perdeu entre um beijo e outro; o cabelo, antes cuidadosamente penteado para trás, cai sobre suas bochechas. 

Afasto uma mecha de sua testa e beijo a pele exposta. 

Sinto necessidade humana de dormir, derivada da vontade de escapar de tudo, mesmo que por algumas horas. Fecho os olhos, posso fingir um pouco. Amanhã, Dana vai voltar para casa e, querendo ou não, eu devo acompanhá-lo. Lucifer disse que eu tinha todo o tempo do mundo pra completar a tarefa. Assistindo Dana dormir, não sei se é o suficiente. 

 

Ele pula da cama antes mesmo de abrir os olhos. Seu rosto carrega a palidez cadavérica e familiar, olhando para ele seria impossível imaginar que ele poderia corar como há algumas horas atrpas. Dana olha ao redor furtivamente, seu cenho franzido deixa claro que ele está tentando organizar a noite passada em sua cabeça. Duas vezes ele me inspeciona, procurando algum sinal físico e não encontrando nada em minhas roupas recém materializadas.

— Bom dia.

— O que eu fiz…?

Dana toca sua própria cintura, seus dedos percorrem o nó do lençol que envolvi nele quando percebi que talvez fosse bom ele não acordar com uma cena tão chocante.

— Ahn, muitas coisas. Muitas coisas. Você quer um resumo?

— Por favor, sim.

—  Você foi pra festa de halloween com a Elisheva, bebeu, pediu pra ir pra casa mas não a sua, me atacou na saída, me sed-

— ENTENDI. Eu entendi.

Ele esconde o rosto nas mãos, mas elas não cobrem o rubor que alcança suas orelhas. 

— Acho que eu preciso ir pra casa. A Eleonora deve tá preocupada.

— Você sabe? - Dana espia entre os dedos - Como chegar em casa?

— Você pode me indicar o caminho? - Dana pergunta em uma voz minúscula.

— Eu vou te levar. Tem roupa dentro daquela gaveta.

Saio do quarto sem esperar a resposta. Era esse o cenário que queria evitar. Dana não me olhou nos olhos nenhuma vez.

 

Eu tô pronto. - Ele abre a porta e, por deus , Ele está pronto.

Algumas coisas da vida eu queria ter experimentado antes. Ver Dana em roupas maiores do que ele e seu rosto amassado de sono definitivamente não era uma delas, mas não estou reclamando. Meus olhos voam para seu pescoço, onde a gola larga do suéter preto expõe marcas vermelhas e arroxeadas.

— Você tem… um pouquinho… - Se eu contar e ele cair morto, minha tarefa seria considerada cumprida?

— O quê? - Dana pergunta, as sobrancelhas franzidas e os olhos semicerrados.

— Deixa pra lá.

Bellona não faz uma aparição quando descemos a escada que range a cada passo, nem quando Dana bate a porta da frente, mas a vejo acenando da janela quando dou uma última olhada na casa. O sol ainda não nasceu. Caminhamos em silêncio na madrugada fria e tudo o que se passou parece tão distante, como se eu tivesse nascido em um dia e em conhecido Dana no outro.

Ele murmura com a cabeça baixa, fitando seus pés contra o asfalto. Seu rosto corado, de frio ou vergonha, se esconde do meu e ele inquire.

— Foi um sonho? 

Dana não precisa elaborar.

— Não.

— Eu, ahn, não seria a primeira vez então eu só queria ter certeza.

— Se você pudesse se ver, não teria nenhuma dúvida. - Dana me dispara um olhar alarmado.

— O que?

— Nada.

— Porque você é tão evasivo? - A mais ínfima irritação ecoa em seu tom.

— Eu não sou.

— É.

— Não sou.

— Então eu posso fazer uma pergunta e você vai responder seriamente?-

— Sim.

Você acha que eu sou… uma pessoa, ahn, uma pessoa - Dana se interrompe, ele dança ao redor da palavra mas não ousa dizer-la. Posso imaginar o que seja.Promíscua? - Dana se arrepende assim que fecha a boca, e ao mesmo tempo eu digo:Irritante?

De todas as palavras que eu associo a Dana, não há nenhuma sequer no mesmo campo semântico que promíscuo. Talvez fascinante .

O que faz você pensar que-Você disse que responderia.Ah, não. - depois de considerar em silêncio, repito o pensamento em voz alta. - Talvez fascinante . 

Dana congela no lugar.

O que?É o que eu acabei de falar.Muito obrigada pela companhia, eu já sei o caminho.

E ele dispara rua abaixo. Se eu dependesse do meu fôlego humano, Dana não me veria até a hora do almoço, mas eu não dependo. Dana mal expressa surpresa ao me ver correndo do seu lado.

O que? Porque você está correndo?Você… vai… me…matar… de vergonha… um dia desses.- Ele diz, ofegante e sem diminuir o passo. O vermelho intenso em seu rosto poderia ser do esforço ou de constrangimento, ambos são plausíveis.

Se Dana morasse em qualquer outra vizinhança, alguém já teria chamado a polícia ao vê-lo correndo como se sua vida dependesse disso.  

Dana, para. - Ele me ignora, os olhos fixos na última esquina que ele precisa virar antes de chegar na sua rua.

Dana, para

As palavras não são ditas em voz alta. Eu as insiro em sua mente vulnerável. É um comando que ele não pode desobedecer, queira ou não. Dana me olha de esguelha, completamente confuso. Ele se agacha no asfalto, arfando como um peixe na areia. 

Melhor?O que você fez?Uma sugestão. Você consegue andar ou precisa de ajuda?É claro que eu consig-

Imóvel.

O levanto do chão com o mesmo esforço que seguro um livro. Não é por conta do comando, mas Dana me encara em silêncio. Consigo sentir seu coração acelerado e sua respiração errática contra meu pescoço.

Me desculpe. Eu envergonhei você, essa não era minha intenção.

Dana arregala os olhos, suas mãos cruzadas sobre seu colo. Ele não aceita nem rejeita, mas também não protesta durante o curto percurso. 

Paro na frente da casa de Dana - a casa de Amatore, de Eleonora. O coloco no chão. 

Livre.

Dana não se vai de imediato. Ele dá dois passos, para e, sem se virar, diz:

Eu lembro, eu gostei, eu estou mortificado por isso, mas você não precisa ir embora por minha causa.Se você diz.

Dana faz a caminhada da vergonha até a porta da frente. Ele vira a maçaneta, empurra a porta, mas ela não se abre ou cede. Ele fecha a mão para bater, olha sobre o ombro e muda de ideia.

Dana circula a casa até a janela do seu quarto e, para sua felicidade, ela está destravada. A janela é alta o suficiente para que Dana olhe seu quarto, contudo, quando ele tenta se erguer e segurá-la aberta ao mesmo tempo, ele escorrega e o estrondo do vidro caindo deve ter acordado todas as casas ao redor.

Dana não me pede. Ele encara a janela como se esperasse ela se abrir sozinha. 

—  Sobe. - Estendo os braços ao lado da janela. 

 Ele não pensa duas vezes. Dana pisa em minhas mãos e se lança janela adentro. Ele fecha a janela ao mesmo tempo em que Eleonora abre a porta. Pendurado no parapeito, só consigo ver o seu rosto e as costas de Dana. Ela coloca as mãos na cintura, suas olheiras e postura a fazendo parecer mais cansada do que irritada.

Onde você estava? - Eleonora sussurra a pergunta.Na casa de um amigo - Dana responde e os lábios de Eleonora tremem.Que amigo? Você não tem amigos. Eu liguei pra Elisheva e ela disse que você ficou na festa depois que ela foi pra casa.– Eleonora corre as mãos pelos cabelos, claramente exasperada, e seus olhos se fixam no pescoço de Dana - Dana, mas o que é que está acontecendo? Você sai pra chegar meia-noite e volta de manhã, usando roupas de outra pessoa e cheio de marcas… o que eu devo pensar? Eu não estou mentindo.Qual é o nome dela?Não existe ela. 

Eleonora aponta um dedo acusatório para Dana, e não sei qual a expressão dele, mas ela fecha a mão em um punho e pressiona contra os próprios lábios antes de se recompor novamente.  

Eu vou dormir. Mais tarde a gente conversa.  

Ela bate a porta do quarto antes de ouvir uma resposta, deixando Dana para fabricar sua história ou decidir contar a verdade.

Você deveria ter me deixado te trazer em casa ontem.É mesmo?

Escuto o revirar de olhos em sua voz. Ele espera Eleonora bater a porta de seu próprio quarto antes de sair. O escuto entrar no banheiro ao lado, a água correndo e uma torrente de xingamentos em voz baixa - provavelmente depois dele se olhar no espelho. 

Como o Dana pra lá de Bagdá disse, Eleonora está estranha. É a primeira vez que sua máscara está completamente fora diante de Dana. Quero marcar sua expressão decepcionada em minha pele e a colocar em seu rosto mil vezes mais. Apesar das palavras de Bellona - que não havia mais nada entre ela e Amatore, eu vi além de suas palavras, a hesitação, as mãos nervosas. 

De qualquer forma, eu estou aqui e não vou a lugar nenhum.


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