Cinzas escrita por Shalashaska


Capítulo 5
Torre e cinzas




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24/04/2018 

Loja de Agatha Harkness, local desconhecido

07:32 

Erik Lensherr ficou alguns segundos sem dizer nada após encerrar a ligação e guardar o comunicador no bolso de seu sobretudo. Estava aliviado pela filha estar bem, mas não gostava da situação inteira. Sabia também que Wanda tinha certo apreço em usar palavras leves para poupá-lo, portanto desconfiava da real gravidade dos problemas vindos do espaço. Aliens, Jóias Infinito... Era bem pior do que ele imaginava. Soltou um suspiro e se pôs a encarar a rom do outro lado do balcão daquela estranha loja.

As últimas horas foram um inferno. Ele soube do ataque de dois alienígenas em Edimburgo, local onde sua filha estava, e depois não teve mais notícias. Se Tony Stark desapareceu em Nova York após a invasão de outras duas criaturas terríveis, a conclusão lógica foi supor que algo semelhante teria acontecido à Feiticeira Escarlate. E ele não tinha forças para perder mais uma filha.

Mobilizou equipes mutantes para encontrar mais pistas, convocou telepatas e rastreadores. O último sinal dela na Europa era a Estação Waverley, onde a nave alienígena partiu. Erik estava desesperado, capaz de inverter todo o pólo magnético da Terra para trazer Wanda de volta. Emma Frost seguia nas buscas, Psylocke e Mística também. Ele mesmo recorreu à Loja de Agatha Harkness, um local difícil de achar e habitado por uma mulher que parecia não levar tanto a sério suas preocupações: Natalya Maximoff.

A tia adotiva de Wanda era uma mulher na margem de seus trinta a quarenta anos, dotada de uma expressão vulpina e olhos grandes. Não fazia ideia do que estava acontecendo no mundo, pois estava “muito ocupada com as poções do dia” e se limitou a afirmar, sem prova nenhuma, que a sobrinha certamente poderia sair de qualquer problema sozinha. Foi capaz até mesmo de interromper a ligação entre os dois para comentar de forma debochada que ela estava certa e que mandava um beijo para Bucky, “aquele rapaz maravilhoso”. Se Natalya não tivesse sido a responsável por tentar ajudar Magda e por ter salvado Wanda e Pietro, Erik teria menos tolerância com aquele comportamento.

Ela só ergueu uma de sobrancelhas, seus lábios fazendo força pra não sorrir.

— Eu disse que ela estava bem.

— Ora, poupe-me dessa conversa. Você nem sabia onde Wanda estava.

Natalya deu de ombros, voltando seu olhar aos objetos acima da bancada, separando livros e pedras. Talvez estivesse só organizando uma espécie de inventário e parecia bem entretida.

— Uma feiticeira sempre está onde deve estar.

O sangue dele ferveu.

— Então é por isso que estava aqui, pra me ajudar?

— Talvez.

Ela mal tinha feito coisa alguma! Ele soltou um riso de escárnio, nada humorado. Erik, porém, tinha que admitir que era um tanto conveniente demais Wanda ligar para ele justamente no instante em que quase surtava na frente da rom, seu ânimo inteiro incendiado por não saber o paradeiro da filha. Será que…? Os poderes de feiticeiras eram sempre misteriosos e não sabia dizer se Natalya tinha feito algo para trazer o contato de Wanda. Não importava agora, na verdade. Ele tinha problemas maiores. 

— A questão é séria, Natalya. 

— E eu disse que não era?

Inspirou fundo pela décima vez, trazendo o aroma de incenso para dentro dos pulmões. A loja parecia fora do lugar e do tempo, sempre muito serena independente do caos do lado de fora. As paredes cor de lavanda, as estantes brancas e itens como velas, vidros e pedras impecavelmente organizados… Tudo isso queria infectar seus pulmões com um pouco mais de paz, no entanto seus poderes ainda ressoavam pelos objetos de metal, fazendo-os tremer.

— Já lhe contei, são seres do espaço. — Repetiu, na tentativa de colocar mais juízo na conversa. Rangeu os dentes, sua mandíbula quase travada de tanta tensão. Se Natalya lhe oferecesse chá para acalmar os nervos, ele explodiria. — E Wanda… Wanda mencionou as Jóias do Infinito.

Natalya lhe deu mais atenção. Primeiro baixou os olhos, depois o encarou. Já não mais mexia nos livros.

— Eu entendo que esteja preocupado, Erik… — Sua voz agora era mais serena, desprovida dos toques ardidos de ironia. Quando falava assim, o que era um tanto raro nas poucas interações dos dois em um ano, Magneto conseguia quase gostar dela. Parecia astuta tal qual sua postura reticente e seus olhos vulpinos indicavam. — Só dê um pouco mais de crédito à sua filha. Ela já enfrentou um demônio que nem mesmo eu e Agatha fomos capazes abater, então sei que consegue se virar. 

Não era isso que ele queria ouvir. Em seu íntimo, as palavras dela soavam não somente como um esforço para acalmá-lo, mas também algo para acalmar a si própria. Isso o colocou em mais alerta ainda.

— É isso que sua bola de cristal e suas cartas dizem?

— Não é assim que funciona e você sabe que meus poderes estão avariados desde que voltei ao mundo, senhor Lensherr, mas posso dar uma olhada se for acalmar seu pobre coração. Se bem que… — Franziu os cenhos, raciocinando. — As previsões dos últimos meses tem ficado cada vez mais confusas.

Ele só piscou e engoliu seco, engolindo junto todas suas reclamações e injúrias à Natalya Maximoff. A maioria das pessoas costumavam a levá-lo a sério, ouviam seus discursos eloquentes com atenção. E era esse o ponto que lhe intrigava nela: A rom o escutava e o compreendia, entretanto parecia só se divertir com seu nervosismo. Não adiantava mais se enfurecer com ela.

— Poderia apenas me teletransportar para Wakanda?

— Se você for um bom menino…

Soltou um bafejo irritado, fechou as pálpebras. Era terrível depender da boa vontade de alguém tão displicente. Levou alguns instantes assim, lembrando a si mesmo que fazia tudo isso por uma causa maior e que Wanda era o mais importante nessa história toda. Quando abriu os olhos, viu que Natalya tinha pegado uma pequena bola de cristal e colocado-a acima da bancada, sobre um um apoio metálico de três pés. Suas íris estavam fixas na superfície leitosa do quartzo branco, concentrada.

Ele estava prestes a questionar o que ela tanto bisbilhotava entre os veios e manchas naturais da pedra quando Natalya ergueu o dedo indicador em sua direção, demandando silêncio. Os olhos dela então tornaram-se vazios, sem íris ou pupilas. Primeiro, ela apenas comprimiu os lábios, depois franziu a testa. A medida que os segundos escorriam, porém, gotículas de suor se formaram sobre suas têmporas, ao mesmo tempo em que sua face inteira se torcia numa expressão pesarosa, assustada.

Magneto sentiu falta de ter um telepata por perto. Xavier teria descoberto o paradeiro de Wanda mais cedo, mas eles já não tinham um contato frequente ou direto. E se Emma ou Psylocke estivessem ali, poderiam traduzir o que se passava na mente de Natalya Maximoff. As duas mutantes, no entanto, estavam do lado de fora da Loja, distantes e em busca de mais pistas de Wanda na cidade.

De súbito, a mulher soltou um arquejo e seus olhos voltaram ao normal. Deu pulo da cadeira, contornou o balcão, fazendo com que seu vestido escuro ondulasse junto.

Um mal sinal.

— Se prepare para sentir um pouco de enjôo, nós vamos embora. Eu só preciso… — Ela ergueu o braço, se esforçando em usar seus poderes, mas… Nada surgiu do ar. Tentou de novo e de novo, sem sucesso. Na última vez, só faíscas preencheram o ambiente, para então desaparecerem no instante seguinte. —  Argh, eu não consigo abrir portais direito ainda! 

— O que? — Deu um passo em sua direção, sem paciência. — O que você viu?

— Não está claro. — Natalya encarou o chão. — Vi pó, sofrimento. Tanta… Dor. — Todo o humor e deboche dela tinham se desfeito. Quando a rom encarou de volta Erik, ele pôde ver sinceridade em seus olhos. Mais do que isso, medo. — Você tem razão, é algo sério e temo não apenas por Wanda.

— E você não consegue abrir um portal?!

— Sim, não ouviu direito? — Rebateu, para então começar a procurar algo entre os objetos da loja mística. Remexeu ossos, pegou meia dúzias de velas e pareceu em dúvida se tirava penas coloridas de um suporte pendurado. — Trevas, agora um anel do Kamar-Taj seria útil. Segure isso, — Ela lhe deu as velas. — Vou preparar uma invocação.

— E em quanto tempo os demônios virão nos ajudar?

— Um pouco mais de meia hora, no máximo uma. — Deu de ombros, totalmente alheia que, quando Erik havia mencionado demônios, ele tinha sido apenas sarcástico. O mutante inspirou fundo, furioso pelo mau augúrio da previsão. Cogitava que seu crânio fosse derreter dentro do corpo, tamanho era seu nervosismo. — O quê? Prefere agendar um voo na classe comercial para Wakanda?

— Limite-se a fazer o feitiço, Natalya. E faça-o grande.

Magneto colocou as velas na bancada com um baque e tirou o comunicador do bolso mais uma vez. Precisava falar com a equipe que tinha lhe acompanhado até a cidade, Frost e Psylocke, pois um destino diferente os aguardava em Wakanda. Pediria que as duas trouxessem seus aparatos ao endereço, mais especificamente seu traje e seu capacete. Se Natalya temia por Wanda, Erik tinha que dar atenção extra a essa ameaça e era até mesmo uma pena que não tivesse tempo hábil para preparar os mutantes mais promissores de Genosha para um combate rápido e exemplar. Mas, com seus poderes de magnetismo à flor da pele, isso mal era necessário.

Esperava que quaisquer deuses que aqueles alienígenas adorassem tivessem pena de seus espíritos… Magneto reduziria seus corpos a meras carcaças. E, aí sim, a visão de pó e dor de Natalya se concretizaria.

***

 24/04/2018

 Birnin Zanna, Wakanda

07:43

— Algo está entrando em nossa atmosfera. — Okoye se pronunciou, o holograma ainda aceso de sua joia kimoyo no pulso enquanto o barulho de alarme ressoava pelo ambiente. Todo o sistema de segurança da capital wakandana indicava a ameaça no céus, mostrando o a trajetória e tempo de colisão. 

Haviam acabado de discutir a situação do sintozóide deitado na maca de vibranium, seu corpo constantemente em análise pelos leitores do laboratório. O plano ainda era mantê-lo vivo, tirar a pedra de sua cabeça e destruí-la, evitando que Thanos e seus asseclas pudessem usar os poderes da Jóia do Infinito. Shuri precisaria reorganizar sinapses em trilhões de neurônios para agirem em coletivo, mas isso levaria tempo - mais do que eles tinham. A fala de líder das Dora Milaje só confirmava a urgência em que se encontravam e não demorou para que Sam Wilson fizesse contato visual com o objeto espacial:

— Hey, Cap.— Ele chamou a atenção de todos conectados pelo comunicador. — Temos algo aqui.

O grupo que ainda estava dentro do prédio se aproximou das largas janelas. Wanda piscou em vermelho, observando uma imensa figura despencando das nuvens. Não sabia dizer se era um a nave, não parecia capaz de voar, embora a Feiticeira nada entendesse de naves espaciais. No entanto, tinha a nítida impressão que aquela imensa figura não havia sido projetada realmente para se deslocar através do vácuo ou na resistência do vento, sim para fincar-se no chão e esmagar o que quer existisse ali primeiro.

O local onde estavam era o alvo.

Antes que ela pudesse acionar seus poderes escarlates para erguer um escudo acima da cidade, o maior que podia naquele instante e naquelas condições físicas, a nave explodiu em pedaços, inteira fragmentada pela colisão contra a barreira tecnológica que envolvia toda Birnin Zanna. Wanda deu um passo para trás, surpresa e aliviada. A cidade estava segura. Lá embaixo, no pátio fora do prédio e junto com Sam, Bucky Barnes soltou um assobio, assombrado.

— Deus, eu amo esse lugar.

— Não celebrem ainda, rapazes. — Rhodes respondeu no comunicador. — Ainda tem mais outros vindo além do domo.

Mais naves ou quaisquer que fossem o nome daquelas coisas, atravessaram o horizonte. Uma, duas, três colisões. Wanda, mesmo distante de tais impactos no solo, sentiu o tremor sob a sola de seus sapatos. Quatro, Cinco. Atingiram árvores, um riacho. A força no chão era tanta que levantou poeira e abalou o domo de energia azul. Viriam aqueles alienígenas de novo, Proxima e Corvus?  Ou então seriam logo apresentados ao autor de toda a tragédia, Thanos?

— É tarde demais. — O sintozóide quebrou o silêncio enquanto o grupo assistia o fogo subir, consumindo o verde da vegetação. — Precisamos destruir a pedra.

Quem respondeu foi Natasha, que começou a conferir o próprio equipamento em seu traje tático. Pronta pra batalha.

— Visão, volte a bunda na maca.

— Nós vamos segura-los. — T’Challa garantiu, caminhando em direção à porta com as Dora Milaje em seu encalço. Havia fúria em sua expressão, certeza em sua voz. 

A Feiticeira quase se distraiu com sua aura sólida e metálica envolvida pelo dourado de suas guardiãs, as Dora, quando o azul de Steve Rogers lhe chamou a atenção.

De novo, o mar escuro e perigoso.

— Wanda. — Ele disse, seus olhos muito sérios. — Assim que a pedra sair de Visão, você a manda pro inferno.

E o vermelho caótico da Feiticeira sorriu ao anuir, violento:

— Com certeza.

Ainda perto da saída, o rei de Wakanda distribuía instruções para sua equipe real.

— Evacuem a cidade. Preparem todas as defesas. — Se deteve e encarou bem a silhueta do Capitão América contra a luz da janela.— E dêem um escudo a esse homem.

Então além de enfrentar robôs em 2015, outros heróis em 2016, Sentinelas e um demônio em 2017, agora Wanda lidava com alienígenas. Ótimo, perfeito. Era tudo o que ela precisava para completar suas experiências de vida.

Talvez fosse realmente mais sensato retornar às consultas psiquiátricas intensivas.

Em poucos minutos, o contra ataque estava formado. Toda a equipe, exceto Wanda, Shuri e Visão, iria para a borda da barreira; primeiro numa tentativa de negociação com os líderes da tripulação espacial e depois… Se não chegassem num acordo, para a batalha. Teriam o auxílio de veículos planadores e um exército para enfrentarem os alienígenas, além de todo o equipamento necessário. Até mesmo Banner pegou uma armadura para si, uma Hulkbuster que Rhodes havia compactado para a viagem de Nova York ao reino. Só não podiam contar com todas as naves e funcionários de Wakanda, que se dividiram para evacuar a população civil de Birnin Zanna.

— Que manhã maravilhosa para a gente se reencontrar, Wanda.

— Estou até sem palavras, princesa.

As duas inspiraram fundo. Enquanto separava o material tecnológico para tratar de Visão, Shuri tentou atenuar o clima pesado ali dentro, ao mesmo tempo em que sugeria estratégias de defesa para sua amiga.

— Pense nisso como uma história medieval fantasiosa, talvez. Sei o quanto gosta de contos de fadas, Maximoff.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Poderia elaborar melhor?

— Vamos imaginar um pouco. — Disse ela, ao mesmo tempo em que digitava dúzias de comandos no painel holográfico. Sempre eficiente, sempre metódica. — O sintozóide aqui é o personagem em perigo, quem sabe um rei, e provavelmente eu sou a maga que vai ajudá-lo.

Ver a princesa cientista como maga era, no mínimo, inusitado.

Interessante.

— Lá fora temos um exército, cavaleiros com montarias belas e potentes que irão enfrentar o perigo, defender ideais…

Visão pareceu estranhamente entretido com as comparações. No entanto, suas feições artificiais se franziram ao perguntar:

— E Wanda? O que ela é?

Uma pausa breve, um sorriso de Shuri.

— Ela é o dragão defendendo a torre. — Agora a princesa estava séria e concluía seu pensamento, um pedido e uma tática: — Defenda a torre, senhorita Maximoff.

Wanda nada disse. Anuiu, pensativa e um tanto chocada. Era isso então? A Torre que tanto vinha lhe assombrando nos últimos dias, a cada vez que ocasionalmente tentava conferir a própria sorte no tarot? Ela não era rasa o suficiente para achar que aquela carta carregava apenas significados ruins e catastróficos, mas depois da terceira vez que a mesma imagem pulava do baralho, viu que precisava prestar atenção no assunto. E, a despeito de suas viagens e anotações no grimório por dias, nada descobriu. O desenho de uma torre atingida por um raio gigantesco, uma pessoa caindo… Entre tantas camadas de significação, a Feiticeira podia resumir em abalo de estruturas, impermanência, quebra

Divagou se os fatos se desenrolariam de maneira semelhante a sua jornada em Wundagore para derrotar Chthon. O mago. O diabo. Os enamorados. Cartas que também tinham lá inúmeros símbolos e nuances, mas que se aproximaram principalmente de sua imagem literal. Aconteceria o mesmo agora? A torre, alguém caindo. Quebra. 

Derrota?

Com mais dois passos, Wanda aproximou-se da janela e apoiou suas mãos na superfície fria de vidro. Estava há andares acima do pátio do lado de fora, mas seus olhos buscavam os de James Barnes. Talvez ele justamente tenha sentido a Feiticeira procurando-o e ergueu o queixo para cima, a tempo de cruzar seu olhar com o dela antes que ele partisse junto com o resto dos Vingadores. 

Ela sentiu um aperto quando Bucky sorriu brevemente. O soldado estava preocupado e não poderia esconder isso dela, pois suas expressões e sua aura não mentiam. E, ainda assim, tentou atenuar suas reações numa tentativa de confortá-la. Sem esboçar nenhum som, distante demais para isso, os lábios dele se moveram numa frase que ela entendeu: “Eu te amo”.

O coração da Feiticeira deu um salto. Quis chorar, quis atravessar o vidro e enterrar seu rosto no peitoral de James Barnes pra esquecer do mundo. Ela não cometeu nenhuma insensatez, porém. Era alguém com um posto e uma missão, assim como ele. Precisavam salvar Visão, salvar o mundo. E Wanda faria de tudo para aquilo não ser uma despedida, ainda mais uma tão fria, tão longe… Mesmo que jamais tenha conseguido se despedir de alguém antes.

“Eu também te amo”

Respondeu ela, atrás do vidro e também sem som.

Quando ela e Pietro eram pequenos, liam juntos “A Chapeuzinho Vermelho”. Vermelho é um aviso, dizia ele. Sua cor. E agora Wanda imaginava escamas incandescentes crescendo em sua pele, garras formando em seus dedos, suas pupilas não mais do que um filete. Não se importava com torres físicas, tijolos amontoados e telhas. Se importava com quem habitava-as, pessoas que amava e que iria proteger a qualquer custo.

Ela era o dragão. 

*** 

Suas íris estavam vermelhas mesmo distante da batalha, que se arrastava já há um tempo. Proxima Meia Noite recusou a tentativa diplomática, um fato previsível, na realidade. O que se seguiu foi uma horda de alienígenas animalescos saindo das naves fincadas ao chão, grotescos e sedentos. Mal tinham consciência da própria vida ou mortalidade, pois se jogaram no campo de força sem nem se importar em serem aniquilados. Sua superioridade numérica, no entanto, abalou a barreira e não demorou para que penetrassem no largo prado de Wakanda.

Lá fora, guerreiros lutavam com todas suas forças. Rhodes e Sam prosseguiam com bombeamento aéreo, enquanto o resto aniquilava os monstros no braço. Wanda, ainda dentro do laboratório, flutuava levemente acima do piso, muito ciente dos sentimentos de tensão, temor e foco de seus amigos há quilômetros de distância. Quando Natasha levou um golpe na boca, foi como se o sangue que ela cuspiu fosse seu. Quando Steve desviou da boca aberta e cheia de presas de um alien, Wanda sentiu o hálito fétido e quente da criatura. O foco de Sam estava em seus olhos, a precisão de Bucky no gatilho jaziam em seus dedos frios.

A Feiticeira viu e sentiu muitas coisas, inclusive a urgência dos cálculos de Shuri ali dentro. A situação se agravava e a princesa não tinha terminado de reprogramar todos os neurônios do sintozóide. A aparição inesperada de Thor, o suposto nórdico que há muito não visitava a Terra, concedeu uma vantagem para os Vingadores. Os aliados do deus do trovão - uma árvore que se apresentou à Steve e um guaxinim falante que logo virou camarada de Bucky - também eram de grande ajuda, mas a luta não parecia terminar tão cedo. A sokoviana encarava tudo através do vidro com cautela, seu coração ligado a um largo espectro de cores de auras tão diferentes e queridas. Se ela tivesse mais tempo… Poderia ter economizado forças para controlar seus poderes com maior perfeição, arquitetar um feitiço poderoso que cobrisse todo o perímetro. De longe, a Feiticeira apenas lançava focos aqui e ali de estranha sorte e conveniência, justamente para seus aliados serem revestidos de maior acurácia na mira, maior reflexo para desviar de uma explosão. Era imperceptível, notadas somente como raras probabilidades. Ela só tomava cuidado para não mexer muito no campo de batalha, pois distender demais os fios da realidade poderia causar anomalias sérias - e ninguém precisava disso.

Foi quando a terra tremeu mais uma vez. Penetrando a barreira, surgiram do chão verde cinco máquinas colossais, em forma de disco e com engrenagens afiadas, lâminas. Era outro objeto que faltava ao vocabulário da sokoviana, embora parte dela quisesse caracterizá-las como escavadeiras ou insanas máquinas de ar o solo. O que ela tinha certeza é que as máquinas iriam ceifar vidas, fossem aliadas ou inimigas… 

Natasha e Okoye estavam no caminho.

Wanda só cruzou o olhar com Shuri, que havia parado um instante para observar aquela terrível novidade no campo de batalha. 

— Recebi uma notificação de Ororo e estou na etapa final aqui, posso me virar sozinha. Vá!

Tão rápida quanto um pensamento, a Feiticeira desapareceu no ar para reaparecer ao lado de sua amiga russa e da general wakandana. As duas jaziam paradas, preparando-se para a sensação de serem retalhadas e mortas por aquelas séries lâminas largas. Wanda mal chegou e pôs em prática todo seu treinamento, toda sua fúria: energia vermelha irrompeu de seus dedos e seus olhos, erguendo as máquinas em pleno ar. Ela arquejou pelo esforço, pela dor em seus punhos e ombros, e lançou-as sobre o campo, onde sabia que nenhum guerreiro de Wakanda ou Vingador estaria. Na realidade, o impacto das máquinas arrastou inúmeros monstros junto, deixando apenas o rastro de seu sangue púrpura e de cheiro acre. Wanda ajoelhou-se pelo esforço, respirando pesado.

A general Okoye, com suor e frustração nas têmporas, se ergueu com a lança de vibranium. Encarou-a bem, depois olhou o estrago que tinha feito. Virou-se para a russa:

— Por que ela estava lá em cima o tempo todo?

A sokoviana quis acompanhar a risada discreta de Natasha. Seu foco, porém, voltou a construção que tinha acabado de deixar, o laboratório elegante e cheio de janelas da princesa de Wakanda. Seus poros arrepiaram-se. Havia problemas, ela sentia. Algo com… Shuri. Xingou mentalmente. Os inimigos esperaram sua ausência para atacar a princesa e Visão. Levantou-se num pulo, apenas para observar uma cena se desenrolar além de todo o cenário de luta:

Visão rompeu o vidro das janelas do andar do laboratório e caía, Corvus Glaive em seu encalço. Ele tentava voar para aparar a queda, mas seu curso era frágil, incerto e rumo às árvores devido ao oponente agarrando-lhe. Tudo pareceu desacelerar e Wanda só enxergava a torre, a queda, a impermanência. 

Derrota? Não, não. Seu coração afundava no peito. Não podia ser.

O chamado de Steve pelo comunicador, clamando para que alguém ajudasse Visão, foi distante e mal processado por sua cabeça. Nem mesmo ouviu a si mesma respondendo, confirmando que logo estaria lá.

E isso custou segundos valiosos de sua atenção. Proxima Meia Noite aproveitou a chance para golpear sua nuca com seu cetro, tirando um grito de seu garganta e minutos de sua consciência plena. Com sangue entre os cabelos, zonza e com o gosto de terra na boca, Wanda viu a figura grande e corpulenta da alienígena se aproximar, falando em sua língua num tom ácido de desprezo.

— Ele morrerá sozinho. Igual a você.

Ela tentou erguer as mãos para se defender. Para desaparecer. Porém sua visão estava nublada, escura. A aura rosa de Natasha, ainda assim, foi inconfundível:

— Ela não tá sozinha.

Okoye e Natasha seguiram com uma sequência eficaz de ataques. A força bruta e experiência da guerreira alien resultavam numa mistura desafiadora de se vencer, mesmo com técnica da russa e da wakandana, somado o fato de serem duas contra uma. Wanda ouviu arquejos dos dois lados enquanto sua consciência ia e voltava, seus olhos ora verdes, ora vermelhos, ora simplesmente fechados. Quando enfim recobrou os sentidos, viu que Nat estava no chão, quase derrotada.

Num ato de puro reflexo, a Feiticeira lançou suas habilidades telecinéticas para jogar Proxima no ar, justo no instante em que outra máquina cheia de lâminas cortava o caminho. A alien não gritou mais do que meio segundo. Seu corpo foi de encontro com a estrutura larga, triturante, do veículo. O que restou de sua existência foi só seu sangue azul e grosso, respingado ainda quente na face de Natasha Romanoff.

As três pararam um instante para recuperar o fôlego. Wanda colocou a sua tiara vermelha de volta no rosto, que havia voado com o impacto da pancada. Nat, por sua vez, parecia querer virar do avesso, quase sem ânimo para limpar o rosto.

— Mas que coisa nojenta.

A mente da Feiticeira continuava a girar, ao passo que ela tentava enumerar as melhores alternativas para seu próximo ato. Deveria ficar no campo, ajudando Okoye, seu rei e Natasha? Quem sabe Banner na Hulkbuster, que se afastava com um inimigo imenso? Hm, mas em breve viriam os mutantes enviados por Ororo Munroe. Os mutantes estavam chegando e ela sabia que poderiam dar conta do recado.

Ou então seguiria nos céus, com Rhodes, Sam e Thor? O guaxinim, Bucky e a árvore precisavam de proteção, bem como todos os outros guerreiros e guerreiras wakandanas cujos nomes desconhecia. Queria checar como Shuri estava, se tinha algum ferimento grave. E então voltou-se em direção às árvores, onde Steve tinha ido ajudar Visão. 

Era lá onde deveria ir. Se a Jóia do sintozóide fosse perdida… Era fim de jogo.

Sem dizer nada, mas sabendo que suas aliadas compreenderam a decisão em seu rosto, Wanda transbordou seus poderes escarlates para voar até aquele ponto. Os outros iriam até lá em breve, imaginava. Se o pior acontecesse, seria perto de Visão… E todos dariam o máximo de si para impedir. 

Quando enfim estava entre as árvores, próxima do sintozóide, Wanda notou que entre as folhagens no solo e pedras, repousava o corpo tão estranho de Corvus Glaive, a figura curvada que mais lembrava um ceifeiro. Vê-lo morto era um alívio. Steve também estava ali perto, recuperando o ar, salpicado de terra, sangue e suor. Era notável que a batalha não tinha sido nada fácil. No entanto, mesmo com a morte de Proxima e Glaive, a Feiticeira ainda não se sentia tranquila. 

Andou até o robô, até o Capitão. Houve um momento de silêncio, reservado apenas para entender o que estava acontecendo, para resgatar o fôlego e o ritmo do pulmão. Assim como o previsto, os demais aliados foram chegando. Banner, Wilson, Natasha. Onde estava Bucky? Era melhor que todos estivessem ali, isso significava que os aliens animalescos no campo ao menos tinham sido contidos e que, se algum imprevisto acontecesse, todos estariam presentes para evitá-lo. 

Algo sussurrou no ouvido da Feiticeira que, no entanto, aquilo era inevitável. 

Mesmo em Zurique, mesmo em Genosha ou até Wundagore… Ela não sentia um ardor assim na boca do estômago, um ímpeto de se curvar e vomitar. Tentou esconder a sensação rastejando em seu corpo, murmurando coisas terríveis em sua cabeça. Culpou a lembrança de Chthon e sua aura maldita por aquele tremor em seus ombros, em sua boca. Enquanto isso, outra parte de sua cabeça revisitava todas as cores das Jóias do Infinito: Azul, violeta, vermelho, laranja, amarelo… e verde. A última era uma nuance acesa, esmeralda, um tom conhecido como a aura de Stephen Strange. 

Sem saber exatamente o que, Wanda soube que algo havia acontecido com o Mago Supremo. Algo terrível e relacionado com aquele seu belo colar; algo que havia ecoado por longas distâncias até chegar a seus sentidos místicos. Uma Jóia do Infinito também? Há um ano, os dois tiveram o vislumbre de futuro no breve encontro no Kamar-Taj. Não se tratou de precognição, de uma mensagem clara. Foi mais uma...

Uma sensação.

E todo o ambiente pareceu captar a estranheza daquele instante. O vento soprou seco, como se avisasse. Além dos raios de Thor ou talvez invocado por Ororo - que estava chegando - havia um sentimento terrível pairando no ar.  Visão, ao seu lado, soltou um arquejo, ferido e assustado, de modo que a Feiticeira segurou-o pelo braço, evitando que caísse em seu próprio peso. Os olhos artificiais dele estavam muito abertos quando disse:

— Ele está aqui.

Um círculo abriu-se adiante, um portal com um aspecto de tormenta e de nebulosa, diferente de tudo que Wanda já tinha visto. O caos dentro de si entrou em ebulição com aquela cena, reconhecendo um poder titânico e absoluto: Thanos. Imenso, corpulento, sério e decidido. Tudo nele exalava poder e sua aura agourenta mesclava-se com os tons de cada Jóia incrustada na manopla em sua mão. Nunca o sadismo e a violência pareceram tão calmos, tão seguros de si.

Banner, ainda na Hulkbuster avariada, murmurou:

— É ele, Capitão.

— Se preparem, equipe. — Steve respirou fundo, convocando os demais. Cruzou o olhar com Wanda de forma rápida, ainda que pesarosa. Ela entendeu o que ele queria dizer, o que… tinha que fazer. — Atenção.

Um por um, os Vingadores avançaram para conter Thanos. Não houve diálogo, o titã apenas os encarava com meros obstáculos a serem superados. Era imenso, vestia um traje pesado como uma couraça. Se antes Wanda questionava o paradeiro de James Barnes, agora uma parte egoísta e medrosa dela queria que ele estivesse longe, o mais longe possível. 

O toque frio das mãos artificiais de Visão a despertou dos devaneios e do choque de observar seus amigos serem vencidos um a um. T’Challa foi pego no ar e jogado longe como um boneco. A Hulkbuster foi fundida a uma pedra. Mesmo com o olhar do Capitão América, Wanda não era capaz de acreditar que tudo aquilo estava acontecendo e que ela… Ela teria que… Encarou finalmente o sintozóide. Alterar a realidade era um truque perigoso e, não raramente, envolvia custos, consequências, imprevistos. Wanda ousou transpor tal limite raras vezes na vida e, se por si só era um ato arriscado, colocar as Jóias do Infinito na equação apenas multiplicava a cascata de desastres. 

Se fosse mais incauta, a Feiticeira optaria por essa manobra delicada. No entanto, a resposta era simples e Visão estava pronto. Ela tinha que ser a abominação que sempre pensaram que era. Detentora do caos, uma menina que cheirava a morte. Tinha que destruir a Jóia e o sintozóide junto. 

A voz de Visão foi gentil, naquele mesmo tom que ele usava quando haviam se conhecido. Lógico, amável, resoluto:

— É tarde demais. 

Não.

— Eles não são capazes de detê-lo, mas nós sim. Você tem o poder de destruir a Jóia, por favor.

O corpo dela tremia inteiro. Achava que sua alma ia sair do corpo e se dissolver. Rápido, ela encarou a cena que se desenrolava adiante, entre grunhidos de esforço e de dor de seus amigos, entre o silêncio funesto de Thanos. Steve tentou segurar o punho do titã e, céus, ele conseguiu aguentar por um tempo. Depois foi jogado no ar, justamente na direção onde Falcão tentava acertar o inimigo com os poucos tiros que lhe restavam. Vieram os barulhos de disparos, agora de Natasha e de James. Nenhum deles acertou, pois Thanos protegeu-se com mais um recurso da manopla.

— Não.

Para quem ela repetia aquele “não” tão débil e tão tolo? Para si mesma, em negação? Para Visão, para Thanos? Para qualquer força maior que existisse?

— Nós não temos tempo.

Anos gastos tentando ser algo mais do que isso, um receptáculo para destruição. Era como se tivesse apenas sangrado os dedos arranhando uma gaiola, mas nunca saído realmente dela. Wanda Maximoff, um monstro que tiraria a vida de propósito de um ser inocente. 

— Não consigo!

As palavras de seu pai ecoaram em seus ouvidos, despertando-a. Um momento. Um momento horrível onde tudo havia se alinhado. Era uma chance repulsiva, mas talvez a única. Ela poderia aproveitá-la para salvar a todos, tinha que fazer isso. Só um momento onde tudo era possível, no qual poderia fazer e acontecer.

Ele só piscou enquanto lágrimas escorriam pela face dela, sua voz esganiçada e chorosa.

— Consegue sim. — Visão confirmou, pegando a mão dela e colocando-a sobre sua testa, sobre a Jóia da Mente. — Metade do universo morre se não fizer isso. Não é justo. Não deveria ser você, mas é. Sei que… Você nunca me faria mal.

Wanda respirou fundo, chorando e chorando. Se dissesse mais alguma coisa, iria falhar e balbuciar. Não queria pensar mais sobre o que estava fazendo. Queria ser oca, vazia, uma casca sem nada, mas isso não passava de um desejo covarde. E então, os poderes deixaram delicadamente seus dedos e se focaram naquele ponto amarelo, na Jóia que havia despertado suas habilidades, que concedia vida à Visão. Ela deu alguns passos para trás, tentando ser firme com o impacto da energia vermelha contra o corpo dele, ao mesmo tempo em que ela própria parecia rachar entre um soluço e outro. Não adiantava fingir que seria algo suave. Era violento, bruto, escaldante.

Wanda sentia a agonia dele, seu esforço para não gritar enquanto a pedra se fragmentava. Não pôde se focar, porém, em no sofrimento do sintozóide e partilhar de sua dor como merecia. Todos os Vingadores haviam sido abatidos e sobrou-lhe Thanos caminhando em sua direção. Foi a vez dela gritar. Usou um braço para lançar seus poderes psiônicos contra a Jóia e outro para retardar o avanço do titã. 

Escorreram-se simultaneamente segundos e uma eternidade, Wanda igual Atlas segurando os céus sobre os ombros. Num último momento de lucidez, Visão abriu bem suas pálpebras retráteis disse:

— Me perdoe, Wanda.

Houve luz. Destruição. O som da Jóia partindo-se em mil pedaços ao vento de Wakanda, junto com os cacos do coração e do resto de humanidade da Feiticeira. O clarão foi tão intenso, seu impacto tão absurdo, que Wanda acreditou ter ficado cega por um instante. Quando se deu por si, estava com o corpo colado no chão, próxima a arbustos e a terra. 

Silêncio.

Exausta, ela tentou ajoelhar-se. Falhou nas primeiras duas tentativas, considerou-se fraca e patética. Depois, um pouco mais vitoriosa, embora o sabor daquela conquista fosse amargo e metálico, muito parecido com arrependimento e sangue. Tinha conseguido. Custara sua paz de espírito, mas… Thanos não conseguiu a Jóia da Mente. Os fragmentos amarelos da pedra ainda estavam no solo, o corpo de Visão… Jazia cinza e imóvel.

Ela chorou e soluçou mais um pouco. Quem a consolou foi seu inimigo:

— Eu entendo, minha criança. — Ele se aproximou, tirando um pouco de pó dos ombros. Também foi arremessado pela descarga de energia da pedra, no entanto pouco sofreu com o impacto. Sua voz era tranquila e grave, num tom paternal. Wanda quis reagir, mas seus membros mal respondiam. Seu corpo somente eletrizou-se com nojo e com ódio quando Thanos acariciou o topo de sua cabeça, como faria com uma garotinha. — Melhor do que qualquer um.

A resposta dela foi quase um rosnado.

— Você não entende nada.

Um suspiro. Os pensamentos dele eram estranhos e Wanda já não estava em condições de fazer uma leitura correta. O golpe que recebeu de Proxima na cabeça ainda latejava e ela não sabia o tamanho do ferimento, embora uma mecha de seu cabelo estivesse dura de sangue coagulado. O que ela podia discernir entre os pensamentos do titã era uma filha, um penhasco. Imagens confusas. O que era claro era ainda sua intenção, seu propósito de oferecer uma vida melhor ao universo ao matar metade dele. Insanidade.

— Hoje perdi mais do que acreditaria. Mas não é tempo de chorar. Agora… — Thanos estava diante da carcaça de Visão. — Não é tempo algum.

Um gesto de sua mão liberou a cor verde em seu antebraço, símbolos estranhos e circulares. O som liberado pela manopla era algo etéreo, divino, errado. Wanda sentiu um pulsão no estômago, a adrenalina destilada em seu sangue e injetada no cérebro. Ele estava usando outro recurso da manopla, outra Jóia do Infinito… Justamente a cor que Stephen Strange guardava.

Era a Jóia do Tempo e Thanos regrediu apenas o suficiente para que Visão estivesse ali, ajoelhado e com a sua pedra amarela intacta na testa. Tudo durou segundos. Visão arregalou os olhos, vivo e atordoado; Thanos lançou sua mão pra arrancar a Jóia da Mente de seu corpo. A garganta de Wanda doeu com o novo grito desesperado, suas cordas vocais cansadas. Se levantou com a ajuda de seus poderes escarlates na tentativa de impedi-lo, mas já estava sem forças e não conseguiu se defender do golpe duro que sofreu, um tapa indiferente e descomunal que a arremessou metros adiante, contra um tronco.

Escuridão. Ouviu Visão morrendo pela segunda vez, ouviu alguém chamando seu nome. Bucky? De novo, a consciência de Wanda Maximoff oscilava entre o esquecimento e pesadelos. Seu ferido corpo repousava inerte no chão, torcido numa posição desconfortável.  É claro. Os sonhos tumultuados que teve pela manhã… O gosto, a terra, a dor. Depois de tudo, aquela era a derrota então? Ela chorou baixinho, ou achou que chorou. Quis chamar pelo irmão, pelos pais, pelos amigos. Ouviu outras coisas mais. A voz de Thor, depois a voz de Thanos novamente.

E um estalo.

Wanda abriu as pálpebras nos braços de James Barnes. Seu rosto estava sujo, tenso. Os olhos azuis tão tristes. Um pouco de sua preocupação se esvaiu quando ela despertou, mas não toda. Apesar de desorientada, ela entendia a razão por detrás disso e não demorou para que sua vista se embaçasse com lágrimas. 

— James, eu… — Bucky só a abraçou forte, ainda sentados na terra. Ele acariciou de leve seus cabelos enquanto ambos respiravam de forma pesada, lenta. — O que…

Se separaram um pouco, sem saber o que esperar em seguida. Ao redor deles, o restante do time tentava se reagrupar, cada um com feridas diferentes e expressões pasmas. Steve estava de pé e, mesmo mancando, e parecia disposto a segurar a realidade em que viviam com as próprias mãos. 

— Pra onde ele foi, Thor? — Aproximou-se do deus nórdico e seu machado. —Pra onde ele foi?

Não havia resposta. 

O farfalhar do vento contra as copas das árvores trouxe uma melodia melancólica e enervante ao momento. Wanda encarou o céu claro sem entender como tamanho desastre tinha acontecido em plena luz dia. O sol parecia sempre parecer incidir diferente em Wakanda e aquela manhã estava linda demais para um fracasso.  No entanto, a natureza sabia também de algo diferente no ar, algo profano e irreversível. Silêncio. Wanda sentiu as ondulações da realidade se moverem cada vez mais rápido, se partindo e se remendando. 

Bucky notou o estremecer de suas mãos e a encarou assustado. Estava prestes a questionar o que diabos estava acontecendo quando a Feiticeira soltou um arquejo resfolegante e pôs a palma sobre o próprio peitoral. Arregalou os olhos em pura cor escarlate, arfou. 

Ela sentia em seu coração a morte da metade dos seres do planeta. 

Buscou as mãos de Bucky com as suas, precisando se firmar em algo. Seu movimento foi rápido, desesperado. Era a pior dor que sentiu na vida e ela podia jurar que seu corpo estava sendo partido ao meio. Thanos tinha feito isso? Todos que morriam sentiam aquela agonia? Ninguém ali parecia sentir o mesmo e ela se questionou se era a única a partir. 

— James. — Implorou ela, com novas lágrimas no rosto. Sentiu-se pequena, frágil, impotente. Fez tudo o que podia, o correto pelos meios certos, seguiu o plano como pôde. Aproveitou o único momento que tinham. E lá estava Wanda Maximoff, agarrando-se ao seu amado e aos poucos minutos que lhe restavam. — Eu tô com tanto medo.

Ele fechou os olhos, sua mandíbula travada e tensa. Encostou sua testa na dela num gesto de carinho, afagando seu ombro com a mão livre. 

— Eu… — Sua voz foi um sopro. — Eu tô aqui com você. Para sempre.

Wanda conseguiu sorrir fraco, pois sabia que aquele “para sempre” estava prestes a se extinguir, mas que James enfrentaria essa outra desventura ao seu lado. 

Ela ia morrer e sabia disso.

Só queria ter visitado Shuri em outras ocasiões, abraçado mais Ebony na casa de Agatha Harkness. Desejou mais tempo para dizer a todas aquelas pessoas que amava que suas auras era lindas; as cores mais belas que seus olhos, tão cansados de lágrimas e misérias, tinham visto. Estava um tanto arrependida, porém grata. Talvez se reencontrasse com Pietro, com sua mãe biológica, seus pais adotivos e até com sua antiga amiga Emilja. Um caminho estranho do qual ninguém retornou para contar como era a viagem, era isso que ela tentava pensar para acalmar seus nervos.

O que ela não planejava era virar lentamente seu rosto, abrir os olhos no ímpeto de ver a natureza pela última vez, e na realidade enxergar Erik Lensherr. Esqueceu-se de todos os questionamentos de como ele tinha chegado até tão rápido, embora… Tão tarde. Homem tolo. Se exibia forte e duro como ferro, mas só queria uma família para chamar de sua, assim como Wanda. Ele se aproximou devagar, sem crer no que estava observando. Vestia sua roupa vermelha e equipada, no entanto logo se desfez do capacete, jogando-o ao chão. Ajoelhou-se, trêmulo, rosto pálido e os olhos vítreos.

Desprovido de ira. Era inteiro choque, incredulidade, medo. Wanda chorou mais um pouco e quis tocá-lo, abraçá-lo.

Pai...

Erik piscou e engoliu seco ao ouvir aquela palavra. Era o que ele mais queria ouvir da boca dela, entretanto não havia situação pior. Ela lamentou por isso. Talvez, no fundo, Wanda só tivesse medo de perdê-lo também. Quando ergueu um dos braços para tentar alcançá-lo, viu seus dedos escurecerem, tornando-se partículas e dissipando-se na brisa. Com o braço oposto, segurou firme Bucky. Havia chegado a hora, o fim do pavio de uma vela. De tantas velas… 

Ela fechou as pálpebras e apoiou de novo a testa em James. Mal ouvia a voz de Steve, a voz de Natasha desesperada ou o seu pai lhe chamando. O soldado temia pelo que vinha a seguir, se é que vinha coisa alguma. A Feiticeira, infelizmente, não tinha palavras de conforto para lhe oferecer, apenas seu amor. Ele sentia. Não necessitaram de frases, de voz. No silêncio, a última não-conversa deles.

 

Depois, cinzas.

 


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Notas finais do capítulo

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska,

*Cenas de ação são um desafio para mim, então caso tenha ficado confuso, é só me falar! Adoraria melhorar minha escrita;

*Vocês devem ter notado que o ritmo da fic foi mais rápido; fiz isso porque não tinha intenção de mudar taaanta coisa (também não tive tanto tempo), sem falar que também todo mundo deve ter visto o filme...Enfim, ainda trarei mais detalhes, mas basicamente é isso :/

*Se possível, comente ♥ Me fará muito feliz!



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