A Égide de Athena escrita por Joy Black


Capítulo 9
9. Memórias




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Zoe era a serva pessoal de Athena e tinha muito orgulho disso. Fora levada para o Templo no dia seguinte à chegada da jovem deusa para tomar conta dela e de lá praticamente não saia, exceto para ir ao mercado da vila de Rodorio. Amava ser a responsável pelo bem-estar de Athena e deixava aquilo explícito para quem quisesse ouvir. E era muito difícil não ouvir Zoe.

A jovem mulher tinha a pele morena, cabelos negros, lisos e usava um lenço preso no cabelo, sempre mudando as cores, nos tons que Athena mais gostava. Ela tinha uma voz rouca e costumava dizer que fora de uma enfermidade na garganta que quase a matara na infância, mas os demais servos diziam que a era porque ela simplesmente não calava a boca. Se tinha alguém que gostava de falar, esse alguém era Zoe. Ela falava sobre tudo: sobre o tempo, sobre os outros servos, sobre o Grande Mestre, sobre os cavaleiros de Ouro e, claro, sobre Athena. Não havia nada que passasse despercebido para a serva e ela sempre sabia das últimas fofocas. As más-línguas diziam que ela era a fonte de todas as fofocas. Talvez a própria Zoe atribuíra-se aquilo, pois afirmava que não fazia fofoca; ela mantinha as pessoas informadas. No momento, seu assunto favorito era Sophia e o quanto estava satisfeita porque sua menina, era como costumava chamar Athena, estava mais feliz que nunca.

— Essa menina tem a alma de um antigo cavaleiro, tenho certeza. - dizia pela milésima vez à infeliz cozinheira, que apenas assentia, calada – Talvez até um antigo cavaleiro de Escorpião, veja bem, ela tá sendo treinada por mestre Lucius, não é? - ela deu uma pausa e estremeceu – Ele me dá calafrios, o cavaleiro de Escorpião… Sabe o que ouvi lá na vila mais cedo? Que ele obriga a pobre discípula dele a dormir com escorpiões, acredita? Dentro de um caixão! - ela não esperou a outra falar e já foi dizendo – Espero que Athena não saiba disso ou vai ficar muito preocupada.

— É só você não contar para ela, Zoe. - falou finalmente a cozinheira, que arrumava uma bandeja com bolo e chá.

— Eu não vou preocupar minha menina com isso! - exclamou Zoe ofendida, sua voz ficando mais rouca – Mas, sabe, isso pode chegar aos ouvidos dela, as pessoas são muito fofoqueiras…

A cozinheira apenas suspirou.

— Pronto, pode levar o lanche para a senhorita Athena. - disse empurrando a bandeja para Zoe.

— Claro. - assentiu a outra – Esse bolo foi o cavaleiro de Câncer que trouxe, não foi? Ah, deve ser, não é? Parece coisa dele. Ele me deu um pedaço de bolo da última vez, mas ele me dá medo, sabe? Esse negócio de falar com mortos… - ela estremeceu e, baixando um pouco a voz, perguntou – Sabia que ele não arruma namorada por causa disso? As mulheres têm medo por causa dos espíritos que ficam rodeando ele…. Pobre coitado, a mãe dele é doida por um neto… Quando ele vem aqui eu não tenho nem coragem de falar, veja só, fico bem longe, com medo. Mas os bolos dele são deliciosos!

— Zoe, o chá vai esfriar…. - murmurou a outra.

— Tem razão! Até daqui a pouco!

Pegou a bandeja e saiu cantarolando da cozinha. A cozinheira suspirou. Ela nunca ficaria com a garganta boa porque quando não estava falando, estava cantando. Como ela conseguia falar tanto?! Voltou aos seus afazeres, ainda ouvindo ao longe a voz de Zoe, até que ela parou de cantar abrutadamente. Será que tinha mordido a língua?, pensou a cozinheira rindo. Até que um grito alto e agudo, o grito de Zoe, encheu todo o templo de Athena junto com o barulho da bandeja caindo e o bule quebrando. A cozinheira se assustou e correu na direção da voz. Diversos guardas fizeram o mesmo. Quando chegaram lá, Zoe ainda gritava e apontava para o chão onde jazia Athena, desacordada.

 

*****************

Sophia verificou mais uma vez a lista de compras. Não era muita coisa, então não precisava se apressar. Guardou novamente a lista do bolso e foi na direção das barracas de comida, na vila de Rodorio.

Desde que deixara a Academia, quinze dias atrás, ela ainda não saíra da casa de Escorpião, com exceção à visita que fez a Athena. Por isso, ficou empolgada em vez de chateada quando seu mestre lhe dissera que seria ela a fazer as compras da semana, enquanto ele ia visitar Agatha na casa de Peixes.

— Posso ir na academia visitar Shaoran e Derya? - pediu enquanto ele lhe entregava as moedas e a cesta.

— Desde que você não demore e tenha cuidado com as compras, tudo bem. Lilian vem aqui mais tarde e prometi fazer panquecas para ela.

Sophia franziu o cenho ao lembrar daquilo. Tinha sentimentos contraditórios com relação a Lilian de Aquário e ainda não decidira se gostava dela ou não. Se fosse perguntada sobre seus sentimentos no dia em que passara pela casa de Aquário, seria sucinta: não gostava de Lilian. Porém, nos dias seguintes, a amazona sempre aparecia na casa de Escorpião e a tratava bem, até elogiando seus movimentos quando a via treinar. Naqueles momentos, gostava dela. Era realmente complicado conviver com Lilian e, para seu alívio, não era a única a se sentir assim. Seu próprio mestre dissera à irmã a seguinte frase:

— Ás vezes eu não sei se gosto de você ou se apenas te suporto porque você é minha irmã.

Lilian apenas sorrira diante da confissão do irmão, sem mostrar nenhum sinal de estar ofendida.

Todavia, gostando ou não, teria que conviver com a amazona de Aquário, pois ela era irmã de seu mestre e sempre aparecia na casa de Escorpião. Teria tempo para decidir seus sentimentos com relação a ela. No momento, tinha que fazer as compras e estava animada de poder comprar comida tranquilamente, sem medo de ser pega pela polícia, nem precisar fugir de caçadores. Apenas seguir a lista. E, para sua surpresa, Lucius dissera que ela poderia ficar com o troco e comprar o que quisesse.

“Provavelmente não vai sobrar nada.”, pensou, desconfiada. “Mas foi legal da parte dele mesmo assim….”

Diferente da situação com Lilian, seus sentimentos com relação a Lucius eram bem claros. Ela admirava o cavaleiro de Escorpião e tinha medo dele. Admirava porque ele era forte, mas não era bruto. Quando ele estava brincando com Avalanche à noite, sentado na cama e balançando um brinquedo para o gato, nem parecia o cavaleiro que batia em seu estômago, quase fazendo-a vomitar. Quando estava sentado na mesa, costurando com uma concentração de fazer inveja a monges budistas, sua imagem não correspondia com o que ouvira sobre ele. Mas seu temor voltava quando treinavam, pois havia uma aura a sua volta que a intimidava e a fazia tremer. Naquelas horas, tinha medo de morrer.

E, apesar de não ter muitas referências de professores, Sophia sentia que Lucius era bom em ensinar. Ela, por exemplo, aprendera muito sobre combate nos últimos dias, principalmente que haviam partes de seu corpo que desconhecia até elas começarem a doer. Descobrira também que podia sangrar de uma forma que definitivamente não estava acostumada. E, ao mesmo tempo, descobrira que nunca dormira tão bem quanto quando desmaiava de cansaço. Apenas nos dois últimos dias conseguira ficar acordada o suficiente para ver o dia escurecer. Para sua surpresa, seu mestre dissera que, até ali, nem era treinamento de verdade, ele estava apenas aquecendo-a.

— Como é?! - ela gritara antes de levar um cascudo – Ai!

— Eu sei onde estão suas fraquezas e até onde você pode ir. - lhe dissera no dia anterior, com a mão fechada após lhe aplicar o cascudo – Agora, vamos fortalecer seu corpo antes de controlar seu cosmos.

Foi inevitável lembrar do que Lilian dissera que ele nunca ia até o limite dela, mas o que até onde acreditava ser o limite dela. E, quando percebeu, estava perguntando:

— O senhor acha que sou fraca? - havia um pouco de acusação na voz dela.

Lucius, mesmo surpreso com a pergunta e tom em que ela fora feita, negou.

— Claro que não. Apenas acredito que essa é a melhor forma de te treinar. - e levantando uma sobrancelha, indagou – Está me questionando?

— Não. - disse rápido. Quando falava daquele jeito, ele dava mais medo do que quando batia forte – Quer dizer, sim…. Não sei.

— Quando você descobrir, me avise. - disse ele encerrando a conversa.

E, temerosa, assentiu. No fundo, sabia que Agatha estava certa e que seu mestre apenas tinha um método próprio de treino, diferente da irmã dele. Contudo, aquela dúvida ficava sempre voltando, cutucando seus pensamentos, como uma coceira constante em sua mente.

— Ei, menina!

Sophia só percebeu que falavam com ela quando dois guardas se aproximaram e tocaram em seu ombro. Ela rapidamente pulou para o lado, virou-se e assumiu postura de luta, a cesta que seu mestre lhe entregara balançando precariamente em seu braço.

— Ei, calma, calma! - pediu um dos guardas levantando as mãos – A gente só quer fazer umas perguntas. - e olhou pro outro guarda, que concordou.

— Ah, certo. - Sophia voltou a postura normal – O que é?

Como uma pessoa das ruas, Sophia não confiava muito em policiais e guardas eram um tipo de policial. O medo de eles a acusarem de algo era grande, por isso, mesmo que não estivesse mais pronta para brigar, ela ainda estava tensa.

— É sobre seu mestre…. Lucius de Escorpião… - começou o guarda.

— O que tem meu mestre? - perguntou, na defensiva.

— É verdade que ele dorme um caixão?

Era a última coisa que Sophia esperava ouvir.

— Hein? - ela não conseguiu conter a surpresa.

— Cara, pergunta dos escorpiões. - falou o outro guarda como se Sophia não estivesse bem na frente dele.

— Ele tem um monte de escorpiões de estimação? - perguntou o guarda – E alimenta eles com quem tenta passar pela casa de Escorpião?

Sophia achou que os dois estavam tirando sarro de sua cara e já ia começar a xingá-los quando notou que os dois estavam realmente falando sério. Ficou abismada. Por que diabos as pessoas pensavam aquilo? Foi quando lembrou o medo que Derya e Shaoran tinham de Lucius. E, realmente, se não tivesse conhecido-o bem naqueles dias, poderia acreditar no que os guardas perguntavam. Afinal, era mais fácil pensar que ele tinha um monte de escorpiões e dormia num caixão do que ele tinha um gato chamado Avalanche com fixação em canecas e que caia da cama quase toda a noite. Também imaginava que os guardas ficariam decepcionados se soubessem que Lucius tinha uma fixação por manter o cabelo bonito e o escovava com dedicação antes de dormir.

— Olha… - ela começou falando baixo e fingindo medo – Eu não posso falar essas coisas… Ele pode me castigar…

Os guardas ficaram mais interessados.

— É só curiosidade nossa… - garantiu o guarda que falara primeiro – Não diremos a ninguém.

Era uma mentira deslavada, até Sophia podia ver.

— Bem… - ela fingiu hesitar um pouco – É verdade. As duas coisas. - disse ficando séria – Na verdade… Ele dorme com os escorpiões dentro do caixão.

A menina achou que eles perceberiam que era mentira, mas não foi o que aconteceu. Os dois homens ficaram verdadeiramente com medo. Tentando não rir, ela completou:

— Ele mandou fazer um caixão pequeno para mim e me tranca lá toda noite com os escorpiões. Para me acostumar, ele diz. - e colocou todo o medo que conseguiu em seus olhos.

O pavor no olhar dos guardas quase a fez rir, mas manteve a postura séria.

— Você não tem medo de ser picada? - perguntou o guarda.

— Na verdade, já fui. Doeu pra caralho. To cheia de furo na barriga, são horríveis, cheios de pus. Querem ver? - e fez menção de levantar a blusa.

— Não, não! - disseram eles em uníssono.

— Ah, ok. - e baixou a mão.

Os dois guardas agora a olhavam com um misto de tristeza e medo.

— E ai, querem saber mais de alguma coisa? - perguntou ela sem querer parecer muito empolgada.

— Err… Não, obrigada… - o homem provavelmente não estava preparado para ouvir mais coisas – Boa sorte no treinamento….

— É, boa sorte. - disse o outro antes de puxar o amigo pelo ombro e saírem de perto de Sophia, como se ela estivesse coberta de escorpião naquele momento.

Sophia esperou que os dois se afastassem para cair na risada. Bem feito para eles, por assustá-la daquele jeito. E, feliz, voltou às compras.

Depois que comprou tudo que estava na lista de seu mestre, Sophia viu que realmente sobrara dinheiro, o suficiente para comprar alguns doces. Comprou, os colocou na cesta junto com as compras e seguiu direto para a academia, onde pretendia dividir as guloseimas com os amigos.

Quando chegou à academia, percebeu que os aspirantes treinavam na parte de trás e hesitou um pouco. Não fazia mais parte de lá e não fazia ideia de como devia agir. Nos dias em que estivera lá não vira ninguém indo visitar ninguém. Chegara a ouvir falar que o irmão de Kosuke o visitara, mas não tinha certeza se era verdade. Ficou um tempo olhando para academia, decidindo o que fazer quando Claire, a amazona de Águia, estava fazendo a patrulha, provavelmente procurando alguém que fugira do treinamento e a viu. Sophia preferia ter que lidar com Kaiola.

— Sophia, que surpresa. - disse a amazona – O que a traz aqui?

A menina hesitou um pouco antes de responder:

— Vim ver Shaoran e Derya. - disse finalmente.

— Eles estão no meio do treinamento. - disse a amazona – Não seria um bom momento para atrapalhá-los.

— Ah… - a decepção ficou visível no rosto de Sophia – Tá certo então…. - e, ainda hesitando um pouco, deu a volta e estava indo embora.

— Espere. - pediu Claire e Sophia se virou para olhá-la – Acho que eles podem sair alguns minutos do treino para falar com você. Venha.

Surpresa com a mudança de opinião de Claire, Sophia a acompanhou, feliz. Estava tão animada pela amazona ter deixado que ela visse seus amigos que ofereceu um dos doces para ela.

— Quer, mestra? - e estendeu o doce.

Claire ficou um pouco surpresa com o oferecimento e pegou o doce.

— Obrigada. – disse segurando a guloseima, antes de falar – Sophia, quero te pedir desculpas pela forma como te tratei na academia.

— Hã? - perguntou a menina surpresa.

— Eu sei que não fui justa com você. Eu também devia ter ficado de olho nas coisas… - ela suspirou – Desculpe-me.

— Não precisa pedir desculpas, mestra Claire. - definitivamente Sophia não estava preparada para aquilo e não sabia muito bem como agir – Eu também não fui a melhor aprendiz aqui…

Claire deu uma risada e Sophia percebeu que era a primeira vez que a via sorrir.

— Ah Sophia, pelo contrário, você foi uma boa aprendiz. Mas não deixe isso subir à sua cabeça, ok? Mantenha os pés no chão.

— Pode deixar. - garantiu.

Assim que chegaram na parte traseira da Academia, onde o pessoal treinava, viu Shaoran e Derya, que treinavam juntos.

— Ei! - chamou eles e acenou.

Os dois a viram e foram correndo até ela, os sorrisos imensos nos rostos.

— Sophia! - Derya a abraçou – Que bom que veio!

— Que bom que você está inteira! - exclamou Shaoran colocando a mão no peito, aliviado – Pensamos que você podia já estar morta.

— Sou vaso ruim e vaso ruim não quebra. - garantiu ela arrancando risadas dos amigos.

— Como está o treinamento? - quis saber Derya.

— Treinamento? Aquilo ali é ‘apanhamento’, porque eu só apanho. - ela franziu o cenho – A única coisa que aprendi é que tenho partes do meu corpo que eu não sabia que existiam.

Apesar da seriedade com que Sophia falou, os amigos riram da expressão dela.

— Ah, eu trouxe algo para vocês.

Ela colocou a cesta no chão e tirou doces de lá, dando um a cada. Shaoran e Derya agradeceram, felizes.

— Você fez as compras para seu mestre? - perguntou Shaoran olhando a cesta, que Sophia deixou ao seu lado.

— Sim, ele permitiu que eu viesse. O que foi legal, porque pude vir aqui.

— E como ele é? - perguntou Derya – Lucius de Escorpião.

As expressões dos dois lembravam dos guardas de antes, mas, para seus amigos, Sophia não sentia vontade de mentir.

— Na verdade, depois de conhecer todos os cavaleiros de Ouro, eu diria que ele é menos estranho. - confessou.

— Sério? - surpreendeu-se Derya.

Sophia fez que sim com a cabeça.

— Quando eu subi as Doze Casas….

Começou a contar e resumiu o que ouviu e viu na subida dela. Conforme ia falando, os amigos expressavam seus sentimentos, ora rindo, ora sérios e ora surpresos. Quando falou sobre o irmão de Kosuke e sua postura de empregadinha os três caíram na risada. Quando disse que Saphyra de Libra tinha namorado ou namorada, o que fosse, Shaoran ficou triste. Quando falou que ganhara tênis novos de Dharma, Derya pediu:

— Da próxima vez venha com eles!

— Virei!

Estavam entretidos em sua conversa e não perceberam a aproximação de Kosuke. Naquele período de tempo, o ódio do menino em relação a Sophia apenas se acentuou. Estava ansioso para fazê-la pagar, de alguma forma, a humilhação que sofrera e vira ali em sua visita uma oportunidade. A cesta com as coisas que Sophia comprara para seu mestre estava desguarnecida e Kosuke, rapidamente a pegou e a levantou.

— Nossa, o que temos aqui? - perguntou segurando a cesta em seus braços.

Quando Sophia viu Kosuke com a cesta, sentiu o sangue fugir de seu corpo. Raiva e medo se misturaram; raiva do menino e medo que ele derrubasse as compras e as estragasse. Não queria saber como seu mestre reagiria a algo assim.

— Ei, me devolva! - exigiu Sophia.

— Ah, estou apenas olhando! - disse Kosuke fingindo inocência.

— Não tem o que você ver ai. - Sophia deu dois passos na direção dele – São as compras de meu mestre!

— Lucius de Escorpião. - falou o menino em um tom falsamente pomposo – Grande bosta! Todos sabem que o cavaleiro mais forte é Terry de Leão. E meu irmão é discípulo dele!

— Seu irmão é empregadinha dele. - rosnou Sophia – Duvido que tenha aprendido qualquer outra coisa que não seja fazer suquinho para o mestre.

Kosuke ficou pálido de raiva e segurou a cesta com força; Sophia estava prestes a partir para cima dele quando Claire se fez ouvir:

— Kosuke. - a voz dela soou como um trovão – Devolva a cesta a Sophia.

A amazona estava a uma certa distância, mas vira a cena. Kosuke a encarou e fez cara feia para Claire, espantando Sophia. Ele costumava ser respeitoso e dissimulado na frente dos adultos. Talvez, depois que sua máscara caíra diante de Galahad, ele preferira assumir sua personalidade distorcida.

A contragosto, Kosuke estendeu a cesta para Sophia. Porém, antes que a menina a pegasse, ele a derrubou no chão, para a surpresa geral. Claire não conseguiu chegar a tempo, e a cesta caiu pesadamente, espalhando seu conteúdo. Se fosse apenas as verduras e o pão que caíssem, tudo bem. Porém, a cesta tinha outros itens. Os ovos quebraram com um barulho alto; a garrafa de leite se espatifou e o vidro de geleia de morango, a favorita de Lilian, quebrou. Sophia ficou encarando a lambança no chão, aturdida, enquanto Kosuke, com um sorriso malicioso, apenas disse:

— Ops…

— Ora seu! - Sophia gritou e partiu para cima de Kosuke.

Derya e Shaoran a seguraram, pois não queria que sua amiga sofresse outro castigo. Todavia, Sophia estava mais forte e quase os derrubou. Eles a soltaram e a menina só não quebrou os dentes de Kosuke porque Claire segurou seu soco.

— Sophia, calma. - pediu ela com a mãos sobre a da menina – Você não está mais na academia, mas as regras aqui ainda são as mesmas para quem quer que entre aqui.

— Ele fez de propósito! - gritou a menina tentando segurar as lágrimas.

— Eu sei. Mas cabe a mim puni-lo e não a você. - disse com calma.

Sophia a encarou e Claire assentiu com a cabeça. A menina então puxou seu punho e enxugou as lágrimas, que já caiam. Claire então se voltou para Kosuke, que sorriu inocentemente para ela.

— Mestra, minha mão escorregou e – mas ele não terminou a frase porque ela lhe aplicou um tapa com a mão aberta, forte e barulhenta.

Houve um silêncio constrangedor. Sophia ficou tão chocada que seu choro parou. Se Claire tivesse lhe dado um soco teria sido menos impactante. Um tapa na cara era mais humilhante do que dolorida.

— Vá para a biblioteca, pensar. - disse a amazona, ríspida – Chegarei lá em breve, para conversarmos.

Com ódio no olhar, o menino cuspiu no chão e obedeceu. Depois que ele saiu, Derya, Shaoran e Claire ajudaram Sophia a pegar as coisas que poderiam ser salvas.

— O mestre vai me matar… - murmurava a menina, com as lágrimas nos olhos.

— Vai não, Sophia. - consolava Derya – Você mesma disse que ele é não é o que o povo fala dele…

— Não é, mas, ainda assim, ele é bem rígido. E ele mandou eu ter cuidado… - a menina não queria nem pensar no que aconteceria.

— Se você explicar, ele vai entender… - reforçou Shaoran.

A menina queria acreditar que sim.

Claire olhou para a situação, pensou um pouco e então disse:

— Sophia, espere um pouco. Não vá embora antes de eu voltar. - e saiu.

Sophia olhou para os colegas e eles deram de ombro, também sem entender. Como não estava com condições de argumentar com nada nem ninguém, Sophia esperou. Pouco tempo depois, Claire saiu da academia, pegou a mão de Sophia e depositou várias moedas nela.

— Aqui. Compre o que quebrou. Isso dá.

Sophia ficou perplexa.

— Mestra… Não posso aceitar isso…

— Pode e vai. A culpa é minha. Eu devia ter ficado de olho nele, já que você estava aqui. Kosuke se tornou outra pessoa depois que você saiu. Na verdade, ele se tornou aquele que era e nós não víamos. - os olhos azuis dela faiscaram – Ele é minha responsabilidade agora. Então, aceite e compre o que falta. E não fale nada para o mestre Lucius. É um aborrecimento que ele não precisa ter.

Sophia ainda hesitava, mas Shaoran colocou a mão no ombro dela e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Derya fez o mesmo. A menina então fechou a mão, segurando forte as moedas.

— Obrigada, mestra Claire. Eu lhe pagarei um dia.

— Não precisa me pagar. - garantiu ela – Mas, na próxima vez que vier, se puder trazer um pedaço de bolo do mestre Lorenzo, eu ficaria grata.

— Trarei um bolo inteiro, pode ter certeza! - garantiu sem saber se poderia fazer aquilo mesmo.

— Eu me contendo com uma fatia, não se preocupe. - Claire sorriu – Agora vá. Você tem que fazer compras antes de subir as Doze Casas.

Sophia assentiu. Deu um abraço apertado em Derya, em Shaoran e depois fez uma reverência respeitosa a Claire, antes de sair da academia, triste e feliz com o que acontecera.

 

 

****************

Um homem jazia numa cadeira de rodas à sua frente e seu peito se encheu de uma dor imensa, como nunca sentira antes. Suas mãos, mãos grandes, maiores do que jamais as vira, se estendeu para ele e o tocou. Seu rosto estava morno, mas em breve estaria frio, pois ele estava morrendo.

— São meus termos. - falou uma voz atrás dela – Mas a decisão é sua.

— Ele vai ficar bom? - ouviu uma voz que não era a sua, mas saia de sua boca – Vai voltar a ser quem era?

— Dentro do que eu coloquei no meu acordo, sim. - respondeu a voz.

Suas mãos acariciavam o rosto do homem, mas seriam suas mãos mesmo? Sentia que era, mas ao mesmo tempo não era. Era como usar uma fantasia, estar vestindo um corpo que não pertencia. Sentia-se uma intrusa, uma parasita ali, e apenas podia ouvir, ouvir e sentir a angustia da mulher cujo corpo invadira e que, depois de um longo silêncio, disse, a voz entrecortada por causa do choro:

— Eu aceito.

Athena acordou, sem fôlego e angustiada, se debatendo, procurando se livrar da sensação do corpo onde estivera presa.

— Athena! - chamou Shun segurando em sua mão – Eu estou aqui. Pode ficar tranquila.

A menina inspirou fundo e soltou o ar de repente, parando de se debater. Segurou forte a mão de Shun e ficou satisfeita em ver que aquele era seu corpo, suas mãos pequenas e seu Shun que a encarava com preocupação.

— Shun… - balbuciou – Aconteceu de novo…

Shun baixou os olhos, como quem já esperava aquela informação, e colocou a mão dela entre as suas.

— Pode me descrever o que você viu? - pediu ele delicadamente.

As imagens já tinham escorrido dentro da memória de Athena e ela se forçou a reter alguma coisa, qualquer coisa para dizer a ele.

— Eu vi… Vi um homem da cadeira de rodas…

Foi como um soco no estômago de Shun. Seiya?! Athena lembrara de Seiya na cadeira de rodas?! De todas as memórias que ela podia despertar, porque logo aquela?

— O que mais? - perguntou, ansioso.

Athena sacudiu a cabeça, as lágrimas enchendo seus olhos.

— Não sei… Não lembro…. - e estremecendo, e se encolheu na cama, antes de murmurar - Estou com frio…

Rapidamente, Shun puxou as cobertas que ela afastara ao se debater e a cobriu. Depois, colocou a mão em sua testa. Athena ardia em febre.

— Agatha já está vindo. - disse ele voltando a segurar sua mão – Você vai ficar bem.

— Eu não gosto disso. - falou ela, chorosa – Dessas lembranças… Eu não quero saber da vida das outras. Não quero sentir as dores delas… - e as lágrimas começaram a escorrer de seus olhos.

— Eu sei, querida, eu sei. - ele passou uma das mãos nos cabelos dela, enquanto com a outra segurava a mão dela – Se eu pudesse, eu impediria essas lembranças de virem… Eu juro que eu o faria.

Um sorriso cansado iluminou brevemente o rosto de Athena, mas logo foi substituído por uma expressão de dor. Ela apertou os olhos e ofegou, deixando Shun desesperado.

— Athena, o que você está sentindo? - perguntou, preocupado.

— Minha cabeça dói… - murmurou – To enjoada…

— Vai passar… - Shun não sabia se dizia aquilo para ela ou para si mesmo – Passou das outras vezes, não foi?

Só que das outras vezes, lembrou ele, as lembranças não era sobre um momento tão sensível da vida de uma encarnação passada. Nunca ela tivera uma lembrança de Saori e fora justo aquela… Porém, antes que seu desespero aumentasse, um cheiro de rosas invadiu o local e ele suspirou, aliviado. Virou a cabeça e viu Agatha entrando, com uma maleta de madeira e a preocupação estampada na face. A amazona não usava sua armadura, nem as roupas comuns das amazonas, mas um vestido branco com um corpete violeta e sapatilhas da mesma cor. Seu cabelo estava preso com um coque enfeitado por duas rosas vermelhas, como no dia que Sophia a vira. A amazona caminhou diretamente para a cama e fez uma reverência para Shun.

— Grande Mestre. - ela disse com a cabeça baixa – Vim o mais rápido que eu pude.

— Você chegou na hora exata, Agatha. - disse ele – Athena acabou de acordar e está com dor de cabeça e febre.

Agatha assentiu.

— Pode deixa que eu cuido dela, Mestre.

Shun se levantou e Agatha ocupou sua cadeira. Ele hesitou um pouco, mas então saiu do quarto. Não queria que sua presença atrapalhasse a concentração de Agatha, apesar de ele não ser afetado pelo veneno que ela emanava. Sua luta com Afrodite de Peixes o deixara imune ao veneno das rosas demoníacas e podia interagir sem nenhum problema com os cavaleiros daquela casa. Todavia, não queria que ela se distraísse com sua preocupação; Agatha era muito sensível aos sentimentos dos outros. Talvez porque precisasse sempre manter uma distância das pessoas, tenha desenvolvido a percepção aguçada daquilo que os outros sentiam. E não havia nenhuma doença que a amazona de Peixes não conseguisse tratar. Então, restava para ele esperar.

Na varanda da antessala do quarto de Athena, ele observava o Santuário. Detestava a sensação de impotência e era assim que sempre se sentia em um momento como aquele. O que o deixava mais preocupado era o fato que demorara muito mais para Saori despertar as memórias das antigas encarnações que sua filha Athena.

A primeira vez que Saori tivera acesso às lembranças das encarnações que a precedera fora logo após a luta com Hades. Saori tinha então quatorze anos. Fora brutal vê-la desesperada dentro de memórias que não eram dela, mas que lhe trouxera informações essenciais para a cura de Seiya. No decorrer dos anos que se seguiram, houve outros episódios como aquele e Saori costumava dizer que eram desesperadores porque era como estar presa dentro do corpo de outra pessoa, consciente, mas sem poder agir. Era a consequência de inúmeras vidas vividas pela deusa Athena. Foi quando descobriram que, enquanto o conhecimento vinha naturalmente, sem alarde e sem dor, as lembranças eram como um golpe forte em suas mentes.

Sua filha Athena manifestara as memórias quando tinha apenas sete e aquilo custara muito de sua saúde. A menina ficara tão mal que precisara de muitas semanas para se recuperar. As lembranças recuperadas então eram muito antigas, da época mitológica. Uma lembrança que Saori também tivera. Depois disso, aconteceram mais duas vezes e nenhuma delas tinha sido uma lembrança de Saori. E agora, o momento em que ele temia chegara: ela vira Seiya. Mas será que fora só isso ou ela vira mais? Será que ela descobrira o que acontecera? Esperava que não… Ela ainda não tinha idade para entender o que Saori fizera. Esperava que, o que quer que ela tivesse lembrado, se esvanecesse, como acontecera com as demais lembranças.

Shun aguardou, ansioso, até o momento em que Agatha saiu do quarto de Athena, com um sorriso tranquilizador na face. Shun relaxou. Se Agatha sorria, era porque o pior já passara.

— E então? - quis saber ele, ansioso.

— Essa memória foi menos intensa que as outras, eu acredito. - disse, para o alívio dele – A febre não está muito alta e já a mediquei. Ela dormiu. Deve acordar no final da tarde, novinha em folha.

— Obrigado, Agatha – agradeceu ele, pegando em sua mão e apertando. Shun sabia como tocar em outra pessoa era importante para Agatha, privada disso desde a juventude – Athena tem sorte de ter alguém como você para cuidar dela.

Agatha sorriu e apertou também a mão de Shun.

— E ela tem a sorte de ter um pai tão maravilhoso, Mestre.

Shun devolveu o sorriso.

— Grande Mestre. - retomou Agatha – Posso fazer uma sugestão?

— Sempre, Agatha.

— Acho que quando Athena acordar ficará feliz em ter uma amiga ao seu lado…. - e sorriu.

— E eu acho que você tem razão. - concordou.

 

*************

Sophia estava em apuros.

Após sair da academia, fora comprar as coisas que Kosuke quebrara, aliviada de não ter que encarar a raiva de seu mestre por causa de seu descuido. Todavia, teve um susto quando chegou na barraca e viu que não tinha mais ovos.

— Como assim não tem mais ovos?! - perguntou horrorizada – Eu comprei uma dúzia faz pouco tempo!

— Mas eles acabaram.

— Não tem nenhum? Nenhunzinho?! - insistiu ela.

— Não.

Desolada, a menina se resignou a continuar seu caminho, pensando no que diria ao seu mestre.

“É só dizer a verdade, que não tinha.”, insistia sua mente. Ele não poderia castigá-la por não ter ovos, não é mesmo? Porém, tinha a impressão que ele veria além de seus olhos, veria que ela comprara sim, mas que um descuido seu fez que com que Kosuke quebrasse tudo e Claire tivera que intervir. Como odiava aquele menino! Odiava com todas as suas forças! Se Claire não a tivesse parado, teria quebrado a cara dele em duas!

Estava tão irritada e ao mesmo tempo com tanto medo que subiu as três primeiras casas sem notar. E só percebeu que já estava na casa de Câncer ao ouvir a voz de Lorenzo:

— Sophia?

Ela virou-se e encarou Lorenzo. Ele não usava armadura, mas a roupa comum aos cavaleiros e um avental branco com um caranguejo dourado bordado. Ele segurava uma tigela, onde batia uma massa com fuê e parecia preocupado.

— O que houve? - quis saber.

— Nada. - apressou-se em dizer.

Lorenzo franzido o cenho e olhou para o lado.

— Eu sei que ela está mentindo, você não precisa me dizer. - ele falava com alguém mas não havia ninguém lá. Ou havia? - Não, você não pode tentar possuí-la, já conversamos sobre isso!

Assustada, perguntou-se se devia sair correndo e deixar Lorenzo naquela conversa com o invisível.

— Ah, você também? - ele olhou para o outro lado – Sim, eu estou preocupado, mas se vocês não me deixarem falar com ela, não vou conseguir ajudar! - e suspirando, voltou a olhar para Sophia – Desculpe, mas o Francesco e Aluízio sentiram sua raiva e seu medo e me contaram. Eles estão preocupados porque você está emanando uma energia pesada. - ele deu uma pausa, ouvindo e acrescentou – Uma energia pesada para uma menina tão pequena, Aluízio pediu pra ressaltar.

Sophia apertou as alças da cesta e olhou para o chão, sem saber o que dizer. Depois de um momento, perguntou:

— Se eu disse para o senhor, promete que não contar ao mesmo mestre?

Lorenzo se encolheu por um momento.

— Não gritem tão alto! - pediu ele olhando para os lados – Sim, eu vou prometer a ela, mas parem de gritar! - e respirando fundo mais uma vez disse calmamente – Claro que sim, não sei o que é, mas tenho certeza que não é nada que envolva a segurança de Athena. - ele estava tentando fazer uma piada, mas Sophia não achou graça – Ah, venha tomar um chá. Comemos um bolo enquanto você me conta o problema.

E seguiu para dentro da casa de Câncer, ouvindo Lorenzo reclamar com os dois espíritos que o seguia, dizendo que ia acabar jogando-os no mundo dos mortos antes do chá se eles não calassem a boca.

Aldebaran estava sentada na mesa, comendo bolo, quando Sophia adentrou na casa de Câncer. Daquela vez, o cabelo dela estava com as pontas azuladas e a trança grande uniforme fora substituída por uma trança grande que saia do alto da cabeça e se dividia em pequenas tranças.

— Sophia! - exclamou a amazona, alegre – Errrra você? Lorenzo ficou tão tenso com os espírrrito que achei que fosse Lilian!

— Parece que a jovem discípula de Lucius tem problemas. - falou Lorenzo – Faça companhia a ela, Al. Vou por essa massa no forno.

Colocando a cesta com cuidado no chão, Sophia sentou-se em frente a Aldebaran, que a presenteou com um sorriso. Sophia tentou sorrir de volta, mas seu sorriso saiu sem ânimo.

— O que achou do meu cabelo, Sophia? - perguntou a amazona de Touro, sorridente.

— Achei lindo. - falou a menina, tentando parecer um pouco empolgada – Você quem fez?

— Minha namorrrrada. - falou alegremente – Ela é cabeleireirra. Se quiserrr corrtarr o cabelo, me avisa. Ela cobra barrrratinho.

— Eu corto meu próprio cabelo, mas obrigada. - agradeceu, antes de baixar os olhos e ficar calada.

Quando Lorenzo voltou, alguns minutos depois, com uma bandeja com um bule de chá e cinco xícaras, ele arrumou a mesa de modo a ter um lugar para cada um dos espíritos que estavam lá e os serviu da mesma forma que fez com Sophia e Aldebaran. Depois, cortou fatias de bolo para todos e serviu-os.

— Al... - começou Lorenzo depois que sentaram e a amazona o olhou – Sophia não quer que falemos a Lucius o que for dito aqui.

— Ok. - concordou a amazona – Mas, Sophia, fale logo porrrque seu silêncio está me deixando maluca.

Hesitante, a menina contou o que acontecera, como Kosuke quebrara as coisas de seu mestre e que Claire lhe dera o dinheiro para repor o que quebrara. Antes de concluir sua fala, Aldebaran a interrompeu.

— Lucius não vai castigarrrr você porrr isso. - garantiu – Talvez só rrreclame de prreciisarr pagarr a Clairrre.

— Ela pediu bolo do senhor, mestre Lorenzo, se eu quisesse recompensá-la. - Sophia disse olhando para o cavaleiro de Câncer, sem jeito – Eu prometi um bolo inteiro, mas não saberia como te pagar por ele…

— Ah, mas isso é fácil. - Lorenzo sorriu – Você pode lavar os pratos para mim. - ele se encolheu e olhou para o lado, irritado – Já disse, pare de gritar! E eu não sujo tantos pratos assim. Só o necessário. - e olhando para o outro lado, mais irritado ainda, perguntou – Por que você está rindo?

— Sophia. - Aldebaran chamou a atenção da menina enquanto Lorenzo continuava a discutir com os espíritos – Você não prrecisa ficar tão prreocupada. Lucius nem vai saberrrr…

— Mas é porque os ovos tinham acabado quando eu cheguei para recomprá-los! - falou a menina, angustiada – E o mestre Lucius vai fazer panqueca para a irmã dele! Não sei qual vai ser a reação dele mesmo que eu diga que os ovos tinham acabado! E se ele ficar chateado?

Aldebaran encarou Lorenzo na mesma hora, cruzando os braços, se encostando na cadeira e erguendo uma sobrancelha. O cavaleiro de Câncer então se encolheu, como se estivesse ouvindo gritos. Bem, provavelmente ele estava. Sophia não entendeu porque tanto a amazona de Touro quanto os espíritos pareciam chateados, mas logo Lorenzo bateu as mãos na mesa e exclamou:

— Ta bom, tá bom, já entendi! Vou pegar! - e saiu para o interior da casa mais uma vez.

— O quê… - Sophia começou a perguntar, mas Aldebaran levantou a mão, pedindo para que ela esperasse.

Momentos depois, Lorenzo voltou com uma bandeja de ovos e a colocou na cesta de Sophia.

— Tudo bem, talvez eu não precisasse ter comprado todos os ovos da barraca. - admitiu Lorenzo olhando para Aldebaran, que segurava o riso – Mas eu queria testar receitas de bolos para o aniversário de Athena!

— Todo ano você testa rrreceitas e todo ano Athena querrrr o mesmo bolo. - lembrou Aldebaran.

— Peraí, foi o senhor quem comprou todos os ovos da barraca? - surpreendeu-se Sophia – Tipo, porque tinha um montão!

— Fazer bolos consome muitos ovos. - disse Lorenzo solenemente.

Por mais estranho que fosse, Sophia estava feliz. Com todos os itens da lista poderia encarar seu mestre. Meteu a mão no bolso e tirou as moedas que sobrara do que Claire lhe dera.

— Aqui, mestre Lorenzo. Pelos ovos.

— De jeito nenhum! - recusou ele afastando a mão dela – Não vou cobrar pelos ovos. Devolva para Claire. E quando você for na academia de novo, mandarei bolo para ela.

— E eu virei lavar seus pratos! - garantiu a menina.

— Não fique tão animada, Sophia. - alertou Aldebaran, divertida – Lorrrrenzo suja muito!

— Não tenho medo de trabalho! - disse a menina fazendo muque.

Lorenzo e Aldebaran riram.

— Pois trabalhe seu garfo e termine seu bolo. - disse Lorenzo – Se você vai ter que passar a tarde com Lilian, deve pelo menos estar alimentada para aturá-la.

 

*************

Lucius estava muito feliz. Poder passar a manhã toda com Agatha era um luxo que nem sempre tinha e achara que demoraria bastante para ter novamente agora que precisava treinar Sophia. Então, quando recebera um recado dela que estava livre pela manhã, não pensara duas vezes: precisava fazer as compras e agora tinha alguém que pudesse fazer aquilo por ele. Já estava pronto para a reclamação de Sophia, mas a menina ficara feliz. Seria bom para os dois uma manhã de folga.

E fora uma manhã incrível. Era impressionante como Agatha conseguia fazê-lo se sentir vivo, elétrico e, principalmente especial. Seu cheiro, sua pele macia, seus beijos… Tocá-la, senti-la, era quase como uma droga que precisava consumir regularmente ou ficaria louco. Cada vez que a via parecia que o tempo não passara e que ambos ainda eram adolescentes se conhecendo. Quem diria que, em breve, faria doze anos que estavam juntos.

Riu ao lembrar de como seu mestre, Siku de Aquário e a mestra de Agatha, Helena de Peixes, ficaram preocupados quando os dois começaram a namorar. Helena achava que Lucius podia quebrar o coração de Agatha e Siku tentava convencê-la que aquilo não ocorreria. Lucius também tentara convencer a senhora Helena de suas boas intenções, mas foi somente quando a própria Agatha se impôs e disse que não deixaria de ver Lucius que as coisas se resolveram. Mestra e discípula conversaram, choraram abraçadas e Helena garantiu que arrancaria as tripas de Lucius e o enforcaria com elas caso ele fizesse Agatha sofrer. Lucius lhe disse que ele mesmo faria aquilo com ele mesmo se a machucasse. Lilian então se meteu na conversa e disse que ninguém estava considerando que Agatha podia magoar seu irmão. Siku concordou e foi outra rodada de discussões. Depois disso, problema resolvido.

Naquele dia, apesar de ambos estarem desocupados, Lucius não demorou mais que o usual na casa de Peixes; sabia que Agatha se sentiria culpada se Sophia voltasse e ele ainda não estivesse em casa. Por isso, quando se aproximou da provável hora de retorno de Sophia, ele deu um beijo em sua amada e se despediu. Quando chegou na casa de Escorpião, viu que Sophia ainda não chegara, mas preferia assim, pois poderia seguir as recomendações de Agatha para o pós encontro deles, recomendações essas que se tornaram mais severas agora que tinha uma discípula. Lucius precisava tomar banho e trocar de roupa antes de interagir com Avalanche ou com Sophia, pois ele podia ser imune ao veneno dela, mas os outros moradores da casa de Escorpião, não. Lucius chegara a dizer que não era necessário pois, apenas na descida até sua casa, seu corpo teria absorvido o veneno. Todavia, Agatha preferia não arriscar. Por fim, ele prometera que faria o que ela pedira.

Avalanche estava dormindo na cama de Sophia e levantou a cabeça quando o dono entrou. Esperto, o gato farejou o ar e, ao sentir o perfume das rosas, nem se aproximou do dono. Baixou a cabeça e voltou a dormir. Lucius riu e foi para o banheiro.

A água escorria por seu corpo enquanto ele ainda sorria, abobalhado, lembrando dos beijos dela. Era bom que Sophia não estivesse lá para vê-lo: tinha certeza que estava com cara de idiota. Não podia perder o pouco respeito que conseguira impor à sua rebelde discípula. Por isso, apressou-se e depois foi vestir-se.

No espelho, Lucius olhou para si mesmo e o sorriso morreu um pouco. Com a ponta dos dedos, tocou na imensa cicatriz que tinha no peito. A cicatriz era escura, de um vermelho sangue intenso e tomava todo seu tórax. Se pudesse ver suas costas, veria a continuação daquela cicatriz, fruto do ferrão do Escorpião Lendário, que o transpassou. Fora a pior dor em sua vida e se perguntava todos os dias como sobrevivera. Não apenas ele, mas todos no Santuário se perguntavam o mesmo.

“Eu precisava ver Athena chegar.”, dizia para si mesmo. “Por isso, ela me salvou.”

Não queria deixar aquilo estragar seu dia, então terminou de se vestir colocou uma toalha cuidadosamente no cabelo e saiu.

Enquanto esperava o cabelo secar, pegou a caixa grande que mantinha na parte de baixo de sua estante, levou até a mesa que ficava entre sua cama e a cama de Sophia, abriu-a e pegou seus materiais de costura. Sophia se surpreendera ao vê-lo costurar na noite anterior, mas, sabiamente, não fizera nenhum comentário. Se ela tivesse perguntado, ele teria respondido sem nenhum problema de onde viera aquela habilidade.

Siku de Aquário, seu mestre, pertencia aos Inuits, um povo único que habitava a região ártica e que, por muito tempo, foram chamados pejorativamente de ‘esquimós’. Os Inuit foram os primeiros a sofrer com o degelo das calotas polares, tendo que abandonar suas terras para sobreviver. Quando os cavaleiros de Aquário começaram sua batalha para reestabelecer os polos, contaram com a ajuda do conhecimento ancestral daquele povo sobre as geleiras. Fora assim que Siku soubera dos cavaleiros de Athena e juntara-se a eles.

Durante seu treinamento, Lucius e Lilian foram levados para passar uma temporada nas terras dos Inuit, numas das regiões polares da América, em uma terra que já fora chamada um dia de Canadá. Lá, eles viveram como os Inuit, caçando, pescando e costurando tendas, redes e, claro, suas próprias roupas. Lucius era muito melhor que a irmã naquela tarefa, mas, mesmo assim, Lilian nunca aceitara a ajuda dele.

Fora um período de grande aprendizagem e Lucius pegou gosto por costurar. Apesar de comprar suas roupas na maior parte das vezes, quando dava vontade, comprava algum tecido e costurava a mão uma roupa para si ou para outra pessoa. Mas, o que mais gostava de costurar era bichinhos de pelúcias para Agatha.

Avalanche, ciente que o perigo do veneno passara, subiu na mesa e ficou vendo seu dono trabalhar. Ou melhor, tentou atrapalhar o que Lucius fazia. O cavaleiro apenas ria das tentativas dele de pegar a linha. Fora Avalanche a inspiração para dar bichos de pelúcia para Agatha. Quando sua namorada soube que ele tinha um gato ficou encantada e, ao mesmo tempo, triste por não ter um bichinho. Como ela não podia interagir com nenhum animal diretamente, Lucius lhe dera um casal de peixinhos dourados. Agatha amou e ficou muito feliz com os animaizinhos. Eles viveram bons anos, até que um dia amanheceram mortos. Agatha ficou tão devastada que Lucius costurara dois peixinhos dourados de pelúcia, numa tentativa de consolá-la. Mesmo triste, a amazona melhorou um pouco seu humor e desde então Lucius costurara diversas pelúcias de bichos, tantas que Agatha agora apelidara seu quarto de minizoológico.

Havia tirado a toalha do cabelo e estava terminado de cortar o tecido para fazer um elefantinho para Agatha quando percebeu que Sophia estava demorando. Parou o que estava fazendo por um momento e procurou o relógio. Porém, logo ouviu os passos leves de sua discípula entrando na casa de Escorpião e relaxou. Provavelmente Sophia não vira o tempo passar conversando com os amigos. Voltou sua atenção à costura e não viu a expressão apreensiva de Sophia quando subiu as escadas, entrou no aposento e se dirigiu à bancada, onde pôs a cesta.

— Comprou tudo? - perguntou Lucius de olho no tecido, sem se virar para ela.

— Sim. - respondeu Sophia.

Distraído, ele não percebeu o tom hesitante dela.

— Quer que eu guarde as compras? - perguntou a menina, um pouco apreensiva.

— Não precisa, eu guardo. - respondeu ele costurando o olho do elefante – Aproveito e penso no que farei para comermos. Lilian só vem no final da tarde e estou com fome, mas sem paciência para cozinhar. Então acho que um lanche rápido resolve nosso problema. Mas não conte a Lorenzo hein? Ele vai me dar um sermão.

— Tudo bem. - disse ela.

Sophia não tirava os olhos da cesta, se perguntando se Lucius perceberia algo. Ela tivera a preocupação de limpar a cesta, ainda na academia, para que ele não percebesse o que acontecera e esperava que não tivesse deixado nada passar. Seu coração disparou quando Lucius levantou da mesa e foi até a bancada da cozinha. Ele ficou do lado de dentro da bancada, entre esta e a geladeira e os armários e começou a tirar as compras e guardar, quando percebeu que Sophia estava de pé, encarando-o.

— O que foi? - perguntou ele franzindo o cenho.

— Nada. - disse ela rapidamente.

Lucius ergueu as sobrancelhas. Finalmente notara que Sophia estava estranha.

— Já que não está fazendo nada, venha, me ajude. Vou lhe dando as coisas e você vai guardando onde eu disser.

Sophia correu para obedecer, sem reclamar e isso fez Lucius estranhar ainda mais o comportamento dela. Foi tirando as compras uma por uma e, quando já estava no fim e Sophia estava quase relaxando, ele parou, olhou para o fundo da cesta, depois olhou para a menina e perguntou:

— Tem certeza que não tem nada para me falar?

— Por que eu teria? - rebateu Sophia sem pensar muito.

Lucius suspirou antes de responder:

— Sophia, quando eu quiser uma informação de você, apenas fale. Porque, se não, eu vou arrancá-la de você de toda forma. Vamos poupar o meu trabalho e sua dor. Fale logo.

Ela não soube se foi a ameaça do seu professor ou a raiva de Kosuke que a fez entrar em ebulição. Provavelmente a mistura dos dois. Começou a contar tudo aos gritos, xingando Kosuke em meio a uma avalanche de palavrões dos quais Lucius ouviu pelo menos uns três que desconhecia. Deixou que ela colocasse para fora tudo que sentia.

— O senhor mandou eu tomar cuidado e eu não tomei! - gritava – Pode me castigar! -e cruzou os braços num misto de desafio e proteção.

Quando a menina terminou, Lucius continuava com a expressão de antes, sem se abalar.

— Bem, agora está explicado porque a bandeja de ovos está assim. - tirou a bandeja de ovos de dentro da cesta onde tinha o nome “LORENZO” escrito em vermelho de um lado a outro da bandeja de ovos.

— Não acredito que ele me deu uma bandeja assim! - revoltou-se Sophia.

— Ele está tão acostumado a marcar as coisas dele que nem deve ter pensando nisso. - Lucius pôs os ovos do lado da cesta, apontou então para o banco do outro lado da bancada e ordenou - Sente.

Sophia levantou o queixo, numa atitude de uma heroína indo para a batalha final e Lucius segurou o riso. Quando a menina sentou, ele pôs as mãos na bancada e baixou-se um pouco, para seus olhos ficarem na mesma altura dos dela. Sophia estremeceu, mas tentou não demonstrar.

— Sophia, eu vou te dar uma ordem e você não pode desobedecê-la. Entendeu?

Assustada, ela assentiu rapidamente com a cabeça várias vezes.

— Diga, “entendi, mestre”. Quero saber se você está me ouvindo.

— Entendi, mestre. - repetiu a menina, seu medo crescendo.

— Ótimo. A ordem é a seguinte: se Kosuke, ou quem quer que seja, lhe der motivos para que você revide, você tem minha autorização para lutar. Entendeu?

Sophia o encarou incrédula um momento antes de perguntar:

— O senhor está me dando autorização para brigar?

— Não. Estou lhe autorizando a se defender. Se for necessário, lute. E ganhe. Porque, se você entrar numa luta e não ganhar, eu lhe dou uma surra quando você voltar.

Ainda sem acreditar, Sophia questionou:

— Mas se alguém tentar me impedir? Um guarda, ou mestra Claire ou Kaiola…

— Ai você pode dizer que tem minha autorização. E se a pessoa não gostar, diga que pode vir se entender diretamente comigo. - o olhar de Lucius foi tão intenso e perigoso nessa hora que Sophia se encolheu um pouco.

— Sim, mestre. - disse.

Lucius assentiu e terminou de guardar as compras rapidamente.

— Agora preciso agradecer a Lorenzo pelos ovos e pedir que faça um bolo para Claire. - foi falando o cavaleiro – E não esqueça de devolver o que restou das moedas. Não gosto de ficar em débito com ninguém.

— Nem eu. - falou Sophia – Vou dar um bolo para a mestra Claire. Por minha conta.

— E com qual dinheiro você vai comprar os ingredientes? - perguntou ele com um sorriso curioso no rosto.

— Já conversei com o mestre Lorenzo. Vou lavar os pratos dele.

— Boa sorte. - disse Lucius com sinceridade – Lorenzo suja uma cozinha como ninguém.

— Foi, me disseram isso… - ela estava começando a ficar apreensiva com o compromisso assumido.

— Está com fome? - perguntou Lucius separando ingredientes para sanduíches.

— Comi bolo com o mestre Lorenzo e a mestra Aldebaran.

— Imaginei…

Enquanto Lucius pegava os pães e começava a fazer um sanduíche para si, Sophia perguntou, timidamente:

— Então o senhor não está com raiva de mim pelo que aconteceu?

— Claro que não. - disse passando maionese em um pão – Não foi sua culpa. Estou com raiva desse Kosuke por bagunçar minhas compras. E de Lorenzo por não ter mandado um pedaço de bolo para mim. - ele franziu o cenho – Porém, um aviso: da próxima vez que for fazer as compras, vá primeiro na academia e depois faça as compras. Para evitar acidentes como esse.

— Sim, mestre.

— E quando eu terminar de comer, vamos voltar a treinar. - avisou.

— Mas já? - reclamou e Lucius percebeu, aliviado, que Sophia voltara ao normal.

— Você quer ou não estar pronta para dar uma surra em quem for? - desafiou.

— Sim, quero!

— Ótimo, esteja pronta. - e abocanhou seu sanduíche.

Antes que Lucius terminasse seu almoço improvisado, eles ouviram passos nas escadas da casa de Escorpião e se entreolharam. Não esperavam ninguém aquele horário. Lilian apareceu por trás da estante, e Lucius que ia dar uma mordida no sanduíche, o baixou.

— Lilian? Achei que você só vinha no final da tarde…

— O Grande Mestre me mandou. - avisou ela, a expressão séria – Vocês dois precisam ir até o Templo.

— Athena! - exclamou Sophia pulando do banco e ficando em pé – O que aconteceu com ela?

— Venham. Vou explicar no caminho.

 

*********************

Agatha mexeu delicadamente o chá com a pequena colher de prata e o odor adocicado das ervas subiu com o vapor. Depois, ela pousou a colherzinha no pires, mas não o bebeu. Para quem passava o dia entre ervas e flores, o cheiro doce do chá chegava a ser enjoativo. Colocou a xícara de lado e verificou as horas em seu relógio de bolso, presente de sua mestra Helena. Eram quase quinze horas e Athena devia acordar em breve. Guardou o relógio e se recostou na cadeira.

Sabia que não voltaria para a casa de Peixes naquela noite. Não ficaria tranquila se não estivesse por perto em um momento de tanta fragilidade para Athena. Preferia estar por perto e não ser necessária do que o inverso acontecer. Melhor pecar pelo excesso de cuidado, dizia sua mestra.

Uma das servas a observava a distância, tão apreensiva que sequer levantava o rosto para olhá-la. Mesmo depois de tantos anos, Agatha ainda não conseguia se livrar do aperto no estômago quando as pessoas a evitavam. Entre as pessoas normais, sem treinamento, o medo era muito maior. Quando Agatha precisava ver alguém doente, tocavam um sino na vila, para as pessoas saírem de seu caminho. Dependendo da direção do vento, o veneno que emanava do corpo podia entrar na casa das pessoas e afetá-las. Não seria capaz de matá-las, isso era o fato, mas podia causar incomodo na garganta, boca seca, olhos lacrimejando… E na casa onde deveria atender, ela ficava a sós com o paciente que, se possível, usava uma máscara. Senão a própria Agatha usava uma máscara para que sua respiração não o atordoasse. Por isso, só a chamavam em último caso. Mais de uma vez soube de pessoas que procuraram o Grande Mestre para pedir que providenciasse uma outra pessoa para cuidar da saúde das pessoas, ao que ele respondeu:

— Se existir alguém mais habilitado que a amazona de Peixes, traga até mim e faremos a troca.

Mas não havia, claro. Cabia ao protetor da casa de Peixes o conhecimento das plantas, de suas ações, de seus malefícios e de seus benefícios. “A diferença entre o veneno e o antídoto é a dose,” dizia sua mestra Helena. O problema era que a dosagem do veneno de Agatha era muito alta, mais do que qualquer um antes dela. A própria Helena, que evitava tocar nas pessoas, mas cuja respiração não era venenosa, se surpreendeu com a quantidade de veneno que Agatha aguentou e que expelia. E ficou extremamente tristes por isso.

— Pobre menina… - ela lhe dizia acariciando seu cabelo – Me perdoe por condená-la a essa vida…

Uma vida que seria curta. O veneno cobrava seu preço. Se não morressem lutando, os cavaleiros de Peixes morriam entre dez e quinze anos depois de tomarem a dosagem final do veneno. Sua mestra durara os exatos quinze anos e morrera em seus braços, cinco anos antes. Agatha tinha entre cinco e dez anos de vida. Não era uma perspectiva muito animadora mas ela preferia viver o máximo que pudesse em vez de ficar se lamentando. Sua única tristeza ao aceitar o destino dos guardiões de Peixes era não poder abraçar sua irmã.

— Mestra Agatha. - a serva ainda estava de cabeça baixa e falou cautelosamente – O chá não está de seu agrado?

— Está ótimo, obrigada. - disse com simplicidade.

— Mas a senhora nem bebeu. Quer que eu prepare outra coisa?

— Não se incomode com isso. - e sorrindo para a mulher, ainda que ela mantivesse a cabeça baixa, perguntou – Quer que eu examine sua garganta? Você está rouca.

— É natural, senhora. Tenho desde criança. - a mulher ficou mais nervosa ainda – Se me dá licença… - fez mais uma reverência e saiu rápido dali.

Agatha deu um sorriso triste e voltou a atenção para a xícara. Voltou a mexer o chá com a colherzinha, mas ele lhe deu ânsias. Afastou-o mais uma vez.

— Agatha.

A chegada de Lucius, acompanhado de Sophia e Lilian a deixou mais feliz. Fez menção de se levantar, mas antes prestou atenção na direção do vento. Ótimo, se permanecesse à esquerda, ficaria contra o vento e poderia se aproximar de Sophia e Lilian sem medo.

— Que bom que chegaram. - ela se aproximou e ficou mais perto deles do que normalmente – Athena vai ficar feliz em te ver, Sophia.

— Ela tá bem? - perguntou Sophia angustiada – Ela tá doente de quê? Não entendi muito bem o que mestra Lilian explicou...

Agatha sorriu, tranquilizadora.

— Ela não está doente. - explicou a amazona – Ela está esgotada mentalmente. As vezes um grau grande de estresse como o que ela sentiu pode causar um grande mal-estar. Mas não se preocupe. Ela deve estar novinha em folha amanhã.

— Que bom! - exclamou Sophia colocando a mão no peito – Posso vê-la?

— Claro. - Agatha apontou para a porta dupla que dava acesso ao quarto de Athena – O Grande Mestre está com ela, mas disse que você poderia entrar assim que chegasse.

— Certo. Obrigada! - e Sophia empurrou a porta e entrou.

Depois que sua discípula sumiu porta adentro, Lucius foi até Agatha e pegou suas mãos.

— Como você está? - perguntou ele.

— Bem. O impacto dessa memória foi menor que a das outras. Deve ser uma memória mais recente. Por isso sugeri ao Grande Mestre que Sophia viesse. Um rosto amigo da atual encarnação vai ajudá-la a fixar-se no presente.

— Quem bom. Espero que outra memória não venha tão cedo. - desejou Lucius.

— A última foi há dois anos. Não acredito que outra ocorra por um bom tempo… - analisou Agatha.

Lilian tinha caminhado até a mesa onde Agatha estava sentada, pegou o bule de chá, tirou a tampa o levou até o nariz, fazendo uma careta depois.

— Eles não aprendem que você não gosta desse tipo de chá. - reclamou a amazona de Aquário olhando para Agatha – Vou na cozinha pedir um café forte.

— Não precisa, Lilian. - disse a outra.

— Precisa, porque quero também. - e sumiu na direção da cozinha.

Lucius puxou Agatha na direção da mesa e sentaram-se lá. Ela se inclinou e encostou a cabeça no ombro dele.

— Eu ficaria feliz em te ver duas vezes por dia se a segunda não fosse por algo como isso. - confessou ela.

— Então vou te fazer uma surpresa aparecendo em Peixes depois de já ter te visitado. – avisou ele solícito.

— Mas você já me disse, não é mais surpresa. - disse ela rindo.

— Eu disse que ia, mas não disse quando. - e olhou para Agatha, divertido – Agora, relaxe. Athena está bem e estamos juntos. Isso que importa.

E ela o fez.

 

*************

A primeira coisa que Sophia reparou era que o rosto de Athena estava muito pálido e a menina parecia bem pequena no meio das muitas cobertas na cama gigantesca. O Pégaso de pelúcia grande estava ao lado dela e o Grande Mestre sentava-se numa cadeira ao lado na cama, lendo um livro. Quando a viu, ele fez um gesto para ela se aproximar e sentar na cama. Sophia obedeceu.

— Mestre. - ela fez uma reverência com a cabeça.

— Sophia. - ele sorriu, cansado – Cada vez que eu te vejo você está com a aparência mais saudável e robusta. Fico feliz em ver isso.

— Obrigada, mestre. É a quantidade de ovos que o mestre Lucius me faz comer. Acho que ele e o mestre Lorenzo vão pôr as galinhas em extinção.

Shun deu uma risada.

— Tenho certeza que Galahad tem um plano de contenção para isso não ocorrer. - ele fechou o livro e o pousou no colo – É bom tê-la aqui, Sophia. Athena ficará feliz em acordar e ver uma amiga tão querida.

Sophia sorriu.

— Eu quem vou ficar feliz quando ela acordar. Não entendi muito bem esse negócio de memória, mas parece sério. Mas… Como uma memória pode deixar alguém doente?

— Você tem cicatrizes, Sophia? - perguntou Shun.

— Algumas. - respondeu a menina sem entender a pergunta.

— Elas coçam?

— Às vezes. As maiores coçam mais. - e então ela entendeu – Ah, as memórias são como cicatrizes na cabeça dela?

— Quase isso. São cicatrizes na alma. - ele levou a mão ao peito – As memórias mais intensas e mais importantes impregnam as almas e às vezes elas reaparecem, como as cicatrizes que coçam. Quanto mais antiga a alma, mais ela está sujeita a essas lembranças. Talvez você tenha tido alguma memória passada e não lembre. O problema é que Athena já viveu dezenas de vidas e suas memórias carregam muito mais emoções que a maioria de nós. E sua divindade as intensifica.

— Então ela nunca vai parar de tê-las? - perguntou, angustiada.

— Não. Mas a medida em que ela crescer e sua mente se fortalecer, será mais fácil lidar com elas. - Shun sorriu – E resta a nós apoiá-la nessas horas.

— Por isso estou aqui! - exclamou Sophia animada, fazendo ‘muque’ com o braço.

Shun se levantou, um sorriso.

— Vou te deixar com ela então. Só uma recomendação: se ela acordar com alguma dor, você dá para ela o remédio que está no aparador. - e apontou um pequeno franco no aparador ao lado da cama de Athena – Caso ela reclame de dores fortes, nos chame. Eu e Agatha estaremos na antessala.

— Pode deixar, mestre. - ela se levantou e fez uma reverência enquanto ele saia.

Sophia sentou-se onde Shun estivera antes e fitou o rosto de Athena. Ela dormia placidamente apesar da palidez. Quando acordasse, será que conseguiria falar sobre as lembranças que tivera? Sophia estava curiosa em saber o que ela tinha visto. Como seriam essas memórias? Se Athena quisesse falar, estaria pronta para ouvir.

Enquanto esperava, se perguntava o que teria acontecido com ela se não tivesse entrado na cabine de Athena no parque de diversões. Estaria tentando sobreviver na rua, vivendo um dia de cada vez. E, apesar de fazer pouco tempo em que estava no santuário, Sophia tinha a impressão que aquele era seu lugar. Sentia-se em casa, protegida, pertencente. Lucius lhe dissera que era provável que sua alma fosse de um antigo cavaleiro e gostava de pensar nisso. Era melhor do que se ver como uma menina órfã de rua.

Como toda criança, depois de um tempo apenas sentada, Sophia ficou entediada. Levantou-se e passou a andar pelo quarto de Athena, procurando algo para ler. Na estante da deusa, tinham vários livros e Sophia olhou rapidamente e pegou o primeiro que lhe chamou a atenção. Quando o puxou, algo caiu de dentro do livro. Sophia se abaixou e pegou. Era uma fotografia antiga. Reconheceu como sendo a foto que vira no livro que lera na academia. Era a foto da Athena do século 20 e cinco cavaleiros de bronze. Lá estava o Grande Mestre, Shun, o mesmo rosto que ainda ostentava. Virou a foto e viu que havia algo escrito. Era o nome das pessoas da foto numa caligrafia delicada e datava de mais uns duzentos anos. Caminhou de volta para a cadeira e sentou-se, ainda olhando a foto.

Havia alguma semelhança entre Saori e Athena, mas, ao mesmo tempo, elas eram diferentes. Se vivessem na mesma época, poderiam ser confundidas com irmãs. Será que existia alguma imagem das Athenas mais antigas? Gostaria de comparar o rosto delas para saber se todas eram assim, parecidas, mas diferentes. Se bem que, aquilo não importava. Sua amiga Athena era única, independente se ser uma encarnação de uma deusa ou não. Ela tinha sentimentos e vontades que, com certeza, não eram iguais as outras. Talvez por isso as memórias doessem tanto, pensou Sophia. Por não fazer parte de seu corpo atual, seria como algo tentando infectá-la. Lembrou das aulas da academia, sobre vírus, que entram no corpo e se colam nas células. Seria as lembranças passadas assim? Vírus antigos que tentavam infectá-la?

Colocou a foto de volta no livro e perdeu o interesse nele. Sua mente agora especulava como Athena se sentia com aquilo. Sabendo que sua alma costumava ir e voltar e já nascer com um destino tão pesado nos ombros. Não devia ser fácil.

“Eu vou ajudar ela a ser uma pessoa diferente das outras Athenas. Ser ela mesma!”, decidiu Sophia.

Os minutos se passaram e a agitação de Sophia foi dando lugar ao cansaço. Depois de descer as Doze Casas, ir até a vila, voltar e subir para Templo, estava exausta, além de todas as emoções que sentira. Acabou adormecendo, meio sentada na cadeira e meio deitada na cama de Athena. Não soube por quanto tempo dormiu, mas acordou assustada com alguém tocando sua mão.

Athena acordara e sorria para ela.

— Sophy… - murmurou ainda sonolenta.

— Athena! - Sophia se levantou tão rápido que se desequilibrou e caiu da cadeira.

— Você está bem? - perguntou Athena se sentando na cama e olhando para o chão.

— Ai, ai, estou sim. - Sophia passava a mão na cabeça – Só fiquei empolgada que você acordou… - a menina sentou-se na cama – Ainda tá sentindo alguma coisa?

Athena fez que não.

— Estou bem. Faz tempo que você chegou?

Não sei, não vi nenhum relógio aqui. - w encarando a amiga, disse – Eu fiquei preocupada quando eu soube que você tava doente… Ou meio doente… Que você não tava bem.

— Obrigada por se preocupar. - agradeceu, sorrindo – É bom não acordar sozinha.

— Athena… - Sophia hesitou um pouco e então perguntou – O que você lembrou? - mas então, rapidamente sacudiu a cabeça – Deixa para lá, você não vai querer falar disso.

— Na verdade, eu não lembro muito bem. - confessou a menina.

— Sério? - surpreendeu-se Sophia – Não lembra de nada? Nadinha?

— Só lembro de sentir uma angústia muito grande, um aperto no coração. - Athena levou a mão ao coração e fechou os olhos – Tenho a impressão que havia uma pessoa que eu amava muito que precisava de mim… O resto é muito confuso.

— E você sabe de qual Athena é essa memória?

— Não.

— Deve ser desesperador para você…

— Um pouco… Mas… Acho que prefiro não saber. - admitiu. E diante da surpresa de Sophia, explicou – É passado, certo? Eu não posso mudar o que aconteceu com elas. Não posso ajudá-las, porque tudo já passou. Então, de que adianta? - Athena suspirou – Eu detesto isso, essas memórias…

Sophia então pegou a mão dela e a apertou.

— Então vamos fazer apenas memórias boas para a próxima Athena não sofrer com isso. - disse sorrindo – Se bem que, tem as outras, né? Mas não da sua parte. Você pode contribuir só com coisas boas.

Mesmo sendo apenas uma criança, Athena sabia que não era possível fazer aquilo. Que não controlaria as lembranças que a outra Athenas após ela teria. Todavia, manter aquela esperança era tentador… E sua inocência infantil ainda a permitia sonhar. A permitia pensar que, talvez, fosse sim possível.

— Vamos! - falou animada – Apenas memórias boas!

— Apenas memórias boas! - concordou Sophia.

— Sabe o que seria uma boa memória? - perguntou Athena – Jantarmos juntas! Tô morrendo de fome!

— Ah, eu também! - Sophia levantou – Ah, mestre Lucius e mestra Lilian estão lá fora. - Ela apontou para a porta do quarto com o polegar – Mestra Agatha também.

Os olhos de Athena brilharam, ela jogou os lençóis para o lado e levantou.

— Oba! Vamos jantar todos juntos!

— Sim, sim!

E sorriram uma para a outra, deram as mãos e se encaminharam para a porta, para se reunirem com aqueles que desejavam, mais que tudo, que Athena tivesse apenas memórias boas para passar adiante.

 


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