Artemis escrita por Camélia Bardon


Capítulo 8
07. Um ombro amigo (virtual)




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Surpresa com a nova identidade do sol, tentei enquadrar o máximo da minha mão no filete luminoso. Como nem tudo são rosas, aquele projeto de sol era suficiente apenas para aquecer minha mão, mas não o braço inteiro.

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Há uma única pessoa no mundo, além de Nora, a quem posso confiar todos meus segredos mais profundos. Todos, é claro, com exceção de minha identidade – que em pouco tempo deixará de ser um segredo para tornar-se uma meia-verdade. Essa pessoa é ninguém menos do que apenas T. Kyrell. É assim que ele prefere se identificar, assim como eu sou Artemis. 

Eu digo ele porque suponho que seja um homem, porque usa pronomes masculinos e pelo pseudônimo ser o de um homem. Mais especificamente, “T. Kyrell” é um personagem de Estrelas Perdidas, livro cânone de Star Wars. Quer dizer, ao menos foi isso o que dois minutos no Google me informaram de útil. Então, é tudo que sei sobre. Isso e o fato de que, apesar de nunca tê-lo visto ou saber quem no mundo é este homem, T. Kyrell é um ótimo amigo. É por esse motivo que ele é a primeira pessoa que procuro para conversar sobre o que estou sentindo.

Enquanto Nora dorme na cama ao lado da minha confortavelmente – ah, os humanos abençoados com a dádiva de dormir no minuto seguinte a ter deitado… –, eu me ocupo de pegar o notebook e partir para o sofá. Estico minhas pernas no estofado que não é lá muito confortável; entretanto, lá embaixo, os sons de Florença me fazem companhia.

Abro o notebook e procuro pela plataforma onde publico meus texto, nada muito trabalhoso visto que a página já está salva nos favoritos. Daí, após ignorar alguns leitores mandando mensagens privadas (eu poderia respondê-los outra hora…), procuro o perfil certo. 

Não nos conversamos há algum tempo, por conta de todo o alvoroço que anda a Itália. Como também não recebi nenhum retorno ou incentivo, imaginei que ele também estivesse ocupado do outro lado da tela. Ainda assim, isso não me impede de digitar algo.

Boa noite, piloto! Como vai o voo nas suas terras desconhecidas?”

Por sempre figurar que estamos em continentes diferentes, deixo o notebook de lado por um minuto. Sei que deveria estar trabalhando em Meia-Noite e Quinze, mas ironicamente o horário não me faz nada produtivo ou inspirador. Quem sabe isso fique apenas para o assassino em minha cabeça.

Apesar de não esperar uma resposta, não fico descontente por ela vir em forma de vibração pelo meu celular. Sorrio sozinha e atualizo a página no navegador do notebook, colocando-o em meu colo. 

“Vejam só se não é a lua desafiando a física e emitindo luz própria?”

Meu coração palpita mais forte com as palavras. Trocamos flertes que insisto em chamar de eternamente não correspondidos por conta da obviedade de nossas situações. No entanto, não posso deixar de pensar… e se eu encontrá-lo um dia desses? 

“Eu tenho uma vantagem… tenho um sol próprio me aguardando para brilhar!”

“Não me diga essas coisas, posso achar que está falando de mim e não da Itália.”

Sorrio mais uma vez, partindo para mordiscar meu polegar contendo – ou ao menos tentando em vão – o turbilhão de emoções que toma conta de mim. Agradeço por não ter confirmação de leitura no site, do contrário me entregaria por completo.

É por isso que a internet é perigosa nas mãos de uma pessoa má intencionada. Qualquer um pode se esconder atrás do anonimato. Qualquer um pode se sentir seguro para publicar qualquer coisa.

Felizmente, meu maior mal é ter certa liberdade poética.

Quando converso com Kyrell, gosto de me imaginar conversando com uma pessoa real. É o meu momento de sonhar acordada. Sonhar que tenho um timbre de voz agradável. Gosto de pensar que, se eu pudesse escolher um timbre de voz, teria escolhido a Kristen Bell para dividir o dela comigo. Ah, eu poderia escutá-la falando para sempre. Ou, então, a Ginnifer Goodwin. As duas são do meu tamanho, e são adoráveis. Coisa que eu não sou. Mas é para isso que existem os sonhos, não é…?

Por este motivo, quando digito a próxima resposta, fecho os olhos e me figuro dizendo as palavras em voz alta.

A Itália não está na linha do sol da meia-noite, querido…”

“Ah, que bom. Então tenho carta branca para me sentir convencido e tudo mais?”

“Sim, você tem sim”

“Ajude-me, Thane Kyrell, você é minha última esperança”

Apesar de não ser tão fã da franquia, espero que eu ganhe alguns créditos pela referência dupla. Espero que, em algum lugar do mundo, ele também esteja sorrindo.

“Sim, princesa?”

“O que te atormenta?”

Respiro fundo e escolho cuidadosamente quais palavras usarei. Confio nele, mas não tenho certeza de confiar em mim. Era para ser mais fácil, uma vez que posso pensar no que vou dizer com calma e discrição. No entanto, imagino que eu não preste para dizer as coisas com calma; as chances de me arrepender e apagar tudo antes de enviar é ainda maior do que as de manter minhas mãos coladas ao lado do corpo em profundo silêncio.

“Está para sair uma entrevista que dei para a editora… mas sinto que não fui sincera nela…”

“Isso é um problema?”

“Sim, porque minha falta de sinceridade pode custar uma bela meia dúzia de pessoas na minha vida. Não só isso, mas pode custar as pessoas da vida dos envolvidos também”

“Além disso, não acho que expor minha identidade foi uma ideia inteligente”

“Talvez fosse melhor eu ter ficado em casa, sabe? Me contentar com o que já tinha?”

“Ah…”

É. É nisso que penso minuto após minuto. Depois do que Nora disse a respeito de Reid, está cada vez mais difícil de conseguir dormir. Os travesseiros parecem sacos de cimento. Secretamente, às vezes quero que uma betoneira venha reivindicar meu travesseiro e minha cabeça juntos.

Após alguns minutos em silêncio, penso que Kyrell caiu no sono em meio a algum lugar do mundo, no entanto sua resposta é curta e verdadeira:

“Sabe… a sinceridade é a melhor das identidades.”

Fecho os olhos, assentindo sozinha com a cabeça. Ele tem toda razão. Desde que me entendo por gente, desonestidade não é algo com que eu compactue. Preciso resolver isso de uma vez por todas. Mas, é claro, conversar com Kyrell desse jeito não é algo novo. Apesar de pelos seus modos eu interpretar que ele tem a idade próxima à minha, sempre aparentou a mim que ele fosse bem mais sábio. Quem sabe fosse a vivência? Mais oportunidades de ser social que eu? Era algo que eu nunca tinha perguntado.

Ainda me lembro da primeira vez em que conversamos.

Ele foi meu primeiro leitor, desde então não paramos de conversar.

 ◌ ◌ ◌

Foi o sr. Fox, avô de Nora, quem me convenceu a publicar Rosas Selvagens. Segundo ele, era um pecado eu “ter uma voz e escolher ficar quieta”. Me lembro bem de ter ensaiado levar os rascunhos do Trambolho por duas semanas inteiras antes de compreender que, ainda que estivesse um texto terrível, alguém gentil como ele jamais diria isso de uma maneira grosseira para mim. Então, a ideia para Artemis surgiu em meio às folhas de papel.

Partindo do princípio que não queria criar uma nova identidade, apenas mascarar a minha real, fiz a coisa mais original na altura de uma garota de 16 anos.

Pesquisei meu próprio nome no Google. Quase como a Bella depois de ir na biblioteca e procurar por “vampiros” no computador depois de ler a palavra no livro. Daí, de acordo com os meus recomendados, a lista brotou diante de meus olhos:

1) Diana (canção de One Direction)

2) Diana, Princesa de Gales (Filantropa)

3) Diana Ross (Cantora)

4) Diana (mitologia)

Com o quarto item, meus olhos brilharam. Abrindo o link, relembrei de minha época de fissura em Percy Jackson, alguns anos atrás. Diana e Artemis eram equivalentes; duas versões da mesma figura. Então não tinha como ser mais perfeito do que eu estava procurando. Era óbvio e sutil simultaneamente. 

Abaixo de minhas anotações do título, escrevi em letra cursiva um singelo Artemis

Enquanto Nora estudava mesmo durante o verão, lá estava eu digitando o que tinha produzido em meio ao caos que era minha casa. Como a Terra das Rosas Selvagens não tinha muitos clientes, o sr. Fox se ocupava de nos mimar com café fresco e bolo de milho. Quando terminei de editar minha publicação e perfil (falso) a ponto de deixá-lo apresentável, postei o breve conto, prendendo a respiração. Preocupada, Nora se voltou para mim.

― ‘Tá tudo bem? O que eu perdi?

Publiquei ― me recordei de soltar o ar apenas porque tinha de gesticular. Sentia minhas mãos pegajosas de suor. ― Pode não dar em nada, mas estou uma pilha de nervos.

― Mas pode dar em tudo ― Nora sorriu, me abraçando de lado. ― Vô, cancela mais café senão a Di desmaia de nervoso aqui.

Ri sozinha, me tremendo em seus braços. Já do outro cômodo, o sr. Fox riu em voz alta. Uma gargalhada gostosa e contente pelas coisas que eu era apta a fazer. Apoio familiar, coisa que eu nunca tive. Se eu não tinha confiança, aos poucos eu a reconhecia através de pequenos gestos. Não pude deixar de sorrir e abrir mão do notebook para me atentar ao carinho. No entanto, dentro de meia hora meu celular vibrou na altura da minha coxa. Quase tive um surto de susto, mas procurei não levar nada muito a sério. 

Procurando a origem da notificação, me deparei com apenas uma.

T. Kyrell deixou um comentário em ‘Rosas Selvagens’”.

Com o coração palpitando, li o que dizia. O indivíduo tão anônimo como eu estava apontando gentilmente alguns erros de concordância, mas principalmente elogiando a condução do texto. Apesar de ter me sentido exultante com um retorno tão rápido, o mantive apenas para mim… como um segredo. Eu poderia contar mais tarde para Nora e o sr. Fox sobre isso, mas no momento… era algo único e só meu. 

Sorri sozinha, e talvez eu tenha relido o comentário mais vezes do que seria saudável contar aqui. Quando finalmente o respondi, não parei mais. Mesmo que não estivesse nada de novo a publicar, iniciamos uma interminável troca de mensagens privadas. 

 ◌ ◌ ◌

Desde então, já faz cinco anos.

Pisco com a nova vibração do celular, lembrando subitamente que ele existe. Meu Deus. Eu ‘tô lascada.

“Dormiu? Morreu? Devo chamar a polícia italiana?”

“Desculpe, eu estava processando o conselho…”

“Você tem razão… ser sincero é a melhor das opções…”

“Acho que vou mandar um email para a editora amanhã pela manhã e pedir que não publiquem a entrevista.”

“Só porque eu gostaria de ver o rosto da deusa em cores?”

Meu coração contrai no peito. Quero sair correndo, mas finalmente o sono começa a dominar minhas pálpebras. Sinto o corpo amolecendo, então faço um esforço para mandar as últimas mensagens do dia/da noite.

“Quem sabe não terá outras oportunidades?”

“Obrigada, piloto. Te devo uma…”

“Boa noite, querido”

“Boa noite, dona lua. Fico feliz em ajudar!”

A última coisa de que me lembro é escorregar no sofá para encontrar uma posição mais confortável. Provavelmente irei me arrepender disso pela manhã, quando minhas costas gritarem armando um motim contra o resto do meu corpo.

 

Estava certa de pensar assim na noite anterior. Além da dor nas costas, sou acordada por uma Nora saltitante, grudando do meu lado no sofá com o notebook no colo. Procuro me sentar primeiro, no entanto ela não me poupa de cerimônias:

― Ah, depois você dorme mais! A Orpheus publicou a entrevista, já está nos trending topics

Pisco algumas vezes para retomar a alma para o corpo. Nora parece notar, ao passo que ri com maldade de minha sonolência e coloca o notebook bem em frente de mim. Lá estão as cenas que presenciei nos bastidores, muito bem editadas e com a legenda chamativa: “confira agora a primeira entrevista de Nora Fox, a face por trás do fenômeno teen: Artemis!”.

Ah, merda!


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Notas finais do capítulo

Ah, que eu fiquei toda molinha escrevendo esse capítulo ♥ mas vou só largar ele aqui e sair correndo porque, né? xD



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