A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 9
Treinamento




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A manhã começa preguiçosa, Shura que não dormira durante a noite observava o céu tomar sua cor azul celeste antes mesmo de o Sol inundar a clareira com sua luz. Ao seu lado, a fogueira ainda soltava sua fumaça enquanto queimava em brasas a última leva de lenha que o homem tinha arranjado durante a noite. O vento frio da manhã ainda soprava, balançando a vegetação e condensando seu hálito a cada respiração, o semideus, entretanto, se mantinha alheio a tudo isso, observando seu entorno cuidadosamente com seus instintos aguçados e concentração afiada. Por vezes, durante a noite, sentira a proximidade de algum semideus vagante em seu encalço, mas por sorte ou algum acaso brincalhão do destino a noite passara sem maiores incidentes, exceto pelas energias vitais que se dissipavam durante toda a noite.

Shura perdera a conta de quantas energias ele sentiu se esvaindo.

Um murmúrio baixo chama a atenção do homem, ele se vira e percebe Mariah se ajeitando ruidosamente sobre a casca seca da árvore que utilizava como cama improvisada, ela se mexia por debaixo do casaco de Shura como se estivesse prestes a despertar a qualquer momento, fazendo ondas em sua superfície. A observar deitada de lado daquela maneira faz Shura se lembrar de sua ira no dia anterior, do quanto estava abalada e o quanto se sentia traída por ele, mesmo ele tendo feito o melhor possível para os dois naquele momento, depois daquilo era óbvio que milhares de maneiras menos arriscadas apareceriam em sua mente, mas no momento da luta foi o melhor que pôde pensar. Mesmo assim, observar a fragilidade com que ela sucumbe aos seus medos evoca um curioso contraste à determinação que leva consigo no olhar, mesmo aterrorizada, ela tinha o olhar de quem tem uma força de vontade inabalável, apesar de não ter ideia de como proceder com ela. Pensando nisso, ele se lembra da promessa que fizera a ela, ele não sabia se ela sequer lembraria disso, mas estava disposto a cumpri-la, primeiro por ser necessário para que ela tenha qualquer chance e segundo porque, por mais que ele odiasse admitir, ele sentia uma simpatia incomum com Mariah, havia algo em seu jeito único que o intrigava.

Shura então retoma com todo cuidado sua peça de roupa que a cobria desde a noite passada e se ausenta por alguns minutos, voltando com um punhado de frutas em uma espécie de sacola improvisada feita com o casaco para servir de comida para a garota antes de seguirem viajem.

— Bom dia – fala uma voz um pouco amarrotada e rouca.

O homem levanta o olhar, até então fixado no chão e seus olhos encontram os da menina, grandes e castanhos, o observando sob uma camada inchada de pálpebras avermelhadas e bochechas voluptuosas de mesma cor, marcadas pela manga a qual dormira em cima. Ela o olhava como quem indagasse onde estava.

— Bom dia, café da manhã – ele responde levantando os braços que seguravam a sacola, justificando sua falta.

— Outro coelho? – Pergunta a garota em meio a um bocejo fino enquanto esfrega os olhos e ajeita sua postura, sentando de pernas cruzadas.

— Veja por si mesma – ele responde o mais animadamente possível – não tinha uma grande variedade aqui por perto, mas acho que vai ser o suficiente para te dar energia para hoje.

Shura coloca a blusa no chão e a abre, fazendo um punhado de amoras silvestres rolar pelo canto e parar perto dos pés da garota. Os dois ficam em um breve silêncio enquanto a garota seleciona entre uma e outra opção de frutas antes de pegar uma que mal cabia em sua mão, por fim ela dá uma suculenta mordida e automaticamente fecha os olhos em deleite, deixando os ombros e os braços caírem sobre seu colo. Shura ainda sem saber como ao certo, resolve tocar no assunto da noite anterior:

— Mariah – começa ele – você ainda deseja que eu te ensine a manejar a sua arma?

— Sim, - ela responde com um tom de determinação, mas que não vem acompanhado de uma animação contagiante – se estiver tudo bem para você.

— Por mim tudo bem – ele retruca suspirando – termine de comer e vamos começar, quanto antes melhor.

— Certo, já vou.

Shura se levanta e vai para o centro da clareira sem nenhuma pressa, com se saboreasse o som da grama sob seus pés e o chacoalhar das folhas nos altos galhos de carvalho, em pouco tempo a garota também se juntava a ele, dessa vez ela não usava sua blusa de frio, mas uma mais fina e roxa que a cobria até um pouco a cima dos bíceps. O homem observa com atenção enquanto a assiste se posicionar em sua frente, a garota tinha um porte normal para alguém de sua idade, talvez um pouco mais atlética, mas nada fora do comum e com certeza nada que a fizesse aguentar a contenda. O olhando diretamente com uma das mãos próxima de onde a faca fica em suas costas e a esquerda entre ela e o homem, Mariah parecia um pouco tensa e ansiosa.

— Muito bem então – Shura começa a lecionar, ajeitando sua postura e ficando muito maior que Mariah – antes de começar, tem alguma ideia de como se portar com uma faca ou adaga nãos mãos?

— Tenho alguma, – ela responde sem deixar sua posição, mas relaxando um pouco a postura dos braços – fiz um curso de verão de defesa pessoal e jiu-jitsu.

O homem levanta uma sobrancelha e projeta o lábio inferior levemente para frente em surpresa, mas sua expressão é ocultada pela máscara, se mantendo incógnita e aparentemente impassível para Mariah.

— Muito bem, isso ajuda muito – ele continua – vamos para algumas lições rápidas então. A primeira lição é: nunca perca a sua arma de vista, essa é uma dica importante, principalmente para você.

— Para mim? – Ela pergunta levantando uma sobrancelha e desarmando mais um pouco sua posição.

O homem levanta uma das mãos antes oculta pelo seu tronco em formato de pinça com a pequena adaga pendulando entre o indicador e o dedão.  A garota arregala os olhos e tateia seu cinto, mas obviamente a faca não estava mais lá.

— Como você pegou ela? – Mariah pergunta incrédula.

— Hoje de manhã, ela estava caída ao lado da fogueira.

— Ah – ela exala um ruído quase nasal, envergonhada.

— Certo, continuando, a segunda lição é: caso tenha que lutar com alguém armada de uma faca, procure fazer cortes seguindo os eixos de um asterisco, assim você pode infligir dano e abrir a guarda do oponente ao mesmo tempo. Vamos, tente.

O homem joga a faca para a garota e faz sinal para ela ataca-lo com a arma ainda na bainha. Ela assim o faz. Rumando em direção do homem que se põem em meia guarda, ela desfere golpes sucessivos em todos os eixos possíveis, começando pelas diagonais, depois na vertical, por último na horizontal, atingindo braços, pernas, tronco e de leve no pescoço do homem. Por fim ele segura em seu braço e para um movimento que ela fazia com alguma facilidade.

— Bom. Terceira lição: defesa. – Ele continua sem a soltar, mas não aplicando muita força – se alguém a atacar com uma adaga como a sua ou uma um pouco maior, a primeira coisa a se fazer é parar o movimento com um golpe no antebraço – ele a solta e ensaia o golpe com o lado de uma das mãos no antebraço direito da garota – desse jeito.

— Oh, eu me lembro disso! – Exclama a garota que agora tinha certo brilho nos olhos.

As lições continuam e a garota observa tudo atenta, depois de algum tempo, eles até mesmo treinavam alguns movimentos mimetizados para que ela tentasse entender a fluidez dos ataques e das defesas para ser capaz de lutar contra alguém com eficácia e talvez até antecipar algum movimento do inimigo. O sol a essa altura já ia alto no céu quanto por fim eles pareciam ter acabado, a garota respirava pesadamente e se inclinava um pouco para frente com as mãos nos joelhos, o homem, por outro lado, parecia tão bem condicionado quanto antes.

— Muito bem, - fala ele cruzando os braços e a olhando de cima com os olhos verdes cintilando sob a máscara – agora que você já sabe o básico, tente me atacar.

— Te... atacar? – Mariah pergunta confusa – mas eu não fiz isso a manhã toda?

— Não, na verdade você ensaiou, agora quero que me ataque com tudo o que aprendeu até aqui, vou responder a altura.

— Você vai me derrubar da forma mais fácil e idiota que conseguir, não vai?

O homem pende a cabeça para um lado.

— Como? – Pergunta.

— Bom, - a garota continua seu raciocínio endireitando o corpo e apoiando seu peso em uma das pernas – agora é geralmente a parte nos filmes em que o aprendiz vai com toda a força para cima do mestre e ele praticamente humilha o aluno desviando do seu golpe de uma maneira que faz seu ataque parecer ridículo pra ensinar que é preciso ter cuidado com a confiança desmedida ou algo do gênero.

— Prometo não ser tão dramático, – ele responde rindo de leve – mas não vou ficar parado como das outras vezes, vou reagir e tentar parar você, pense nisso como um jogo, seu objetivo é acertar um golpe aqui – ele aponta para sua camisa branca logo antes de fechar a jaqueta até a altura do peito – e para facilitar, vou usar apenas uma das mãos e não vou te atacar diretamente de primeira.

— Você vai pegar leve comigo?

— Ou eu faço isso ou eu posso te matar sem querer. – Novamente seu tom de voz o trai, o que era para ser um gracejo bem-humorado, se torna um comentário arrogante, quando Shura percebe seu erro, já era tarde, Mariah revira os olhos e abre a boca em desdém, depois se coloca em posição de combate como aprendera, com os braços arqueados e paralelos ao tronco, pernas flexionadas e a adaga em posição de corte na altura de seus olhos quase que apontando a lâmina para peito do homem de imediato.

— Digo... – ele pigarreia de leve e seus olhos percorrem o entorno como em uma busca desesperada de encontrar alguma resposta rápida para a vergonha que passara, mas nada veio a seu socorro.

Mariah, que até então o observava, aproveita esse momento de vacilo do homem e investe sobre ele, tentando atingir primeiro a parte baixa de seu tórax onde a blusa o cobria, como que em uma tentativa de atrair a atenção do homem para um ponto diferente antes de atacar com força total seu alvo primário. Enquanto corre, ela abaixa seu tronco e salta de leve com a lâmina cortando na horizontal da esquerda para a direita, forçando o homem a contrair o abdome e se esquivar para trás, enquanto com uma das mãos agarra o antebraço da garota e o levanta, a tirando do chão.

— Boa tentativa – o semideus sibila, triunfante.

Nesse instante ele vê uma pequena silhueta esbranquiçada passando por seus olhos na direção do chão, seu primeiro reflexo é tentar parar a queda do objeto com a mão livre, mas tendo em vista sua promessa, tudo que o resta é desviar seu tronco para o lado enquanto a adaga é aparada pela outra mão da garota e viaja a centímetros do peito do homem em uma estocada firme e precisa.

— Droga! – Mariah pragueja quando percebe que perdeu o elemento surpresa. O homem ainda a olhava incrédulo enquanto a jogava para longe de si com um movimento de braço, a fazendo andar alguns metros vacilante antes de recobrar o equilíbrio.

— Bom ataque – ele continua – mas o primeiro strike é meu, você tem mais dois.

— Desde quando estamos contando?

— Desde quando você quase me derrotou de primeira, tenho que admitir que quase me pegou de jeito. – O homem diz de forma simples e direta, quase como se só estivesse pensando consigo mesmo, mas seus olhos deixam claro sua sinceridade ao falar isso.

A garota sorri de lado, entusiasmada entre o sentimento de raiva que ainda nutria, mesmo que em menor quantidade, pelo homem.

Dessa vez ele quem a ataca primeiro: sem dar tempo para a garota reagir, ele avança sobre ela com uma série de ataques com a palma da mão aberta e virada para a garota, medindo sua força dessa maneira, mas mantendo um ritmo rápido o suficiente para simular um ataque de verdade. Com algum esforço, Mariah consegue se defender da maioria deles afastando e bloqueando com os braços, mas os poucos que a atingiram foram doloridos o bastante para que baixasse a guarda por um segundo, o suficiente para que o homem, agarrasse seu braço com a faca. Com um movimento rápido, o homem levanta um pouco a mão da garota que ele segurava e passa uma das pernas para atrás do corpo dela, forçando as pernas de Mariah para frente à medida que empurrava para trás seu braço agora arqueado pelo movimento. O resultado disso foi um tombo ridículo de costas como a jovem temia, com as pernas muito abertas pela queda inesperada e o braço destro torcido para trás sob sua nuca e imobilizado pela mão do homem.

Pensando rápido, com o máximo de esforço que podia, ela alcança com dificuldade a base da máscara do homem com a mão livre, fazendo menção de arrancá-la como fizera assim que o encontrou. Como suspeitava, o homem novamente se desvencilhou do toque com um solavanco violento, que afrouxou a mão que segurava o braço da garota. Seguindo o único movimento possível com o ângulo ao qual o seu braço estava torcido, ela descreve um arco com a mão longo o bastante para bater com a base punho cerrado com a faca sem muita força na testa da máscara do homem, o som oco de madeira ressoa e Shura se inclina um pouco mais para trás, dando uma janela para a garota rolar para longe o mais rápido que conseguiu.

Quando ela se coloca de pé, ela já via o homem a fitando surpreso pelo ataque desesperado e quase eficaz. Mariah ensaia outra investida, mas sente sua mão leve, ao observá-la, percebe que a adaga tinha desaparecido.

— Procurando por isso? – Ele a chama com um tom gozador. Mariah levanta a visão que fitava sua palma aberta e o encontra ainda agachado, apoiando com o indicador a adaga em pé, que se equilibrava de ponta no chão com a pressão na base de seu cabo.

A garota grunhe de frustração.

— Você foi muito bem – ele tenta a tranquilizar, mesmo sabendo que não funcionaria.

— Não consegui te acertar... – ela parecia desapontada.

— Pode ser, mas conseguiu me dar um belo soco na testa, já é alguma coisa, não?

Ela maneia a cabeça.

— Essa foi sua primeira lição, fez bem pela primeira vez, mesmo pra quem tem alguma noção.

Por fim ela recupera a adaga e eles voltam para seu esconderijo enquanto trocam algumas poucas palavras de quando em quando, Mariah parecia de um humor um pouco melhor que o do dia anterior.

Mal se sentam para descansar e já precisam se levantar novamente, estavam sedentos e não havia água por perto, então precisavam seguir viajem. Shura novamente liderou o caminho dentre o bosque enquanto Mariah observava seu esconderijo junto à clareira desaparecer entre as árvores.

Demora muito tempo para que ela perceba que ainda havia um strike em seu treinamento, mas no fundo se sentia feliz por ter lutado bem contra um deus.


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