O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 22
∾ Eu encontrei alguém além de você, mas fui incapaz de te deixar ir.


Notas iniciais do capítulo

Bem, já que é véspera de natal, já entrego meu presente para vocês!

Enfim, espero que tenham um bom fim de ano, natal e ano novo. Porém, lembrando sempre que ainda estamos em uma situação complicada. Cuidem-se.

Feliz natal, boas festividades! ♥



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O som do chuveiro mesclava-se com o da chuva ao lado de fora. Apesar disso, o apartamento estava em silêncio, imerso nas luzes amareladas das lâmpadas, preenchendo o vazio quase palpável do ambiente. Os cômodos largos com uma decoração minimalista intensificavam a sensação de vácuo, como se houvesse um grande oco entre as paredes, tornando-se cada vez maior e insuportável. Ou, talvez, fosse apenas o modo como estava se sentindo. 

Pela janela da sala, o vento adentrava ruidoso, abrindo passagem pelas cortinas brancas. Os intermináveis relâmpagos brilhavam através do vidro, projetando luzes e sombras nas paredes claras, criando formas diversificadas. E o barulho dos trovões, mais distantes do que aparentavam, perdia-se entre o amplo corredor do apartamento, roncando através dos outros cômodos, perdendo a força aos poucos. 

Sentado no sofá, Nirav piscou algumas vezes, distraído, enquanto rodava a aliança prateada em seu dedo anelar. Aos seus pés, Jax, o grande cachorro magricela, de pelo espesso preto, mantinha-se encolhido. Minutos atrás tentara distrai-lo com a pequena bolinha, já perdida entre os móveis, mas o animal parecia dominado pelo receio da chuva. 

Agora, encontrava-se inerte à realidade. Embora sua visão parecesse alerta, apenas acompanhava os fatos. O vento na janela, as luzes do relâmpago, o som da chuva. Havia uma grande sensação de distância que o empurrava para longe, mesmo sem o tirar do lugar. A cada segundo, ele se afundava mais no oco que se formava entre as paredes daquele apartamento. E tão grande que era, já parecia apertado para o vazio expansivo. 

Quão controverso poderia ser o sentimento de não saber como se sentir. Um tanto traiçoeiro, também. Cada parte do seu ser parecia dividir-se entre inúmeras outras, conflitando-se em tantas emoções diferentes, transformando-se em uma bagunça generalizada. Confusão e saudade, dor e alívio, receio e anseio, necessidade e desprezo, vontade e vergonha. Então, entre o que era muito parecia não haver nada e, por isso, a sensação de vazio. E, conforme esse oco expandia-se como um buraco negro maciço, ainda que abstrato, apenas um detalhe escapava para a superfície. Um nome. A razão de todo o vazio. Juno. 

Quanto peso um nome poderia carregar? O suficiente para não ser reduzido ao tamanho de seus letras e esquecido, mesmo depois de tantas tentativas falhas. O quanto um simples nome poderia significar? O suficiente para ser desejado, apesar de toda a dor e caos que sua pronúncia um dia causou. Era apenas um nome, deveria ser apenas isso. Porém, soava como um feitiço em seus lábios. O que se proibiu de pronunciar, mas sempre se sentiu tentado o suficiente para proferi-lo. Agora, deslizava por sua boca, repetindo-se em seus pensamentos seguidas e intermináveis vezes, dando forma ao nome em si. 

Não era um fantasma, embora capaz de assombrá-lo. Era tão real quanto ele, apesar de parecer surreal à primeira vista. Um rosto perdido em suas memórias teimosas, que mais sentia saudade do que se lembrava, de fato. E continuava o mesmo em sua essência, como se não tivesse corrido um minuto sequer em anos. Quase como se a sua necessidade de o reencontrar o tivesse congelado em sua mente, impedindo que o tempo agisse para não afetar suas lembranças conservadas. 

E, no entanto, se queria tanto chamar seu nome, se por tanto tempo desejou ver seu rosto, por que não conseguia ter um único sentimento genuíno? Parecia um preço a ser cobrado por ter essa chance. E como custava caro. Desencadeava todo o tipo de conflito em seu cerne. Desde as expectativas mais elevadas às dúvidas mais cruéis, nunca respondidas. Os desejos mais íntimos às dores nunca cicatrizadas. As saudades mais intensas às rejeições tão contraditórias. E como lidar com tantos sentimentos ao mesmo tempo sem se perder em cada um deles? Parecia impossível escapar ileso. Então, só restava o medo. O medo de encarar o passado e perceber que ainda estava presente. 

Ele olhou pela janela, admirando o clarão de um raio cruzando o céu. Por um momento, houve apenas a luz azulada, preenchendo todo o ambiente, engolindo cada parte exposta, incluindo a ele mesmo. Instantes dos quais gostaria de eternizar, permanecer preso até não ter outra escolha. Entretanto, segundos depois veio o som exagerado do trovão, dissipando a momentânea paz e a transformando em tremor. O cachorro se agitou, procurando outro abrigo, deixando-o sozinho. E em seu bolso, o celular tocou, tirando-o do transe. Um suspiro cansado escapou de seus lábios ao encarar a tela. Como se não bastasse um reencontro com o passado, a vida lhe exigia mais um. Seu pai. No entanto, decidiu continuar ignorando enquanto ainda podia. 

Descartou o aparelho, jogando-o pelo estofado como se fosse algo qualquer, na tentativa de ignorá-lo. Já estava confuso o suficiente para se deixar abater por mais conflitos dos quais não precisava. Todo o seu passado parecia ressurgir das cinzas bem diante dos seus olhos e não havia nada do que pudesse fazer para impedi-lo. Impaciente, retirou o grosso casaco marrom, abandonando-o sobre o mesmo sofá, a turbulência em seus pensamentos era tanta que afastava o frio e o transformava em calor. Sua perna esquerda agitava-se, balançando para cima e para baixo, repetidamente. E suas mãos, ansiosas, procuravam qualquer coisa para segurar para se manterem ocupadas. Uma outra vez, a vontade de fumar apareceu, ainda que à contragosto. 

Desistindo da solidão da sala ampla, Nirav se aproximou do quarto no fim do corredor. Agora, já não havia mais o barulho do chuveiro, restava apenas a chuva rompendo o silêncio pesaroso que ocupava o apartamento. Diante da porta, escorado no portal, encontrou Alice, que sorriu em sua direção sem nada dizer. Assim, sentou-se sobre a cama, admirando a mulher a sua frente. 

Estava diante do largo espelho em seu armário de roupas, penteando os cabelos úmidos, que escorriam até o meio de suas costas, longos e lisos. O tom avermelhado dos fios destacava-se, reluzindo na luz amena dos abajures no quarto. Sua única peça de roupa era a toalha branca, enrolada em torno de seu tronco. Um perfume convidativo emanava dela, algo floral com um tom agridoce. Era uma visão bela, capaz de fazê-lo se perder, por um instante, esquecer-se de todo o conflito em seu interior. Poderia apenas olhar para Alice, distrair-se em sua beleza e descansar a bagunça que era em sua serenidade. 

Então, era inevitável pensar em insinuações de seu melhor amigo. A desconfiança que colocava à prova não só seu caráter, como seus sentimentos por Alice. E, talvez, mesmo envergonhado, temesse já estar sendo desonesto. Toda a omissão, o clima confuso, a necessidade de uma fuga. A preocupação visível nos olhos dela, quando o analisava tentando entender sua repentina distância. E a sua incapacidade de ser sincero e todo o seu silêncio retraído, que a afastava de propósito. Talvez Theo não estivesse sendo tão injusto com suas insinuações. 

Uma risadinha fugiu da boca dela, chamando sua atenção, retirando-o de seus pensamentos, obrigando-o a se manter na realidade. 

— O que foi? — ela comentou, terminando de ajeitar a franja sobre a testa. Depositando o pente sobre a cômoda, ela cruzou os braços, olhando em sua direção. — Por que está me encarando tanto? 

Nirav coçou a barba, passando os dedos pelos fios grossos, como fazia quando se sentia envergonhado. Depois, estendeu a mão até ela, para que pudesse vir a seu encontro. Permanecendo de pé, Alice ficou entre suas pernas abertas, olhando-o de cima. 

— Porque eu amo você. — respondeu, observando a expressão no rosto dela florescer. Sua mão presa a dela, brincando com os dedos finos e longos que tinha. Um sorriso triste marcou seu rosto ao fitá-la. — Onde você esteve todo esse tempo? 

— O que quer dizer com isso? — ela franziu o cenho, desconfiada. Em seu toque havia carinho, porém, parecia ressentido. 

— Eu queria ter conhecido você antes... 

Alice fechou os olhos, balançando a cabeça como uma suave recusa, afastando-se dele um pouco. Ele insistiu, segurando sua mão, trazendo-a mais para perto, tentando impedir que a distância entre eles se tornasse maior e mais palpável. 

— Isso é uma cantada barata ou tem a ver com a mulher na casa de Louise? 

— Desculpe, o que quer dizer? — ele piscou sem entender, talvez como uma tentativa de fugir mais uma vez. 

Olhando-a, de repente, sentiu uma artificialidade preencher o vão que havia entre eles. Como se tudo não passasse de uma peça ensaiada, por anos, escondida atrás de uma farsa, prestes a ruir. A farsa que construiu sobre e apenas para si. 

— Eu sei quem ela é. — Alice respondeu. — Eu sempre soube quem é a Juno. 

A surpresa foi imediata. Por um instante, não teve reação. Por tanto tempo, tentou esconder aquela mulher de si mesmo, mas sequer foi capaz de mantê-la longe de Alice. E por isso, tantos outros questionamentos se formaram em sua cabeça. 

— Como? — perguntou, franzindo o cenho, balançando a cabeça, com a confusão estampada em seu rosto. 

— Hester me contou. — sua voz soou hesitante, como uma criança que dedura a outra. 

Era óbvio. Como nunca imaginou antes que seus amigos poderiam ser capazes disso? E por mais que sentisse traído, mais uma vez, não poderia culpá-los. Alice merecia saber, ainda que ele não fosse capaz de contar. 

— Ela não tinha esse direito... — disse, teimoso, embora reconhecesse sua própria covardia. 

— Em sua defesa, ela só estava tentando proteger você, depois de tudo o que aconteceu. 

— O que ela contou? 

— A verdade. — deu de ombros. — Como ela traiu o namorado, como usou você e... 

Subitamente, ela parou de falar. Talvez, pela forma como abaixou o rosto, com a expressão perdida em seus olhos. Engasgou-se com a verdade que ele nunca quis contar para si próprio. 

— Sabe sobre isso esse tempo todo e nunca falou nada? — voltou a observá-la. 

— Você não parecia afim de falar sobre isso, então não quis te pressionar. — ela se reaproximou, tornando a levar as mãos até seu rosto, segurando-o com ternura. — Mas agora... Bem, agora o problema está batendo na sua porta. Não dá para fingir que ela não está aqui. E aí, como vai lidar com isso? 

Não tinha resposta para aquela pergunta. Novamente, a onda de sentimentos o inundava. Havia tantas coisas que queria fazer e não conseguia fazer nenhuma delas. Estava dividido, confuso e perdido. Não sabia o que fazer. 

— E eu preciso fazer alguma coisa a respeito? 

— É você quem decide, meu amor. 

— Não sei se há algo a ser feito. — meneou a cabeça, respondendo com um tom pesaroso. — Sete anos se passaram. Uma vida inteira. Não sei mais se a garota que eu conhecia é a mesma que reencontrei. Agora, ela só parece uma completa estranha para mim. 

Sua resposta satisfez Alice, conseguiu ver em seus olhos o contentamento com suas palavras. No entanto, para si mesmo a resposta parecia falsa. Sentia como se estivesse tentando se enganar outra vez, inutilmente. Pois quando se lembrava do brilho nos olhos de Juno, do outro lado da sala, sentia a evidência de que, talvez, ainda fosse a mesma de antes. A mesma Juno que amou. Contudo, não conseguia se apegar a esse detalhe. Todos os conflitos dentro de si só diziam para questionar, duvidar, afastar. E, outra vez, já não sabia mais no que confiar. 

Contemplando a mulher em sua frente, não teve coragem de contrariar sua satisfação. 

— E eu tenho você, e isso é o que importa. 

— Está tentando me seduzir? 

— Depende. — sugeriu com um sorriso de canto, um tanto malicioso. — Está funcionando? 

— Por que não tenta descobrir? 

Sem mais enrolar, tomou os pulsos dela com cuidado, trazendo-a até si, ou melhor, derrubando-a sobre si. Ambos sobre a cama, ele a manteve entre seu abraço, envolvendo-a com seu toque carinhoso, enchendo seu rosto e pescoço de beijos. E logo, a toalha que cobria o corpo dela escorregava pela lateral da cama, jazendo esquecida no chão, também o destino de suas próprias roupas. 

 Então, em um instante, só tinha atenção à mulher nua, sentada sobre seu quadril, encurvada para frente ao beijá-lo. Encontrava-se afogado em seus cabelos tingidos tão perfumados do banho, escutando a risada que escapava dos lábios dela e ressoava por todo o quarto, afugentando o peso do silêncio que ensurdecia seus sentidos e preenchendo o vazio que esmagava seu interior. 

Permitiu-se perder nas curvas do corpo magro dela, descobrindo a mulher que tanto desejava. E assim, se encontrava na serenidade do seu abraço, na delicadeza do seu toque e no seu silêncio tímido. Por um longo período, esteve entre suas pernas, sentindo o calor do seu corpo, recebendo seus mais deliciosos beijos e carinhosos toques. Até que, por fim, estava deitado ao seu lado, satisfeito ao ver o sorriso bobo que iluminava seu rosto cansado, que lutava com o sono até perder. 

E, no entanto, quando tudo acabou e o silêncio retomou o quarto, tornou-se a se perder na imensidão de seus traiçoeiros conflitos. Enquanto Alice dormia, ressonando baixinho ao seu lado, Nirav encarava o teto, contemplando o nada até tornar-se insuportável ficar deitado com todo aquele peso a esmagar seu peito. Ele a deixou deitada, descansando, perdida em algum sonho que não conseguia tentar adivinhar, parecendo serena em seu sono, mas sozinha. 

Diante da janela, contemplou o céu noturno. A chuva forte agora não era uma mera garoa. Os relâmpagos, já enfraquecidos pela distância, iluminavam apenas os cantos do céu. Os trovões não roncavam mais e as nuvens dissipavam-se, abrindo espaço para a lua e as estrelas brilharem. Somente o vento frio persistia, bagunçando mais seus cabelos, invadindo seu corpo com um toque nem tão gentil, porém que tanto apreciava. 

Nirav olhou para as ruas vazias, esquecidas e molhadas, existindo apenas através das luzes amareladas dos postes. O silêncio era quase palpável, nem o ruído do vento em vielas parecia se destacar. Não havia ninguém lá embaixo, não importava para onde olhasse, não havia ninguém. E mesmo sem uma alma para notar, não deixou de se questionar sobre uma em específico. 

Onde estaria Juno, agora? Pela primeira vez, em sete anos, Nirav sabia a resposta para essa pergunta. Entre aquelas ruas, em algum lugar, ela deveria estar. Talvez estivesse na casa de sua tia, dormindo um sono pesado. Ou poderia estar acordada, perdida em uma insônia tão conturbada quanto a dele. Para tais perguntas, não tinha resposta, entretanto, de fato, sabia onde ela estava e onde encontrá-la. Estava de volta em Florencia, finalmente. Estava ali, tão perto. E, no fundo, ele estava feliz por tê-la perto, só não sabia se deveria estar. 


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Notas finais do capítulo

Como reagir em uma situação dessas? Você quer ter respostas, mas não quer se aproximar o suficiente para perguntar. É o mesmo que orbitar um buraco negro, sem saber a distância segura para não ser sugado. Apesar de que o buraco negro não seria a Juno, e sim os próprios sentimentos de Nirav.



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