Audeline escrita por Jardim Selvagem


Capítulo 2
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Música: Matador - Arctic Monkeys



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Os dois estavam juntos, podia-se notar, embora ela sempre se afastasse quando o abordavam nos corredores do aeroporto. Aquele era o quinto grupo de fãs que ele enfrentava no dia, e, mesmo que depois reclamasse à boca pequena sobre como não tinha privacidade nem durante as férias, secretamente adorava a subserviência de todos eles. Não faziam mais do que a obrigação; pessoas como ele mereciam um tratamento diferenciado, afinal. Passara a manhã toda vendo o próprio rosto enquanto assinava as capas das inúmeras revistas, cujos textos anunciavam seu sucesso no último filme, coroando-o como o homem mais sexy do país no ano passado, o ator mais bem-pago em 2018, a celebridade mais simpática na atualidade. E era assim que o público deveria enxergá-lo: sorridente, equilibrado e charmoso. Sua vida pessoal não era da conta de ninguém. Depois de anos em relacionamentos malsucedidos, finalmente encontrara a parceira ideal, a que compreendia o verdadeiro significado de privacidade. A mulher ao seu lado não era dada a exposições, desaparecendo em meio à multidão com a cabeça baixa e os enormes óculos escuros que ele comprara para ela nos meses anteriores.

Após a sessão informal de autógrafos, abraços e fotos, voltou-se para ela, agora sentada num dos bancos do terminal com destino a Paris, digitando no celular recém-comprado com aquela mãozinha pálida, as unhas pintadas de um rosa discreto, como boas meninas deveriam fazer. Olhou para ela mais um pouco. Amava-a tanto que doía.

Acomodou-se ao seu lado e passou o braço musculoso por seus ombros frágeis, puxando-a para si, apertando-a contra o peito. O perfume doce que escolhera para ela acalentou seu olfato. Sua tigresinha coberta de açúcar caramelizado.

— Já estava sentindo sua falta… — ele disse, afundando o rosto nos cabelos castanhos dela, aspirando o cheiro, as mãos firmes ao seu redor.

Ela sorriu.

— O jeito como você trata seus fãs é lindo, James… Acho que essa vai ser a milésima vez que digo isso, mas você merece tudo que está acontecendo, meu amor, e o que ainda mais está por vir.

— Sei que mereço essas semanas com você. Janeiro demorou para chegar, mas agora você não me escapa.

— É mesmo? — Soltou uma risadinha colegial. — Olha que a primeira coisa que vou fazer em Paris é fugir do hotel direto para umas comprinhas… Duvido que me ache entre aquelas sacolas gigantes.

Ele beijou sua testa, aumentando a pressão dos dedos no braço dela.

— Te acho nem que seja no meio do inferno.

A chamada para o voo 1457 ecoou pelo aeroporto. Os passageiros começavam a se organizar em filas. Ele a soltou, levantando-se para pegar as malas.

Os dedos da mulher deslizaram pelo braço. A pele estava rosada.

Bree Tanner se pegou desejando mais uma vez que aquilo não fosse real, mas aquele sobradinho em Forks batia com o endereço que tinha recebido. O sol se punha atrás dela, raios de luz sanguínea aquecendo sua pele e tingindo seu rosto de vermelho.

Observou as paredes brancas, a grama cortada, as trancas velhas das janelas e o tapete pequeno. Uma casinha normal, racionalizou para si mesma. Só não gostava daquela aldrava de bronze em formato de serpente. Engoliu em seco. Bateu à porta.

Contou um minuto inteiro antes de a porta abrir-se com um silêncio fantasmagórico. Apertou os olhos, tentando enxergar em meio à escuridão no interior da casa. Assim que entrou, a porta fechou-se com um baque alto. Os pelos de seu braço eriçaram-se. Lá dentro estava frio, gélido, e as primeiras notas de Danse Macabre, de Camille Saint-Saëns, ressoavam pelo cômodo. Avançou a passos relutantes.

As paredes exibiam manchas de sangue seco, e Bree logo imaginou as donas da casa bem ali, esfregando e esfregando e esfregando, o pano cada vez mais sujo, adquirindo uma cor que lhe dava náuseas só de pensar. Olhou para cima. No teto, pendurados como balões de festa, jaziam inúmeros morcegos, os olhinhos betumados encarando-a com um brilho morto.

No centro da sala, mais adiante, encontrou uma mesa coberta com uma toalha de veludo molhado. Em cima, além dos pratos e talheres de prata, repousavam incensos, copos de cristal com um líquido escuro e viscoso, cordões de alho, terços vermelhos compridos e estacas de diferentes tamanhos. Bree pegou uma com mãos trêmulas. A superfície estava lixada e envernizada. No topo, um entalhe em formato de cruz. Deslizou o indicador lentamente até parar na extremidade incisiva. Pressionou-a contra o dedo, sentindo a ponta da madeira afundar a pele.

A realidade despencou sobre suas costas suadas. É, era isso mesmo. Não, não conseguiria fazer isso. De jeito nenhum. Largou a estaca como se queimasse sua pele. Olhou ao redor nervosa. Talvez ainda desse tempo para desistir daquela loucura e correr em direção à —

A música perturbadora deu lugar a outra, cheia de batidas eletrônicas pesadas, uma voz feminina cantando uma letra salpicada de palavrões e frases de duplo sentido. A caixa torácica de Bree chacoalhava em sincronia. Seus dentes fecharam-se no interior macio da bochecha. A língua experimentou sangue. Ela só queria que a música parasse. O ritmo a deixava agoniada, obrigando-a a sentir os ossos tremelicando por baixo da pele, como se fossem quebrar a qualquer segundo.

Saindo de sabe-se-lá-de-onde, apareceram duas jovens vestindo longas capas pretas bordadas com iniciais em vermelho vibrante. Uma delas exibia a letra R. A da outra mostrava a letra L. R. cantava a letra com fervor enquanto balançava a cabeça freneticamente, e o capuz logo caiu para trás, revelando os longos cabelos loiros. L. olhou para Bree e então cutucou R.

— Rosalie, acho que já chega.

Rosalie pareceu não ter ouvido. Continuava dançando ao redor da sala. L. apertou os lábios. Ela atravessou a sala e desligou o som.

Ei! Sua estraga-prazeres! Porra, Leah, não posso nem me divertir um pouquinho que você já vem me cortando, só estava tentando criar um clima…

Bree olhou ao redor. Clima de quê, de seita macabra clandestina?

Leah oscilou a cabeça em sua direção. Rosalie parou.

— Opa, olha só quem chegou… — Aproximou-se de Bree e deu um tapinha em suas costas. — E aí, novata, curtiu a recepção temática? Se fosse por mim, a gente teria comprado também umas dentaduras realistas, encomendado mais réplicas de morcegos pro teto, quem sabe um pouco mais de sangue falso nas paredes ali, e se bobear uns caras gatos fantasiados de Lestat e Louis, mas sabe como é, o orçamento da chefia aí… — O polegar apontou para Leah — Não era lá muito favorável...

Bree piscou para ela, estática. As mãos finas e quentinhas de Rosalie seguraram seu rosto, e os olhos grandes e doces analisaram Bree por alguns segundos.

— Quer um suquinho de tomate com beterraba pra se acalmar?

A preocupação nos olhos de Rosalie pareceu crescer quando Bree não respondeu. "É, acho melhor eu ir lá pegar para você", murmurou enquanto se afastava até o fundo da sala.

— Ela às vezes se empolga demais e acaba exagerando, mas logo, logo você vai se acostumar. Espero que não tenha se assustado muito com a decoração. — Estendeu a mão. — Sou Leah. Qual o seu nome mesmo? Tinha saído no comunicado, mas acho que Rosalie acabou queimando por engano.

Que tipo de pessoa taca fogo em alguma coisa por engano, meu Deus?

— Bb-Bree. — Seus lábios tremiam. Fechou a boca e tentou se recompor. — Muito prazer.

— Sei que você deve estar cheia de perguntas, então acho melhor nos sentarmos para conversar um pouco, tudo bem?

Bree assentiu, deixando Leah guiá-la até o sofá. Rosalie voltou da cozinha com um copo quase transbordando de suco, e prontamente o enfiou na mão de Bree, obrigando-a a dar um gole. Hesitando por um instante, ela bebeu um pouco, e então, surpresa com o gosto agradável, virou o copo goela abaixo, o líquido descendo pela garganta de uma só vez. Bateu o copo vazio contra o vidro da mesinha de centro.

— Não vou conseguir fazer isso.

— Isso o quê?

Isso… — Bree gesticulou para os objetos na mesa de jantar — …Tudo. Não tenho a capacidade de p-pegar uma dessas e-estacas e… E-enfiar n-num... — As palavras embolavam-se como um emaranhado de teias de aranha. — Ah, Deus

A voz angustiada de Bree chocou-se com a risadinha aguda de Rosalie.

— É com isso que você está preocupada? Relaxa, mulher… Vamos fazer o seguinte, você se livra de todos aqueles livros e filmes clássicos, porque aqui na vida real nada daquilo se aplica, beleza? — Parou por um instante, refletindo. — Quer dizer, quase nada, né, não, Leah? Não dá pra negar que aqueles filhos da mãe são bem gostosos, teve uma vez que eu…

— O que Rosalie está querendo dizer, Bree, é que aqui não usamos nem alhos, nem terços e muito menos estacas para matar. Não se preocupe, você não precisa utili…

— Que isso, Leah, se eu fosse a novata iria querer aprender a usar uma estaca sim, ela pode não ser letal, mas pelo menos machuca, né? — Virou-se para Bree. — Agora, quanto aos alhos e terços… Vai por mim, melhor nem se dar ao trabalho. No mínimo, vão rir da sua cara. Ou querer te matar. — Rosalie deu de ombros. — Experiência própria.

— E o sol?

— Só serve para dar um bronzeado.

— M-Morcegos?

— Ótimos bichinhos de estimação.

— C-Caixões?

— A moda agora é cama king size.

Bree parou. Voltou-se para as duas com olhos arregalados.

— Caramba. Como cargas d'água se destrói um?

Leah e Rosalie puxaram-na para fora do sofá e levaram Bree para os fundos da casa.

Ao chegar, Bree deparou-se com um pequeno jardim. A grama estava verde, cortada recentemente, e havia uma coleção de vasos brancos com dezenas de plantas, o cheiro agradável entrando em suas narinas. Tudo ali era tão bonito e bem-cuidado que um impulso infantil de tocar o que via pela frente dominou seu corpo antes que ela percebesse o que estava fazendo.

Tira a mão daí!

Os dedos dela se recolheram com o aviso de Rosalie. Bree nunca tinha visto flores tão belas na vida — as pétalas arroxeadas exibiam linhas finas que pareciam vasos capilares azuis. Enclausuravam-se umas nas outras, fechando-se como se quisessem proteger seu centro; pendendo no ar como se estivessem adormecidas.

— Acônito. Já ouviu falar? — Leah perguntou.

— Eu deveria?

Leah foi até ela e as plantas.

— Só podemos tocá-lo usando luvas. E depois nos certificamos de lavar bem as mãos. Olhe aqui. Está vendo? Todas as partes do acônito são tóxicas… — Apontou para o caule, as folhas e as pétalas. — Mas nosso maior interesse está mesmo na raiz. É onde tem a maior concentração de…

Aconitina — Rosalie completou, entediada. — Chega de detalhes técnicos por hoje, né, Leah? O que você realmente precisa saber sobre essa belezinha, novata, é que ela é letal para humanos…

— A morte pode ocorrer em menos de uma hora, dependendo da quantidade ingerida — Leah acrescentou.

— …E veneno puro para eles. Um bom copo de sangue com isso aqui e bum! — Rosalie levou as mãos para o ar. — Mortinhos da silva.

— Como exatamente vocês fazem is…

— Bree, não se preocupe com nada disso por enquanto, certo? Há tempos que não utilizamos o acônito… Isso pode surpreendê-la, mas nossa convivência com eles é pacífica. Em geral não precisamos intervir em quase nada. E como no momento não temos trabalho nenhum em vista…

Leah e Rosalie se entreolharam por alguns segundos antes de Leah continuar:

— … Estamos pensando em sair de férias para Port Angeles depois de amanhã. Vamos visitar o Olympic National Park.

— Trilhas ecológicas e cachoeiras o dia todo, novata! É ou não é do cacete?!

Melhor do que caçar vampiros, Bree pensou, já visualizando as inevitáveis câimbras, gotas de suor e queimaduras no seu corpo.

James a pegou olhando para aquele relógio velho — é vintage, meu amor, vintage — pela terceira vez naquela noite. Levantou o queixo dela para encará-la, dedos ásperos apertando bochechas macias.

— Você mal tocou na comida.

— Acho que ainda estou digerindo o almoço.

Ele riu, mas o gesto não passou de uma flexão de músculos faciais.

— Deveria ter me dito isso antes de eu pedir o menu degustação de um dos restaurantes mais caros dessa maldita cidade…

Ela olhou para as janelas. Lá fora, nas calçadas da Saint-Honoré, havia uma pequena fila de parisienses e turistas endinheirados, luvas digitando impacientes nos celulares e bocas abrindo-se em conversas preguiçosas, as respirações soltando fumacinhas brancas, neblinas momentâneas formando-se e dissipando-se no ar. Os olhos castanhos de Giulia rastejaram até ele.

— Desculpa. — Mãozinhas finas buscaram as dele pela borda da mesa, afagando as veias saltadas no dorso de sua mão.

— Coma pelo menos um pouco.

— James, de verdade, não acho que…

Vamos. — Pegou o garfo dela e perfurou a carne macia e perfeitamente mal passada, sangue diluído espalhando-se no prato. — Abra a boca.

— James…

— Deixe de ser teimosa e abra a boca, Giulia.

Os lábios separaram-se dois centímetros, a boca em formato de coração. Ele acompanhou ansioso cada movimento dela, sua língua recebendo a fatia de carne, a boca fechando-se num biquinho ao redor do talher, sugando o metal por um instante e então soltando-o, deixando os dentes do garfo roçarem o lábio inferior. Ela mastigou lentamente antes de deglutir, olhos felinos hipnóticos fixos nos dele. Tigresa.

James engoliu o desejo que lhe subiu à garganta.

Boa menina

Colocou o garfo de volta na mesa. Giulia sorriu.

— Quais são os planos finais da viagem, meu amor?

— Nossos últimos dias serão cheios. Terça, quarta e quinta já agendei as visitas à Sacré-Coeur, Rodin, Orangerie e o Louvre, é claro. Na sexta tenho uma reunião com meu agente, mas não deve demorar muito. — James deu um gole no vinho. — Duas ou três horas no máximo.

— Hmm… Na sexta posso ir às compras ou quem sabe fazer as unhas, arrumar o cabelo… Ficar bonita para você…

James abriu um sorriso largo. O garçom levou os pratos.

— Acho uma ótima ideia, querida, desde que não mude o cabelo. — Fitou as longas e sedosas mechas. — Prefiro desse jeito. Assim reconheço você a quilômetros de distância.

— Estou sempre na sua mira, não estou?

— Eu te amo, Giulia.

— Idem, tolinho.

— Sabe há quanto tempo estamos juntos? Eu sei. Daqui a dois meses vamos completar um ano.

— Às vezes sinto que te conheço há mais tempo que isso. As horas ao seu lado parecem eternas.

Ele franziu a testa, as palavras ecoando em sua mente. As horas ao seu lado parecem eternas. O que ela quis dizer com… Buscou nos olhos de Giulia algo que ele mesmo ainda não sabia o que era, mas que de qualquer forma não encontrou.

O garçom voltou com a sobremesa, colocando os pratos em frente aos dois. Serviu mais vinho antes de murmurar um discreto "bon appétit" e deixá-los sozinhos. No centro do prato imaculado havia uma bela e delicada pavlova com camadas de creme fouettée e cobertura de framboesas, a calda formando uma poça vermelha no topo.

James observou Giulia hesitar antes da primeira colherada. Ela levantou a cabeça de súbito e o pegou encarando-a. Levou a colher à boca.

— Nossa, está muito bom! — Giulia disse entre mordidas, a voz tingida de uma empolgação infantil. — Nunca tinha provado algo assim, acredita? É uma mistura de…

Em instantes como aquele, James enxergava nela uma menininha ingênua, doce e completamente alheia ao efeito que provocava no sexo oposto. Ela podia não notar, mas ele notava. Os homens ao redor agora pareciam atentos ao que se passava na sua mesa. Um velho repugnante tinha os olhos enrugados em Giulia. Sim, James notava. E não gostava nem um pouco.

Fale baixo, está chamando atenção desnecessária…

— Mas ninguém está olhando para cá, por que você não…

Ele bateu o punho na mesa e a colher que ela segurava perto da boca soltou-se de sua mão. O creme sujou a roupa cara e a calda pareceu uma gota de sangue, líquido vermelho trilhando seus lábios, queixo, pescoço e colo, desaparecendo por fim no decote de sua blusa. "Ah, droga", Giulia sussurrou, pegando o guardanapo e dando batidinhas bem no meio dos seios. James olhou em volta. Quase conseguia ouvir o que aqueles filhos da puta estavam pensando.

— Giulia.

Ela ainda tentava limpar a roupa.

— Pare com isso.

— Acha que vai ficar manchado? Droga, essas coisas sempre acontecem quando estou de branco, é mesmo impre…

Eu disse para você parar com isso.

— Já estou acabando, um minutinho…

Por um segundo, James considerou arrancar o tecido de suas mãos e chacoalhar seus ombros, me obedeça merda me obedeça eu mandei você parar e você continua esfregando o guardanapo nos peitos feito uma putinha, mas lembrou onde estava e teve de engolir o ímpeto de fúria como um remédio amargo. Os nós dos dedos tornaram-se brancos.

Mas estava tudo bem; estava tudo sob controle. Ele sabia esperar.

Amansaria sua tigresinha desobediente quando voltassem para o quarto do hotel.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler! Vou ficar muito feliz se você comentar! Bjs e até o próximo cap.



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