Cinzas escrita por Shalashaska


Capítulo 6
Pétalas azuis




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24/04/2020

Idílio, Genosha

17:47

Além do noticiário, nada mais fazia barulho no largo cômodo. O mundo, especialmente naquela data, não emitia um único som. Só quietude, dor e luto. Erik, na realidade, não estava prestando atenção nas palavras do noticiário. Estava apenas sentado numa poltrona de encosto alto, bem acolchoada, com um copo e uma garrafa de whisky sobre a mesa à sua frente. Seus olhos jaziam fixos, embora sua cabeça estivesse longe, muito longe. Em suas mãos, uma tiara.

O presente que deu a Wanda, sua filha. Sua menina, tudo o que ele tinha.

Foi só o que sobrou dela depois de… Ele interrompeu o pensamento para tomar mais um gole de álcool, tentando evitar a memória dela se tornando cinzas. Não saboreou o gosto em sua língua, mas agradeceu a queimação na garganta e torceu para que o torpor lhe alcançasse logo. Uma esperança vaga, é verdade. Nada lhe afastava da sensação vazia em seu peito, aquela ira de não poder fazer nada. 

Já estava sentado há algumas horas ali, ciente de que muitas outras pessoas - a outra metade da vida na Terra - seguiam com seus próprios rituais de luto. Não quis ver ninguém, não quis seguir presencialmente com o memorial que os outros mutantes faziam no centro da capital de Genosha. Depois veria a mensagem deixada por Steve Rogers, agora fixado em Nova York, e a de Scott Summers, o novo diretor do Instituto Xavier desde 2018, quando praticamente todos de sua equipe desvaneceram. Anualmente, eles deixavam mensagens  para, talvez, confortá-lo ou encorajá-lo, ainda que soubessem que seria demasiado difícil tirar o peso sobre os ombros de Erik Lensherr. 

Tolos e hipócritas. Nem Rogers, nem Summers superaram a própria dor. Jamais seguiram em frente, como tanto queriam para ele.

Na maior parte do tempo, o líder mutante estava ocupado em administrar planos para seu país, governando de forma brilhante aquela nova nação. A principal cidade, próxima ao porto, era uma referência a qualquer mutante na face do planeta e tinha crescido graças aos poderes de Erik Lensherr, que forjaram o esqueleto metálico da capital, e também graças ao seu carisma magnético, que garantiu auxílio internacional genuíno após um ataque em 2017. Depois das fases iniciais, a cidade se desenvolveu naturalmente, adaptando o melhor do planejamento urbano junto à colaboração de seus cidadãos e suas habilidades únicas. Era uma cidade bela, interativa, viva. 

Erik garantiu que todas as crenças fossem ouvidas ali, que todos pudessem ter seu templo. A linguagem ainda era uma barreira inconveniente, já que os cidadãos genoshes vinham de diversos países e contextos diversos, mas não era algo insuperável. Os próprios mutantes usavam, além de seus poderes provenientes do gene X, suas formações e talentos para contribuir com a sociedade. Isso preencheu escolas de diferentes graus, dois hospitais, um tribunal, uma equipe responsável por comunicação… 

O estalo de Thanos foi um baque para todos e não foi diferente para os mutantes de Genosha.  No entanto, Magneto continuou a ser um líder responsável. Fez o possível para que a sensação de união entre eles perdurasse, que a produção de todo o sustento para essas novas famílias fosse o suficiente. Ele mesmo ergueu um monumento ao centro de Idílio, uma quase torre de metal composta por quatro arcos de sustentação. Em sua superfície, foram gravados os nomes daquele se foram da pátria genoshe, e quem mais quisesse gravar o nome de algum parente, mesmo distante, ali. Para Erik, o que representava sua perda não eram os nomes, mas sim a própria estrutura do memorial.

Quatro arcos, os quatro filhos: Anya, Lorna, Wanda e Pietro. Todos eles mortos por alguém que considerava saber o que era melhor para o resto do mundo.

Os mutantes genoshe se reuniam no memorial ao final daquela tarde de Abril. Erik preferiu a reclusão, imerso num mar de vozes, num mar de lembranças. Muitas vezes a voz pálida de Magda ainda o alcançava, a voz infantil de Lorna também. Imaginava que Pietro tinha um tom parecido com o seu, enquanto a irmã, Wanda…

Pai…

Foi a última coisa que ela disse. Seu último suspiro gasto em dizer justamente o que ele mais queria: que Wanda o chamasse de pai. Ele segurou as têmporas, de repente trêmulo. Seu crânio parecia esmagar seu cérebro e ele não entendia como ainda não tinha alternado a polaridade magnética do planeta. Tomou outro gole de álcool, mais longo, mais desesperado, depois serviu seu copo de mais um pouco. Era um whisky forte, reservado apenas àquela data. Quanta diferença de quando tomava um gole para discutir política em meio a uma partida de xadrez com seu velho amigo Charles… Que agora já não era mais do que cinzas.

Se na maior parte do tempo Magneto ocupava em reger Genosha, no restante de suas horas do dia ele remoia recordações amargas, novas ou antigas. Era isso, então? Uma vida cruzada por espinhos, uma cascata de tragédias. Na conversa que teve com Wanda, antes de toda aquela desgraça, pediu pra ela voltar para casa, para ele. Implorou. Parecia saber que algo daria terrivelmente errado, mas será que fazia diferença? Ele disse a sua filha que tudo o que tinham às vezes era um momento.

E aquele tinha sido o momento deles.

Seu sofrimento abalou as estruturas do cômodo quase vazio, seus poderes magnéticos ondulando com suas emoções. O sinal do noticiário veio e se foi, para então fixar-se de novo. A voz do jornalista continuava a narrar o que todo e qualquer jornal falava no dia 24 de Abril:

 “São mais de três bilhões de pessoas que desintegraram em 2018, uma estimativa de 40 milhões morreram em decorrência de acidentes em…”

 

“...crescimento das taxas de suicídio, as autoridades incentivam os canais de atendimento público. Ligue para…”

“...Aqueles que ficaram reúnem-se hoje...”

Não havia nada que Magneto ou qualquer outra pessoa poderia fazer para trazer todas aquelas pessoas de volta. Thanos estava morto e as Jóias do Infinito destruídas, segundo Rogers. Ele e seu grupo tinham viajado aos confins do espaço atrás daquele maldito titã, apenas para encontrá-lo aleijado numa fazenda e sem as jóias. Ele acabou sem a cabeça, mas o universo havia perdido muito mais. Tudo o que Erik fazia era cuidar de sua nação num momento de pior fragilidade, sendo um dos representantes do que ainda existia de sólido num mundo tão estilhaçado. Sistemas governamentais — ou melhor, o que sobrou deles — tentavam administrar seus recursos e muitas vezes lidavam com grupos separatistas, com pessoas que tentavam se aproveitar da situação.

Não foi uma, nem duas vezes que Magneto se viu obrigado a lidar com a IMA. A organização queria ser o futuro, resolver a situação. E, para isso, sequestrou mutantes com potencial o suficiente para operar portais, para serem combustível de máquinas, para infinitas coisas mais. Erik dizimou a última base conhecida deles, aliando-se com Victor Von Doom, da Latvéria. 

No entanto, não importava como ele passava seu tempo, o quanto se ocupasse, o dia 24 de Abril chegava cada vez mais cedo, cada vez mais doloroso. Todos os dias pareciam 24 de Abril.

Um som o fez despertar de seus pensamentos. Era a porta automática, que logo se fechou. A pessoa andou mais alguns passos, depois parou. Ele sentia o indivíduo assistindo-o de costas miserável assim, com o whisky e a tiara de Wanda em suas mãos. Decidiu levantar-se da poltrona e virou-se para o inesperado e indesejado visitante. Era Natalya Maximoff.

— Por um momento, achei que seria Emma. — Ele comentou com humor duvidoso, sua voz rouca embora a garganta ainda estivesse úmida da bebida. Colocando o copo na mesa, prosseguiu: — Mas não ouvi o barulho dos saltos dela, nem sua voz em minha cabeça.

Natalya somente o observou com atenção, piscando seus cílios longos. Parecia calcular o que iria dizer em seguida, talvez com dúzias de coisas correndo por sua cabeça. Nada em sua boca. Não era exatamente uma surpresa vê-la ali, pois os dois foram obrigados a interagir um com o outro por causa de Wanda e, depois das desgraças de 2018, os laços entre eles eram mais estreitos, ainda que forjados em dor.

— Erik. — Começou, sem ainda dizer muita coisa. Talvez nada do que ela falasse o suficiente, de qualquer maneira. — Ela disse que vocês brigaram.

O mutante só deu de ombros.

— Já me foge a memória pelo o que, na verdade. Sei que deve estar na companhia daquele rapaz, — Ele olhou para baixo, encarando a tiara em suas mãos. Soltou um longo suspiro. — O Summers.

Natalya assentiu, mas não parecia interessada na última colocação dele. Pessoalmente, Erik pouco se importava com aquele estranho relacionamento entre Emma Frost e Scott Summers. Eles se aproximaram depois de praticamente toda a equipe principal do Instituto Xavier desaparecer após o estalo e pareciam diferentes demais para sustentar algo mais do que uma conversa profissional, já que ambos cuidavam de instituições para jovens mutantes. Ela era tão antiga e, talvez amarga, quanto Erik, se conservou sob sua forma de diamante por todos esses anos. Ele era jovem, enérgico. Tão contrastantes quanto os próprios sobrenomes, no entanto… Lá estava Emma, em outro continente. 

A despeito de seus pensamentos, Natalya prestava atenção nos gestos inquietos dos dedos dele, deslizando através do metal frio da tiara de Wanda Maximoff. Isso o fez erguer uma sobrancelha, mais intrigado pelo o que ela tanto raciocinava. Naquela altura da tarde, porém, ele já não queria fazer suposições ou se importar com o que as pessoas achavam. Só virou seu torso de novo para pegar o copo na mesa.

— Os dois passaram por muito. — Ela resumiu, deu alguns passos a frente. — Vi Elizabeth e Raven lá embaixo, no memorial. E você sabe sim o porquê discutiu com Frost. É pelo mesmo motivo de sempre.

É claro. Toda aquela pena que Emma sentia era desprezível. Odiava vê-lo imerso por dias no trabalho de comandar Genosha, odiava vê-lo solitário e quieto no tempo restante. Não que a telepata loira não respeitasse seu luto, não era isso. Mas toda aquela conversa, aquele seu tom de psiquiatra bem intencionada o enojava.

Ele não queria a pena dela. Não queria os conselhos dela. Inferno, às vezes ele nem queria que ela o escutasse.

Erik Lensherr desejava ficar a sós com seu sofrimento. Era a única companhia que sempre o acompanhou e sempre o acompanharia. Dor, fúria e luto. Morte.

— O que eu não sei. — Bebeu mais um gole, voltou o copo na mesa. — É o por quê está aqui.

Ela engoliu seco, de repente seus olhos vulpinos muito francos, muito limpos. Apenas um tanto marejados.

— Por você.

Aquelas duas palavras foram o suficiente para tocar no ponto sensível de todas as rachaduras de seu coração. Algo dentro de si quebrou-se num átimo, inundando-o de ira, de tristeza, de tremor. Sua garganta apertou e de repente sua pele estava avermelhada, suas pálpebras tremendo por lágrimas há muito contidas.

Ele queria dizer algo cheio de farpas. Incendiar uma briga assim como ocorreu entre ele e Frost, mas não conseguia. Não naquela tarde com o cansaço e o álcool em seus lábios. Abriu a boca, os ombros enfim desprovidos de tensão. Porém nada disse.

Só recebeu o abraço de Natalya e a segurou forte, a tiara de Wanda ainda em sua mão.

Eles choraram juntos, sabendo que não existiam maneiras de consolar um ao outro. Não havia palavras o bastante, ao mesmo tempo que a quietude era um peso. Enquanto a noite caía naquele maldita dia, Erik era alvo de muitas memórias.

Ele e Natalya em Wakanda em 2018, recém chegados através de um portal aberto por pequeninos demônios que mais pareciam morcegos. O tempo era curto e escorria por seus dedos. Entre alienígenas, wakandanas e mutantes lutando, onde estava sua filha? Ele só chegou a tempo de empalar aliens e testemunhar Wanda se desintegrando. A voz dela se repetia em seus ouvidos, um eco de dois anos:

Pai…

Pai…

Pai…

E tudo virou pó, como a previsão de Natalya.

Erik recebeu os pertences da filha depois, resgatados por Romanoff do hotel em que Wanda e seu namorado estavam. Não havia nada muito substancial, só roupas, um caderno em branco. Natalya mostrou que era um grimório enfeitiçado e ficou com a maioria das coisas, estocando-as no quarto da sobrinha na casa da velha Harkness. Ela também não tinha outro lugar para ir ou com quem ficar. Morava ainda na casa de Agatha, mas ela e seu gato preto jamais voltaram de sua viagem.

Ele só quis a tiara. 

A noite enfim se fez presente naquela conversa quebrada e cheia de pesar entre Natalya e Erik. Se sentaram na sala, ela na poltrona e ele acima da mesa metálica de centro. Não existiam mais móveis ali, como sofá ou outra poltrona  uma vez que o cômodo era apenas dele e já não esperava mais visitas. Eles choraram, disseram coisas incompletas e incômodas. Quando nada falavam, a televisão preenchia o ambiente, por mais que nenhum deles realmente prestasse atenção. Beberam, sem de fato esquecer.

Natalya ainda tinha o copo vazio na mão, seus olhos fixos no fundo como se quisesse prever o futuro. Ele reparou em suas mãos magras e cheias de anéis, em seus olhos cansados. De súbito, ela passou a encará-lo.

— Nenhum poder no mundo pode reverter o que aconteceu, Erik. — Soltou um suspiro, contrariada e simultaneamente resoluta. — Ninguém poderá trazer todas essas vidas de volta.

Um ardor cresceu em seu estômago. Dor? Álcool? Ira? O mutante mal conseguia decidir seu tom, se rangia os dentes ou se deixava mais lágrimas banharem seu rosto.

— Eu só me importo com uma.

— Erik…

Ele não a permitiu prosseguir, não com aqueles olhos e voz compassivos. Não com pena.

— Você sabe que eu enfrentaria qualquer coisa, qualquer um… Daria tudo o que eu tenho é o que eu sou para ter a Wanda de volta. — E então, mais suave, mais vulnerável. Inteiro quebrado. — Natalya, é só o que eu peço. Traga minha menininha de volta. 

— Não é assim. Não é simples… Tampouco permitido.

— Eu não pude nem enterrá-la! 

Houve uma pausa. Ela sabia do que ele estava falando. Sem a integridade do corpo, não houve um funeral decente para Wanda, não da forma que sua crença pedia; mesmo que ele já não soubesse mais no que acreditar. Sem enterro, sem túmulo. 

Suavemente, Natalya afastou a garrafa quase vazia da mesa. Pôs tanto ela quanto o copo no chão, distantes do comportamento errático de Erik. É claro que agora ela tentaria ser a mais didática possível, mas ele estava ciente do que estava pedindo. Era algo condenado não só pela moral, é verdade.

E, naquele ponto, ele já não se importava com mais nada.

— Existem custos, consequências, imprevistos. Isso se der certo, Erik. É muito arriscado.

— Não existe preço que me assuste, Natalya! Nada pior do que já paguei. — De novo, sua emoção extrapolou seu corpo e fez seus poderes magnéticos oscilarem o sinal da televisão, das luzes elétricas. — Eu perdi quatro filhos e faço qualquer coisa para ter um deles de volta. Qualquer coisa.

Ela massageou as próprias têmporas.

— Isso pode acabar tão mal.

A voz dele agora foi mais suave, de humor amargo.

— Eu já lhe disse. — Suspirou. — O que mais tenho a perder?

Ambos sustentaram o olhar um do outro por longos segundos.

— Vai levar semanas. Talvez meses. — Ela se levantou da poltrona. — E precisarei do seu sangue.

***

23/09/2020

Novi Grad, Sokovia

18:03 

A superfície lisa do monumento era fria, dava para sentir mesmo que estivesse com luvas nas mãos. Erik remoia pensamentos mistos sobre aquele monólito vermelho escuro, feito de algum material que ele não conhecia. Ele passou as pontas dos dedos nas palavras escritas,  entalhadas na pedra para durar para sempre:

 *Feiticeira Escarlate* 

Filha amada

Amiga

Heroína 

Vingadora

O monumento era alto, quem sabe de uns quatro metros, sem nome e sem datas, igual a que todos os heróis desaparecidos receberam após um ano daquela tragédia. Variavam apenas na cor e na localidade. A de Bucky Barnes foi erguida no Brooklyn, a de Sam Wilson em Washington DC. Havia também outras em Wakanda, mas o Instituto Xavier, apesar de ter ajudado em 2018, decidiu ser mais privado em seu luto. O monumento de Wanda ficava ali, próximo a borda onde uma vez existiu uma cidade, depois uma cratera e agora onde jaziam flores azuis e vermelhas.

Erik não gostava da ideia de uma lápide grande e robusta, no entanto, não havia corpo e aquilo não era um túmulo. Também questionava a razão do país, em conjunto com tantos outros, se propor a erguer um memorial para uma mulher que sofreu tanto dentro e fora da própria nação. Talvez Sokovia soubesse que Wanda fez coisas aqui e ali entre suas viagens para melhorar as condições de vida de seu povo, como uma colheita melhor, um inverno menos severo, menos casos de doenças. A Feiticeira sempre foi discreta sobre suas pequenas intervenções, mas Erik sabia e tinha orgulho. Quem sabe Sokovia inteira sentisse o mesmo.

Ainda assim, ele não gostava do monumento. Não por sua estética, porém. Era por solidificar o triste fato de que sua filha havia partido e só lhe sobravam coisas para lembrar.

Ele engoliu seco, fechou bem as pálpebras. O vento frio do início do Outono trazia o cheiro do campo, das flores. E, entre sua amargura, ele conseguiu se distrair e se questionar; Qual era o ciclo de seu florescimento? Parecia um tanto fora de lugar que aquelas flores desabrochassem ao mesmo tempo em que as folhas das árvores começava a se avermelhar e a secar. De qualquer forma, pouco importava. Logo aquelas flores estariam secas, depois seriam cobertas por neve.

Ele vestiu seu capacete rubro e virou-se para Natalya. Havia somente os dois ali e Erik não avisou ninguém sobre seus planos, nem Emma, Psylocke ou Mística. Não queria que suas aliadas tentassem dissuadi-lo, não queria que Rogers e o resto de sua equipe se intrometessem. Ele e Natalya levaram tempo demais para chegar até ali, até o ritual, e o mutante não desistiria agora.

— Estou pronto.

A feiticeira assentiu, vestida com trajes longos e de tecido pesado. Já tinha aberto um grande círculo mágico, que brilhava pálido no chão. Além desta luz etérea e das pequenas velas acesas, os últimos raios de sol incidiam sobre suas figura silenciosa. Dissera que o entardecer era o período ideal para tal feitiço, o entre-mundos. No entanto, não queria executar a magia no final de Outubro, data onde mortos demais transitavam entre as realidades.

Natalya segurava uma adaga de prata e o encarou com atenção.

— Esse ritual… Não deveria ser feito. É o único que encontrei que não envolvia sacrifícios ou mencionava criaturas das sombras, destruição. Ainda assim, é vago e reservado apenas à pessoas que morreram em lugar de um terceiro, de uma causa. Mártires, talvez. Erik, — Sua voz era séria. — Não há garantias. É a última vez que te aviso. Sua última chance de voltar atrás.

Estava ciente. Apenas tirou a luva e ofereceu-lhe a mão nua. Natalya olhou sua palma, depois seu rosto.

— Sabe que não preciso de grande quantidade de seu sangue, não é? 

— Não me importaria se precisasse. Se fosse necessário meu coração, eu mesmo o tiraria com essa adaga do peito.

Ela assentiu com cautela e começou o ritual. Palavras escapavam de sua boca numa língua que Erik não conhecia, mas que o embebiam em transe e encanto. Cada som escapava com cor de seus lábios, preenchendo círculos, símbolos e espirais ao redor dos dois. Veio vento, mas as velas não se apagaram. Enquanto isso, Natalya esterilizava uma pequena área de sua mão, especificamente na palma.

Foi mais rápido e indolor do que ele imaginou. Em poucos segundos, um pequeno corte numa das linhas de sua mão verteu sangue e Natalya gentilmente girou seu pulso para que as gotas caíssem num ponto de luz abaixo deles. Em seguida, limpou a ferida e o protegeu com bandagens limpas.

Ela franziu a testa e parecia fazer esforço, engolia seco, tremendo, seus olhos nublados. Algo também mexia com Erik. Quando usava seus poderes, ele era capaz de sentir uma ondulação em seu corpo, alguma coisa que o fazia sentir seu ambiente e os campos magnéticos. O que tocava-o agora era algo semelhante, mas ao mesmo tempo desconhecido, maior, enervante. Algo imprevisto, como Natalya previu, algo volátil e poderoso.

Por mais que o instinto e a razão dissessem para recuar, Erik Lensherr não murmurou uma única palavra, nem mesmo quando suas pernas enfraqueceram, nem mesmo quando Natalya parecia prestes a desfalecer. A feiticeira, por sua vez, esforçou-se para terminar o ritual, sua voz já miúda ao proferir as últimas frases, até que enfim o feitiço foi concluído e ela caiu de joelhos na grama.

O ponto de luz e o círculo mágico no solo transformaram-se num único facho luminoso que alcançou os céus como uma estrela cadente. Em poucos segundos, se desfez no ocaso, uma entre tantas outras constelações.

Erik arfava. Tentava conferir o estado de Natalya, ao mesmo tempo que seus olhos arregalados buscavam a silhueta de sua filha. Com o coração acelerado, o mutante esperava ouvir a voz de Wanda chamando por seu nome, chamando-o por pai. E, por longos minutos, nada aconteceu. Só silêncio, só a noite.

Então começou a ventania.

Vinha de todas as direções: Norte, Sul, Leste e Oeste. Fustigava-os com intensidade variada, trazendo as folhas das árvores e o cheiro da grama. Mais do que isso, o vento trazia o azul e o vermelho das flores despetaladas. Erik sentiu um arrepio crescer na base de sua coluna, um sopro em suas entranhas. Ajoelhado ao lado de Natalya, ele encarou o enorme monólito vermelho e viu algo se formando diante dele. Num pequeno redemoinho das pétalas azuis, ossos surgiram e estruturaram lentamente um esqueleto. 

Aos poucos, vieram os músculos, os órgãos, veias e ligamentos. Tudo formado por vento, por flores, e então por carne e por sangue. Enfim, pele e cabelos; enfim, seu primeiro suspiro de vida. A figura resfolegou por muitos segundos, nua e sentada em meio às pétalas, desorientada. Quando ergueu o queixo, parecia procurar alguém.

O feitiço foi concluído e o corpo estava ali, de volta à vida. Respirando, sentindo a brisa gélida. O seu olhar estava perdido, difuso... Até que se derramou diretamente em Erik. Houve um meio segundo onde apenas eles se encararam, sem emitir um único som.

— Onde… — Sua voz era áspera, entrecortada como se flores ainda fizessem parte de seu esôfago. — Wanda, onde… Onde ela está?

Não houve resposta, somente o choque dos dois. Natalya nada disse e Erik Lensherr encarava perplexo o filho que jamais conheceu.

Pietro.


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Notas finais do capítulo

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska!

*Este é o último capítulo para o que planejei de "Cinzas". Já comecei a sequência e prometo lançar em breve.

*Erik, Natalya & Pietro retornarão em "Sacrifícios".

*Se possivel, comente ♥