Correio Elegante escrita por Sirena


Capítulo 3
Terceira Carta


Notas iniciais do capítulo

Esse é o primeiro cap a ter um pouquinho mais de drama, nossos personagens agora estão no nono ano.
Gatilho: relacionamento abusivo.
Obrigada a Rafa Borges e Isah Doll pelos comentários mais que amorosos ♥ e obrigada a The Nightmare por favoritar ♥



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Quando a Adriana entrou na sala usando um vestido de festa junina, vermelho, e com mechas cor de rosa no cabelo, eu nem me surpreendi. Renan estava sentando do meu lado e fazíamos um trabalho juntos.

Ele estava tão irritante nos últimos tempos que eu passava metade do tempo fingindo que não ouvia o que ele falava, ignorava até mesmo quando ele dava as respostas corretas das questões daquele trabalho.

— Oi. – cumprimentei-a sorrindo.

Adriana estava em seu último ano de escola e eu juro que não conseguia entender como ela conseguia encontrar tempo para entregar o correio elegante entre todas as coisas que estava fazendo. Digo, cursinho pro vestibular, TCC, auto-escola, trabalhando durante a tarde no salão que tinha montado e a beira da semana de provas... Como que ela conseguia? Adriana era foda!

— Oi, Marcos. – ela acenou para mim e deu um peteleco na cabeça do irmão que estava na outra ponta da sala.

Era tão horrível não sentar perto do Paulo e do Gabriel. Desde que eu entrei naquela escola, eles estavam sempre perto de mim. Era tão estranho não tê-los por perto. E era tão idiota que o Renan sempre implicasse quando eu passava tempo com eles.

— Professora. – Adriana falou dando um sorriso de canto. — Eu sei que você está passando um trabalho e tenho certeza que é muito importante, mas, se importa?

— À vontade.

— Okay, então essa é pra você. – Adriana sorriu entregando uma carta para a professora e se voltando para a sala. — Agora... Gabriel. Pedro. Anna. Giovana. Cecília. Lucas. Renan.

Renan franziu a testa pegando a carta.

— De nada. – resmunguei enquanto ele abria o envelope.

Ele me olhou de rabo de olho e revirou os olhos antes de me dar um beijo na bochecha.

— Obrigado, meloso.

Revirei os olhos. — Adriana, não tem mais nenhuma? – fiz bico, olhando-a com meu olhar mais pidão.

Ela revirou a cesta um instante para confirmar então deu de ombros. — Nada, Marcos, mas, ainda tem mais dois dias, talvez chegue algo. Se seu namorado não mandar... – ela lançou um olhar torto para o Renan. — Tenho certeza que o numero quinze vai.

Ela olhou rapidinho para o outro lado da sala, onde meus amigos estavam sentados com Pedro, que havia repetido de ano. Eles riam enquanto faziam o trabalho, tornando ainda mais torturante estar longe deles! Como eles conseguiam se divertir com um trabalho tão difícil? Eu também queria me divertir como se aquelas notas não importassem, poxa! Adriana segurou um sorrisinho então saiu.

— Quinze? – Renan arqueou a sobrancelha, parecendo desconfiado.

Dei de ombros, nervoso. — Não pergunta, eu não faço ideia de quem é.

— Marcos. – ele chamou minha atenção.

Suspirei, coçando o queixo. — Sei lá, eu sempre recebo uma carta anônima no correio elegante desde que vim pra cá. Não sei quem é. Adriana chama de número quinze porque a pessoa assina com números. Quinze, doze, sei lá qual, sei lá qual.

Renan bufou e guardou a carta que eu o escrevi sem nem sequer ler, em seguida a amassou e enfiou de qualquer forma na mochila.

— Ei, isso deu trabalho pra fazer, okay? – bufei. — Eu até fiz uma letra bonita! E você sabe bem como a minha letra é feia.

Ele revirou os olhos e puxou a folha de trabalho da minha mesa, agora era a vez dele de me ignorar.

Bufei deitando a cabeça na mesa, decidido a dormir enquanto o idiota que eu chamava de namorado terminava nosso trabalho.

***

Quando conheci o Renan, no começo do ano, ele era um cara isolado, mas, quando começamos a namorar, ele se mostrou muito fofo. Sempre me dava caixas de chocolate, anéis e livros... Sempre falava como não imaginava mais a vida sem mim e essas breguices sobre como me amava e morreria sem mim.

Mas, em algum momento, aquelas breguices foram sendo ditas com mais e mais frequência e com mais e mais seriedade até que começou a me incomodar de verdade. E em algum momento ele começou a encrencar com o fato de eu passar o tempo com Paulo, Gabriel e Pedro, até eu começar a me afastar um pouco deles. Atualmente só conversávamos por mensagem e mesmo assim, várias vezes, Renan pegava meu celular escondido e olhava minhas conversas com eles.

Era tão irritante.

Meus pais o odiavam.

Renan dizia que eu não ligasse para a opinião deles, porque eles apenas estavam procurando uma desculpa para me criticar, porque não me aceitavam de fato. E ele falava tantas outras coisas que machucavam... Mas... Ah, ele ainda me dava chocolates e eu gostava disso. Ele sempre queria fazer trabalhos comigo e fazia carinho no meu braço. Me acompanhava até em casa e segurava minha mão sempre que notava alguém nos encarando... Era bom... Todo o resto era só... Era só uma parte ruim.

Namoros tinham partes boas e ruins, fazia parte, certo?

— Eu não entendo porque você está implicando tanto com isso. – bufei, olhando para o Renan enquanto voltávamos de ônibus para casa.

Eu descia alguns pontos antes dele, tentava me concentrar na conversa e ao mesmo tempo não deixar meu ponto passar. Sabia que ele não me acompanharia até em casa aquele dia, estava irritado demais com o correio elegante para querer passar mais tempo do que considerava estritamente necessário comigo.

— Ah, não sei! Tem um cara aleatório mandando cartas de amor para o meu namorado e ele parece se preocupar mais com o fato de não ter recebido nenhuma este ano do que com o fato de que isso é ridículo. Você parece uma vadiazinha carente esperando por um pouco de atenção!

Tive que olhar ao redor para ter certeza que ele ainda estava falando comigo.

— Espera!

— O que foi agora?

— Eu tenho que tirar meu sapato. – expliquei. — Vou bater na sua cara com ele.

Renan revirou os olhos e franziu as sobrancelhas, me olhando com sua melhor cara de júri e juiz. Eu odiava tanto quando ele me olhava assim, como se eu estivesse sendo acusado de algum crime.

Eu não tinha cometido crime nenhum.

Na verdade, eu me dei o trabalho de escrever uma porcaria de carta para a porcaria do meu namorado e não recebi nem uma porcaria de beijo na boca por isso. Acho que tenho o direito de ficar chateado por não ter recebido minha cartinha anual. Ou recebido qualquer porcaria que dissesse algo como “você é fofo, gosto de você.” Era pedir muito?

— Não seja dramático, sabe que estou certo. – Renan bufou.

Olhei pela janela do ônibus tentando me localizar.

Okay, dava tempo disso.

Chocolate era bom, mas, eu tenho um limite! E me xingar fora da cama era muito além desse limite!

— Não, não sei. Mas, sabe o que eu sei? Que você não tem nada haver com isso. – dei de ombros me levantando. — Adivinha por quê? Porque a gente terminou!

— Ah, para! – ele revirou os olhos. — Você sabe que não tá falando sério.

— E por que não estaria? – arquei a sobrancelha dando sinal.

— Porque você sabe que se terminar comigo não vai conseguir mais ninguém enquanto amanhã mesmo eu já vou tá com outro.

Semicerrei os olhos.

Olha, eu consigo aceitar muita coisa de muita gente!

Consigo aceitar quando dizem que sou muito lerdo, que me atraso muito, consigo aceitar quando falam que não sou muito bonito ou me visto mal ou tenho péssimo gosto para a música ou mesmo que não escrevo e nem leio muito bem.

Agora, me dizer que eu não consigo arranjar outro? Ah, isso eu não consigo aguentar.

— Bom, vamos ver isso, afinal, ainda tem mais dois dias de correio elegante para eu receber a carta que estou esperando, não é mesmo?

Antes que ele pudesse responder, o ônibus parou e eu pude descer.

Por um instante, ao por os pés no chão, eu me senti aliviado. Livre. Como se tivesse tirado o peso do mundo das costas. Mas, em seguida eu senti frio. E medo. Era uma dor diferente no meu peito. Como se eu tivesse sido jogado no meio do nada. No meio das cinzas de um incêndio ou dos restos de uma cidade destruída por um furacão.

Não, não como se tivesse sido jogado. Como se eu tivesse me atirado no meio de uma zona destruída.

Meu peito apertou e o frio na minha barriga era como se estivesse pulando de um lugar muito alto e prestes a vomitar. Era como se tivesse pulado de um penhasco.

Era tão estranhamente doloroso. Como se eu tivesse soltado algo que segurava a tanto tempo que já fazia parte de mim. Como se eu tivesse jogado algo importante fora.

Apesar disso, havia algo como um alivio, como quando você prende a respiração por muito tempo e finalmente volta a inspirar e expirar. Havia alivio e no fundo, apesar da dor, havia algo quase como contentamento.

Quase.

Respirei fundo, caminhei o resto do caminho até minha casa e me esforcei para enfrentar o resto do dia normalmente, como bem devia.

***

— Eu não acredito que ele disse isso. – Pedro bufou, amarrando novamente o cabelo preto num rabo de cavalo.

Ele sempre amarrava o cabelo quando estava puto. E se o cabelo já estivesse preso, ele desamarrava só para poder amarrar novamente. As coisas que a gente repara em pessoas atraentes...

— Ele é um desgraçado. – o Gabriel apontou. — Mas, pelo menos agora, você voltou pra gente, é só o que importa e se ele chegar perto de você de novo, eu chuto a bunda dele com tanta força que ele vai parar em Júpiter.

— Isso é bem legal da sua parte. – resmunguei deitando a cabeça na mesa.

Paulo parecia alheio ao assunto, escrevendo algo no seu caderno.

— Não vai falar nada? – questionei, arqueando a sobrancelha para ele.

Ele deu um longo suspiro, tirando os olhos do que escrevia e os erguendo para o teto da cantina como se pedisse aos deuses por uma dose extra de paciência.

— O que foi que eu te disse quando vocês começaram a sair? Que ele era um filho da puta. Você me ouviu? Não ouviu. Não adianta chorar agora, eu avisei.

Bufei.

— Que belo amigo.

Ele me olhou feio e então deu de ombros. — Bom, talvez se você não ficasse tanto tempo babando por idiotas...

— Eu não acredito que você tá me culpando por ele ser um babaca!

— É claro que eu não to te culpando! Mas, porra! Todo mundo nessa mesa te avisou que ele não prestava! Você que foi atrás mesmo assim esperando uma história estilo A Bela e a Fera!

— Ah, Paulo na boa, vai se fuder! – gritei irritado, cobrindo o rosto. — Que merda, cara! Não precisa me dizer que vocês avisaram e eu fui idiota, eu sei disso, mas... Não parecia real, merda! Ele não parecia tão ruim e você não precisa jogar na minha cara que não era mas... Mas... – respirei fundo, sem saber como concluir, pressionando as mãos contra meus olhos. Minhas mãos tremiam e eu tentava resistir ao impulso de chorar.

—... Eu não quis falar assim. – o Paulo murmurou por fim. — Droga, você sabe que eu não falaria assim contigo! Foi mal eu... Eu me expressei mal. Sou ruim falando, ‘cê sabe, sempre me expresso errado. É só que... É um saco ver você tão mal por um babaca e Adriana disse que ontem ele entregou duas cartas para meninos de outra sala. – falou de uma vez, quase atropelando as palavras tão rápido que falou.

— Como é que é? – uni as sobrancelhas, abaixando as mãos, sem saber se ouvira direito.

Ei, eu sei que o Renan era um desgraçado, mas isso... Isso era meio que demais, não era? Isso não era algo que ele faria, eu acho, ou será que...

— Você pensa no que você fala? – o Gabriel perguntou dando um tapa na nuca do Paulo.

— Só to falando. Sabe, pra você tomar cuidado quando for passar pela porta, seria horrível se batesse o chifre. – ele fechou os olhos assim que terminou de falar, fazendo careta. — Digo...

Na minha mente eu o xinguei de todos os palavrões brasileiros e espanhóis que pude me lembrar.

— Você é uma péssima pessoa. – Pedro bufou dando um tapa na cabeça de Paulo.

Os olhos dele passaram por cada um de nós antes de se levantar, deixando o material todo de lado.

— Ei, Renan! – Paulo chamou. Arregalei meus olhos.

Renan estava sentado com garotos e garotas de outra sala, mas ergueu os olhos quando foi chamado.

— Chega mais!

Com um sorriso vitorioso, ele se levantou e veio em nossa direção, como se algo que ele previsse estivesse para acontecer. Bufei conseguindo imaginar exatamente o que ele achava que estava para acontecer, e me perguntando o que diabos o Paulo estava querendo.

Cogitei me levantar e fugir para as colinas. Talvez eu pudesse me esconder no banheiro ou algo assim...

— O que foi? – ele olhava pra mim enquanto falava, ainda que tivesse sido o Paulo quem o tinha chamado. Por que caralhos ele pensava que era eu quem tinha algo a dizer se nem fui eu que chamei ele pra cá?

— Ah, só uma coisinha. – Paulo deu de ombros. — Se você olhar ou falar com o Marcos de novo eu te arrasto daqui até a porra do inferno, entendeu? E pelo que eu fiquei sabendo que você falou pra ele ontem...

Pisquei chocado, sem saber se tinha processado direito o que tinha acontecido.

O Paulo deu um soco na cara do Renan. Tive que repassar a cena na minha cabeça algumas vezes para que fizesse sentido.

— Mas, o que é isso? – a monitora do intervalo veio ver claramente já pronta para mandar meu amigo para a secretária.

— Já sei. – Paulo suspirou, dando as costas para Renan e para nós todos. — Suspensão. Entendi, tô indo falar com a coordenadora.

— Teve um certo estilo em como ele fez isso. – o Gabriel suspirou do meu lado, franzindo os lábios.

***

Era o último dia do correio elegante e eu já tinha certeza de que esse ano não receberia carta nenhuma. Não sabia o que era pior, isso, ou ter que ver o Renan recebendo carta atrás de carta, quando a Adriana entrou na sala.

Em vez do vestido de festa junina ela usava o uniforme da escola e não trazia a cesta nos braços, apenas umas poucas cartas nas mãos. O cabelo preso em duas trancinhas.

— Com licença, professor. Só tenho uma entrega rapidinha para fazer.

Cocei o queixo, pensando em que parte da conta eu tinha errado. O resultado da minha equação não estava nas alternativas e eu tinha certeza que o erro estava em alguma parte das potências, mas isso era impossível porque eu tinha calculado aquela parte com a calculadora...

— Marcos. – ergui os olhos.

Adriana me dirigiu um meio sorriso, estendendo um envelope feito com folha de caderno pra mim. — Demorou, mas, chegou.

Sorri me levantando e agarrando o envelope.

Esse ano, com meu ex-namorado do outro lado da sala me encarando de uma forma assustadora, resolvi que preferia ler sozinho no pátio. O adesivo na carta era do Olaf, o que achei bem fofo, não vou mentir.

“Eu deveria pedir desculpas por não ter enviado essa carta antes? Não sei, acho que não. Você estava ocupado com seu namorado, afinal.Também não sei se deveria, mas vou dizer... Você faz ideia de como é difícil gostar de alguém que está namorando? Estar apaixonado há tanto tempo por alguém e de repente outra pessoa passar na minha frente e conseguir toda a atenção que eu queria...

Metade do tempo que passo ali, tão perto de você, estou imaginando como seria bom ter seu carinho, provar seu beijo, te dar meu carinho e te abraçar de verdade... Isso seria um sonho realizado. Um desejo.

E então, tem ele. E eu o vejo fazendo tudo isso e sinto como se puxassem meu tapete todos os dias, dia após dia, hora após hora, momento após momento, um de cada vez. Era tão ruim. Mas, o pior disso tudo, era saber que ele era péssimo e que te magoava tanto. Eu queria bater nele, eu queria te sacudir e falar que ele não prestava, eu queria que fazer essas coisas fizesse algum efeito em você.

Enfim, chega de falar do passado, embora eu imagino que ele ainda seja uma ferida recente em você.

Só quero te dizer que não vou deixar de te mandar cartas enquanto puder mandar, mesmo que elas demorem. Desde que queira que as mande, porque serião, se depois de todos esses anos eu ainda estou praticamente e basicamente de quatro pra você... Duvido muito que isso vá acabar.

Soldeville."


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