A Égide de Athena escrita por Joy Black


Capítulo 5
5. Decisões




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Athena estava entediada.

Deitada no chão do salão principal do templo, encarava o teto, chateada por não ter nada legal que fazer. Shun estava em uma reunião com alguns cavaleiros, nenhum dos cavaleiros de Ouro estava lá para conversar com ela e as servas estavam ocupadas demais. Detestava quando aquilo acontecia.

Normalmente ela conseguia matar o tempo até ter companhia, mas naquele dia não queria fazer nada do que costumava fazer: não estava interessada nos livros, nem nos jogos, nem nos instrumentos musicais e não podia passear ao ar livre porque o dia estava fechado e ela fora aconselhada a não sair e evitar o risco de tomar chuva. Só lhe restara os gizes de cera e ela fizera uma pintura imensa no chão de mármore, antes de deitar de costas, o olhar preso no teto, irritada por não saber exatamente o que queria fazer.

“Seria legal se Sophia estivesse aqui.”, pensou. Assim, poderiam conversar, brincar e Sophia lhe contaria mais sobre a vida no mundo exterior. A menina não saia da cabeça de Athena. Tinha a sensação que elas já se conheciam antes, o que, obviamente não era possível. Ainda assim, a sensação permanecia. Como estaria o treinamento dela?, perguntou-se. Sophia era forte, então, com certeza, estava tirando de letra. Não demoraria muito e algum cavaleiro ou amazona se interessaria por ela. Esperava que fosse um dos cavaleiros de ouro, assim Sophia ficaria mais perto dela. Sorriu diante da ideia. Queria manter aquela esperança.

Teve então uma ideia que fez seu coração se acelerar e ela sentou-se rapidamente. Será que poderia ir visitá-la na Academia? A animação logo se esvaiu, sua expressão entristeceu-se e ela deitou-se novamente. Shun não deixaria. Ele mesmo avisara a Sophia que não falasse aos outros aspirantes que conhecera Athena. Dissera que eles poderiam tratá-la diferente e isso afetaria seu treinamento. Sophia concordara. Só poderia esperar que a amiga viesse visitá-la. Até lá, continuaria entediada.

Foi a imagem de Athena com a expressão chateada, deitada no chão com os braços e pernas abertas, um giz de cera na mão, os dedos sujos e olhar fixo no teto que Shun teve quando entrou no salão do templo. Baixou os olhos e viu a imagem que Athena fizera no piso com os lápis de cera e seu coração apertou-se. Pintado no chão de mármore, um imenso Pégaso parecia voar entre as nuvens. A menina devia ter demorado horas para criar aquele desenho perfeito.

— Zoe não vai ficar feliz com isso. - disse ele, atraindo a atenção da menina, que o olhou – Vai reclamar porque terá de limpar todo esse giz de cera do chão.

— É só não limpar e deixar meu Pégaso aí. - falou Athena num muxoxo – Esse local estava muito branco mesmo….

Shun riu e sentou-se no chão, ao lado da menina. Naquele momento, ele não usava a máscara ou o capacete. Não costumava usá-los quando estava sozinho com Athena.

— Você parece chateada. - começou.

Athena apenas deu de ombros.

— Estou entediada. - avisou.

— Percebi. - disse olhando mais uma vez para o desenho do Pégaso – E seus exercícios? - quis saber.

Athena seguia uma rotina diária de estudos, feitas pelo próprio Shun. Não foram poucas vezes que as maiores mentes da humanidade foram convidadas para compartilhar seus conhecimentos com a menina. Athena sempre surpreendia a todos, aprendendo suas teorias em pouquíssimo tempo e até ajudando na resolução de problemas que se arrastavam há anos.

— Terminei todos. - disse.

— Quer fazer algo específico? - perguntou Shun preocupado com o desânimo dela.

Athena hesitou um pouco antes de responder.

— Até queria, mas você não vai deixar.

— E o que seria? - ele quis saber, mas já tinha algo em mente.

— Eu queria ver Sophia treinando. – falou, confirmando as suspeitas do cavaleiro de Andrômeda – Mas sei que não posso ir. Então, estou entediada.

— Você a verá em breve, tenho certeza. Sophia tem tudo para ser uma excelente amazona.

Athena abriu um sorriso imenso.

— Também acho. - e finalmente ela se mexeu no chão, sentando-se em frente a Shun, os cabelos castanhos levemente despenteados – Shun, você já teve a sensação que conhecia uma pessoa, mesmo sem nunca ter visto ela antes?

— É assim que você se sente à Sophia?

Athena assentiu.

— Bem, talvez você a conheça. - falou ele.

E, diante do olhar confuso da menina, explicou:

— Às vezes, uma alma é tão leal a você e a sua causa, que retorna, para se tornar novamente um cavaleiro. Talvez Sophia seja uma alma antiga, um cavaleiro ou amazona que retornou para lhe servir mais uma vez.

— Mas eu não quero que ela me sirva. - protestou – Quero que ela seja minha amiga.

— Ela pode ser os dois, não?

— Talvez… - murmurou ela sem muita convicção – Mas, se Sophia é uma alma dessas, qual cavaleiro ou amazona ela é?

— Saberemos quando uma armadura a escolher. As armaduras lembram que são seus portadores. - Shun sorriu – Até lá, você terá que ter paciência.

— Verdade… - a menina olhou para as mãos sujas de giz de cera – Você já terminou o que tinha para fazer?

— Por hora, sim. Mas terei mais reuniões pela tarde.

— Ah, que chato! - reclamou Athena deitando-se no chão de novo – Eu não tenho nada para fazer!

Por mais que quisesse ficar um tempo com Athena, Shun tinha muitas coisas para resolver. Receberia alguns emissários de diversos países, sobre as reparações no mundo. Seria uma longa reunião e se tornaria muito mais entediante para Athena estar com ele do que se fizesse qualquer outra coisa.

— Seu aniversário está chegando. - lembrou Shun – Por que não planeja algo? Você pode fazer diferente do ano passado.

Athena imediatamente sentou, elétrica. Levantou-se e correu até o canto do salão onde havia um baú. Remexeu lá dentro e voltou correndo, com um caderno de couro, de folhas costuradas elegantemente e uma capa dourada. Abriu e mostrou a Shun tudo que tinha escrito. O Grande Mestre folheou as páginas, onde havia muitos desenhos de decorações, anotações de como seriam as mesas e a lista de convidados. Basicamente era ele e os cavaleiros de Ouro. E, anotado em baixo com um desenho de coraçãozinho do lado, o nome de Sophia.

— Eu já planejei quase tudo, falta só o cardápio! - anunciou – Estou esperando Lorenzo aparecer. Ele me prometeu que ia me mostrar umas receitas novas! Ah, e também disse que ia me ensinar a fazer cannoli! - a voz dela estava carregada de empolgação.

Apesar de ter ficado muito decepcionado com os cavaleiros de Ouro que perderam Athena, Shun já pensava que havia sido severo demais com eles, especialmente com Lorenzo. O cavaleiro de Câncer era muito apegado a Athena, desde que a estrela a trouxera. Lorenzo sequer era cavaleiro de Ouro ainda, mas todos os dias estava lá, para cuidar da menina. Às vezes, a única pessoa que a deusa-bebê permitia que a pegasse, além de Shun, era Lorenzo. Talvez fosse hora de acabar com o castigo, pelo menos do cavaleiro de Câncer.

— Posso chamar Lorenzo para passar a tarde com você. - sugeriu Shun sorrindo – Vocês podem elaborar o cardápio do seu aniversário e fazer cannolis.

Os olhos de Athena brilharam de felicidade e Shun sabia que tinha tomado a decisão certa.

— Sim, sim, por favor! - ela se levantou e deu pulinhos animados – Será que meu avental tá limpo? E será que temos todos os ingredientes? Será que a Zoe vai reclamar por sujarmos toda a cozinha que nem da outra vez?

O Grande Mestre também se levantou.

— Zoe saberá responder essas questões. - falou ele – Vamos falar com ela?

— Sim! - Athena pegou na mão se Shun e a apertou forte – Você quer que eu prepare algo pra você? Podemos fazer algo especial!

— Quero provar dos cannoli que vocês fizerem. Guarde um pra mim, certo?

— Vou guardar um monte! - anunciou ela. E depois, quando saíram do salão, ela lhe sorriu e disse – Eu te amo, Shun.

— Eu também te amo, Athena. - e Shun sabia que talvez a menina nunca soubesse o tamanho de seu amor por ela.

 

*********************

Fazia anos que Lucius não ia à academia. Diferente dos demais cavaleiros de Ouro, ele não tinha interesse em ter nenhum discípulo. Sabia que, em algum momento, precisaria treinar o sucessor da armadura de Escorpião, mas adiaria aquele momento o máximo possível.

Ser responsável por outra pessoa era algo que lhe deixava desconfortável. Só o pensamento de ter um discípulo lhe causava uma sensação de angústia. Não que tivesse tido experiências ruins com seus mentores, de forma alguma. Galahad fora um professor rígido, porém dedicado e bondoso. Depois dele, Lucius fora treinado por Siku, cavaleiro de Aquário, junto com Lilian. Na época, a armadura de Escorpião estava desaparecida e coube a ele recuperá-la. Siku não era tão afável quanto Galahad, mas nunca os maltratou ou fora estúpido com os irmãos. Talvez por ter tido mentores tão bons ele duvidava que conseguisse fazer jus como professor.

Ou talvez tivesse medo de se tornar seu pai.

Ao seu lado, diferente dele, Lilian estava empolgada. Se tinha uma coisa que a amazona gostava de fazer era ensinar, porque acreditava que sempre sabia mais que qualquer um. E, verdade fosse dita, Lilian era uma excelente professora e já formara um cavaleiro de bronze. Era provável que estivesse em busca de um novo discípulo.

— Estou ansiosa para ver os novos aspirantes. - comentou Lilian enquanto passavam pela vila de Rodorio – Gal falou que tem vários novatos.

Lucius imediatamente lembrou de Sophia caída aos pés de Athena e limitou-se a assentir com a cabeça.

Lilian o olhou de rabo de olho e Lucius achou que ela começaria a falar sobre como ele estava chato, ou algo do tipo. Porém, Lilian nada falou. Seu silêncio era porque sabia o motivo do recolhimento do irmão e nem mesmo ela queria discutir aquele assunto. Porque, mesmo que os quatro fossem considerados culpados pelo fiasco da festa, Lilian carregava o peso de ter sido ela a sugerir que Athena saísse para o mundo exterior. E, mesmo que Lucius não tivesse dito o “eu avisei” que prometera falar, sabia que Lilian pensava naquilo como se ele houvesse falado.

Os irmãos tinham formas bem diferentes de lidar com suas frustrações: enquanto Lucius se retraia diante de um problema, Lilian fingia que nada acontecera e nada a afetara, o que era uma grande mentira. Lucius sabia que sua irmã sofria tanto quanto ele e não apenas porque Agatha lhe falara, mas porque conhecia a irmã. Quando Lilian estava estressada e ansiosa, ela reversava entre momentos em que falava rapidamente, atropelando as próprias palavras, e silêncios inesperados e profundos. E era assim que ela se comportava naquela manhã. Depois de um imenso e animado discurso sobre como estava animada em ir para a Academia, calara-se e atravessara a vila no mesmo silêncio que seu irmão.

O tempo estava nublado e Lucius acreditava que logo choveria. Gostava de dias como aqueles, escuros e frios. A época de chuvas na Grécia já chegara ao fim, mas dias chuvosos ainda eram comuns. Talvez estivesse chovendo quando ele e a irmã lutassem. Sentia que o clima transmitia bem o que sentia.

Ao chegaram na academia, Lilian havia mudado para a fase tagarela, falando pelos cotovelos. Na entrada, viram os aspirantes treinando, mas estes não lhe deram atenção, pois não os reconheceram. Lucius procurou por Sophia entre os aspirantes, mas não a viu.

— Ah, que saudade! - exclamou Lilian saudosa ao entrarem no prédio da academia – Eu adorava isso aqui!

Sim, houvera uma época que Lilian amava a academia, porém, Lucius lembrava claramente quando chegaram ali, vinte anos atrás, e a pequena e desnutrida criatura que era sua irmã apenas chorava, um lamento alto, estridente e doloroso. Lembrava de como ele apertava sua mão fina, tão frágil que parecia que seus ossos iam se quebrar.

— Ah, mestre Lucius, mestra Lilian! - Claire se aproximou dos dois, distraindo Lucius de seus pensamentos – Chegaram antes da hora.

— Estávamos ansiosos! - disse Lilian animada – Fazia quanto tempo que eu não vinha aqui? Uns seis meses?

— Em torno disso, mestra Lilian. - respondeu a amazona de Águia torcendo as mãos – E já temos um grupo quase totalmente novo aqui.

Lucius sabia que aquilo não era exatamente uma coisa boa. Significava desistência e mortes, duas coisas que Galahad procurava evitar com afinco.

— Onde está o Gal? - perguntou o cavaleiro de Escorpião.

— No escritório. Posso acompanhá-los até lá.

— Não precisa. - disse Lilian acenando com a mão – Vamos só dar um oi antes de ir para a arena.

— Vou juntar os aspirantes, então. - e fazendo uma reverência, Claire saiu.

Assim que se viram sozinhos, Lilian comentou:

— Claire parece tensa.

— Claire está sempre tensa. - disse Lucius, que vira a jovem muitas vezes enquanto esta era discípula de Galahad.

Foram até o escritório de Galahad e Lucius bateu à porta.

— Entre. - falou Galahad.

Quando entrou, Lucius percebeu que havia algo errado. Kaiola estava sentada em frente a Galahad e também estava tensa, como Claire. E o cavaleiro de Capricórnio tampouco estava confortável. Algo acontecera ali na Academia.

— Gal! - falou Lilian entrando animada, ignorando toda a tensão – Como vai?

Galahad forçou um sorriso.

— Tudo bem, Lilian. Você está ótima, pelo visto.

— Melhor agora, já que estou aqui. - e sem esperar uma resposta, foi falando – Estou pensando em pegar mais um discípulo. Tem algum em mente para me indicar?

— Alguns, mas o ideal que você veja com seus próprios olhos.

Lucius olhou para Kaiola e a Amazona de Cobra estava estranhamento quieta. Normalmente ela já teria feito alguma piadinha com a animação de Lilian, mas nada falara.

Galahad se levantou e, mesmo sem a armadura, era imponente. Lucius reprimiu a vontade de se encolher, como fazia quando era criança e Galahad estava estressado.

— Venham, vamos começar. - chamou ele.

Galahad e Lilian seguiram na frente, a amazona de Aquário tagarelando em uma alegria muito forçada, enquanto Lucius e Kaiola seguiam um pouco atrás. O silêncio da amazona de Cobra incomodava Lucius e ele se perguntou se era assim que Lilian se sentia quando ele se calava.

— O que aconteceu aqui? - perguntou Lucius.

A amazona suspirou.

— Tivemos problemas ontem no alojamento… Nada sério, mas eu e Claire levamos umas broncas.

Lucius franziu o cenho. Galahad sabia dar uma bronca como ninguém.

— Foi grave? - ele quis saber.

— Não. O problema é que não sabemos o que exatamente aconteceu. E isso está incomodando o mestre.

Então aquele era o motivo do estresse de seu antigo professor. Se havia algo que incomodava Galahad era não saber o que se passava no local que era sua responsabilidade. Lucius o entendia: também detestava a sensação de perder o controle.

Assim que chegou na arena, Lucius notou que Claire já havia acomodado todos os aspirantes na arquibancada da miniarena. Quando se aproximou, Lucius finalmente viu Sophia e entendeu o motivo de Galahad está bem incomodado. A menina estava sentada entre dois outros aspirantes e tinha um grande hematoma no rosto. Seu olho esquerdo estava tão inchado que estava fechado. Alguém havia dado uma boa surra nela e o cavaleiro de Escorpião duvidava que tivesse sido durante o treinamento. Se fosse, o ferimento não estaria tão ruim, pois Claire e Kaiola teriam feito os primeiros socorros imediatamente.

— Crianças, hoje teremos algo diferente. - Galahad falava, sem dar mostras sua irritação. Agora que estava à frente de seus alunos, não demonstraria nada do que sentia e se focaria em seu dever. – A maioria de vocês não os conhece pessoalmente, mas já ouviram falar neles. - ele os mostrou com as mãos – Vocês verão uma demonstração de luta entre dois antigos discípulos meus e atuais cavaleiros de Ouro: Lucius de Escorpião e Lilian de Aquário.

Houve um burburinho excitado entre os aspirantes. Lucius olhou novamente para Sophia e ela o encarava, sem a animação dos demais. Sem se dar conta, ele começou a caminhar na direção dela. O burburinho acabou-se repentinamente, quando o cavaleiro de Escorpião parou bem em frente a aspirante novata.

— Você lembra de mim? - perguntou Lucius.

Sophia o encarou por um momento.

— Você é o homem da roda gigante. - falou ela.

Ele assentiu, antes de apontar com o indicador para o ferimento dela.

— Como conseguiu isso?

— Caí da cama. - respondeu singelamente.

A mentira era tão óbvia que Lucius se perguntava porque ela simplesmente não falava a verdade. Os dois se encararam mais um momento e Lucius levantou o indicador de novo. Para a surpresa de Sophia, ele cutucou rapidamente seu ferimento e ela sentiu algo quente percorrer o rosto. Soltou uma exclamação e levou a mão até o inchaço e percebeu, pasma, que ele parecia menor. No dedo indicador de Lucius, uma imensa unha vermelha, que não estava lá antes, surgira.

— Eu acelerei o bombear de seu sangue e o inchaço vai sumir em poucos minutos. - explicou antes de recolher a mão – Você vai sentir um pouco de calor, mas logo vai passar. - e virando as costas para ela, completou – Tenha mais cuidado ao dormir. - e voltou para o centro da arena.

Derya e Shaoran estavam sentados cada um de um lado de Sophia e exclamaram surpresos com a interferência do cavaleiro. Sophia, ao contrário dos colegas, estava revoltada.

— Ele usou uma técnica em você! - exclamou Shaoran espantado.

— Ele me deu uma dedada! - reclamou a menina ainda segurando o olho.

— Mas foi uma dedada de um cavaleiro de Ouro! - falou Derya extasiada.

— Quero ver se ele ia gostar se eu desse uma dedada bem no meio do.. - ela não conseguiu terminar de falar porque sentiu algo quente percorrendo seu rosto – Ai, ai, tá ardendo!

— Seu olho está quase normal! - exclamou Derya encantada – Então é isso que um cavaleiro de Ouro pode fazer?!

— Ah, ótimo, os maiores defensores de Athena gostam de sair metendo o dedo nos outros! - reclamou Sophia abanando o rosto com as mãos – Está muito quente!

E, apesar da reclamação, Sophia adorou quando sentiu o olho desinchar e pode ver o centro da arena, onde Galahad estava parado, e a olhava, ladeado pelos outros cavaleiros de Ouro. Piscou os olhos, vendo o mundo entrar em foco novamente e a quentura do rosto ir sumindo.

— Eles são irmãos, os cavaleiros de Escorpião e Aquário. - disse Shaoran sem conseguir conter a animação – Eles foram treinados pelo antigo Cavaleiro de Aquário, Siku.

— Ele foi treinado pelo cavaleiro de Aquário? - estranhou Sophia – E se tornou o cavaleiro de Escorpião?

— Não é obrigatório você ser treinado pelo cavaleiro da mesma constelação protetora que a sua. - explicou Derya – Às vezes os cavaleiros procuram alguém nascido sob a mesma constelação apenas por praticidade, mas a maioria prefere sentir-se conectado com o discípulo. A amazona de Aquário treinou o cavaleiro de bronze de Coroa Boreal e ele nasceu sob a constelação de Câncer.

— Como vocês sabem de tudo isso? - perguntou Sophia, que percebeu que até mesmo as dores em seu corpo diminuíram.

— As mestras contam tudo a nós, para nos encorajar. - disse Derya.

— Ah…

Enquanto Sophia conversava com seus amigos, no centro da arena Lilian observava-a e entendeu o motivo da tensão da Academia.

— A pequena defensora de Athena já chegou causando impacto, não é? - perguntou Lilian a Galahad.

O queixo do cavaleiro de Capricórnio tensionou e ele nada respondeu.

— O que aconteceu, Gal? - quis saber Lucius.

Galahad se virou para os dois e baixou a voz, para que nenhum aspirante ouvisse a conversa.

— Houve uma agitação no alojamento durante a noite… provavelmente motivado por um deslize durante o treinamento. Mas nenhum dos aspirantes diz o que realmente aconteceu…

— E isso está te enlouquecendo. - completou Lilian.

— Eles deveriam me contar tudo que ocorre. - resmungou Galahad.

— Qual foi a desculpa para o amassado na cara? - quis saber a amazona.

— Ela disse que caiu da cama. - respondeu Lucius seriamente.

Lilian caiu na risada.

— Poxa, ela mente mal hein? - a amazona de Aquário balançou a cabeça – Os aspirantes de hoje em dia não são tão criativos quanto nós fomos, hein? - e cutucou o irmão com o cotovelo.

— Talvez ela tenha resolvido o problema, sozinha, e não precise de ajuda. - imaginou Lucius – Por isso, não falou nada.

— Bem, se alguém pode entendê-la é você. - revelou Galahad – Vocês nasceram sob a mesma constelação.

— Ela é de Escorpião? - perguntou Lilian espantada, mas sorria – Não estou surpresa de não querer contar o que aconteceu.

— Não apenas isso. Ela é do mesmo dia que você, Lucius. - o cavaleiro de Capricórnio finalmente deu um sorriso – É como treinar você de novo…

— Espere. Ela deu uma mordida em alguém? - quis saber Lilian empolgada.

Lucius suspirou e coçou os olhos. Aquela história nunca ia morrer?

Quando chegaram ao Santuário, ele e Lilian estavam tão magros que mal ficavam em pé. Depois de semanas de bons cuidados e boa alimentação, estavam aptos para começar o treinamento. Em sua primeira luta contra um oponente, Lucius se viu tão encurralado que recorreu a uma tática que usara para sobreviver no mundo exterior: cravara os dentes fundo no braço do oponente e quase arrancou um pedaço de sua carne. Fora colocado de castigo e recebeu um sermão sobre luta honrada e justa. Lilian adorava contar aquela história toda vez que saiam para beber.

— Então? - insistiu Lilian – Foi uma mordida?

— Ela aplicou um golpe nas… nas partes íntimas de um dos aspirantes. - revelou Galahad.

Lilian jogou a cabeça para trás e gargalhou, atraindo a atenção de todos os aspirantes. Galahad pigarreou, e Lilian se conteve, transformando a gargalhada em risadinhas.

— Ela chutou o saco de alguém?! – Lilian riu mais – Taí, gostei da menina! Pena que não é de Aquário, senão hoje mesmo eu a levava para minha casa.

— Achei que não se importasse com isso. - estranhou Lucius.

— Em breve terei que continuar de onde mestre Siku parou. - lembrou – Preciso deixar o próximo cavaleiro ou amazona de Aquário preparado.

Desde o desgelo das calotas polares, todos os cavaleiros e amazonas de Aquário se sacrificaram para restaurar os polos do planeta e restabelecer o equilíbrio do clima. Se não fosse o ato de altruísmo deles, o trabalho de Athena seria como dar murro em ponta de faca: a deusa jamais conseguiria curar um planeta que não pudesse permanecer sadio. Lucius detestava quando a irmã falava tão despreocupadamente em morrer queimando todo seu cosmos para o renascimento dos polos. Detestava, pois, da mesma forma que a dádiva dada pelo sangue de Athena, os seres humanos não mereciam o sacrifício de sua irmã. E, se fosse para ela morrer em prol da estúpida humanidade, que ele próprio morresse antes. Não estava pronto para ver a irmã, que protegera tanto, morrer em um ato final de desapego.

— Acho que já conversamos demais. - Galahad também não gostava de falar sobre aquilo. Ele ainda não se recuperara da morte de seu amigo Siku, mesmo que já tivesse passado seis anos desde seu sacrifício final – Vou dizer a vocês o que quero que façam aqui.

Lucius e Lilian assentiram e começaram a ouvir atentamente. O tempo poderia ter passado, eles poderiam ser cavaleiros de Ouro, mas sempre ouviam o que Galahad tinha a dizer. Até mesmo Lilian o fazia. Na verdade, Galahad era a única pessoa que Lilian ainda se dignava a ouvir, além do Grande Mestre. Talvez ouvisse Athena, quando esta fosse mais velha. Por enquanto, só dava ideias absurdas à menina, como a que colocara os dois na situação em que se encontravam.

— Quero que vocês mostrem os golpes mais básicos do treinamento dos cavaleiros e que são mais eficientes numa luta corporal. - explicou Galahad – Não usem golpes cósmicos, nem ultrapassem a velocidade do som. Na verdade, acredito que eles não verão nenhum golpe na velocidade do som, então melhor manter-se abaixo disso.

— Não seria bom usar algum golpe cósmico, ao menos uma vez? - questionou Lilian. Claro, ela sempre questionava – Eles devem saber que é necessário dominar o cosmo para conseguir completar o treinamento.

— Podemos deixar isso para uma próxima luta. - disse Galahad – Sophia não é a única que chegou há pouco tempo. Quero que, nesse primeiro momento, eles mantenham o foco em lutas físicas.

Lilian assentiu, mas era óbvio que ela não ficara satisfeita.

— Certo, vamos começar. - Galahad disse primeiro para eles, antes de se voltar aos aspirantes – Crianças, quero que prestem bastante atenção. Ao final da luta, vocês poderão fazer perguntas a Lucius e a Lilian. - e se afastou para a arquibancada, sentou entre Kaiola e Claire e fez um sinal com a cabeça.

A luta começou.

 

*****************

O dia de Sophia não começara bem. Quando acordou, percebeu que não conseguia abrir o olho esquerdo. Não apenas isso: havia sangue em seu travesseiro e seu corpo doía muito. Sentou-se com dificuldade na cama e apalpou o lado esquerdo do rosto. Estava bem inchado.

— Por Athena! - ouviu Shaoran exclamou.

O menino a olhava boquiaberto e Sophia entendeu que sua aparência não devia ser das melhores. E quando Derya a encarou, assustada, percebeu que era muito pior do que imaginava.

— Está tão ruim assim? - perguntou.

Falar doía e sua voz soou um pouco diferente, pois o queixo também estava inchado. Derya então levantou-se, procurou algo em seu baú e estendeu um pequeno espelho para Sophia. Quando se olhou, a menina não se surpreendeu. Na verdade, certa vez entrara numa luta que a deixara muito pior. Devolveu o espelho para Derya.

— Como vocês estão? - quis saber.

— Bem melhor que você. - respondeu o menino.

Sophia riu e depois gemeu. Rir doía.

— Sério, como vocês estão? - insistiu a menina.

Shaoran levantou a camisola, mostrando o roxo na barriga. Derya fez o mesmo e tinha a mesma marca.

— Não foi nada. - disse Shaoran – Já ficamos pior com o treinamento. E podemos esconder isso com nossas roupas. Mas você não poderá esconder o que aconteceu.

— As mestras vão insistir para saber o que aconteceu. - falou Derya – O que você vai dizer?

Sophia pensou um pouco e então respondeu:

— Vou dizer que caí da cama.

A expressão de descrença de Shaoran e Derya mostraram a Sophia o que esperar de Kaiola e Claire.

— Por que não fala o que aconteceu, de verdade? - questionou Shaoran – Depois do que você fez no treinamento, elas acreditariam em você.

Sophia tinha certeza que Kaiola acreditaria nela, mas não queria envolver nenhum adulto naquela situação.

— Não farei isso. - disse para os companheiros – Eu mesma vou resolver essa situação, vocês vão ver.

Shaoran e Derya se entreolharam, preocupados.

— Se vocês não quiserem mais falar comigo, para não se envolverem nisso, eu vou entender. - disse Sophia tentando não mostrar a tristeza que sentia – Não quero colocar vocês em nenhuma encrenca.

— Que bobagem! - exclamou Derya sacudindo a cabeça e pegando seu uniforme – Se você diz que vai dar um jeito no Kosuke, eu acredito em você.

— Eu também acredito. - disse Shaoran – Aquele cosmo que você manifestou ontem… Uau… Acho que ele ficou com medo. Desde quando você sabe fazer aquilo?

— Desde ontem, que eu saiba. - explicou – Antes, eu só sentia umas coisas… Umas sensações…

— Então, ninguém te ensinou? Você despertou o cosmo sozinha? - espantou-se Derya.

Sophia assentiu e aquele movimento fez sua cabeça doer.

Os dois agora a olhavam com um genuíno respeito e Sophia incomodou-se com aquilo.

— Ah, nada de me tratarem diferente por isso, ok? - foi avisando – Senão eu quem não vou querer conversa com os dois!

Apesar das palavras, ela sorria e seus colegas sorriram também.

— Melhor corremos para pegar a água quente. - avisou Derya quando viu que os outros aspirantes acordavam – Talvez uma ducha ajude a diminuir esse inchaço, Sophia.

A água realmente ajudou e a dor diminuiu um pouco. Contudo, Sophia ainda não enxergava do lado esquerdo e se perguntava se seria impedida de treinar naquele dia. Esperava que não. Estava louca para colocar seu plano em ação.

Todavia, quando chegou no refeitório, para a primeira refeição, os aspirantes começaram a cochichar e apontar para o rosto dela. Sophia procurou ignorá-los enquanto colocava bastante comida em sua bandeja. E foi quando Kaiola e Claire viram seu rosto.

— Sophia! - exclamou a amazona de Cobra indo até ela – O que aconteceu?

— Caí da cama. - falou com tranquilidade.

Kaiola a encarou com um olhar de descrença.

— Sophia, você pode confiar em mim. - disse Kaiola seriamente – Diga-me o que aconteceu.

— Eu já disse, mestra. - Sophia mantinha a expressão mais impassível possível – Foi só uma queda…

Claire tomou a frente de Kaiola, com as mãos na cintura.

— Sophia, você precisa nos falar o que aconteceu. É obvio que isso não foi uma queda de cama.

— Mas foi! - Sophia insistiu.

— Nós sabemos que algo aconteceu no alojamento. - lembrou Kaiola – Sentimos um cosmo. Alguém machucou você e você revidou, foi isso? Foi Kosuke?

— Não foi ninguém. - respondeu a menina e não era exatamente mentira. Para ela, Kosuke se convertera em ninguém. Mas era um ninguém que precisava pagar o que fizera para ela. E seria a própria Sophia que daria o troco.

Claire abriu a boca para insistir, mas Kaiola colocou a mão no ombro dela e fez um ‘não’ com a cabeça.

— Vá comer, Sophia. - aconselhou a amazona de Cobra – Depois, verei algum medicamente para colocar nesse seu olho.

A menina assentiu e foi até a mesa onde estavam Shaoran e Derya. Seu olho latejava e a menina colocou o copo com suco gelado no inchaço, dando um suspirou de alívio.

— Você contou às mestras? - quis saber Shaoran.

Sophia negou com a cabeça.

— Já disse, eu vou resolver. - falou resoluta.

— Quando o mestre Galahad chegar, ele vai querer saber o que aconteceu. - avisou Shaoran.

—Talvez ele nem me veja. - desejou Sophia esperançosa.

O desejo de Sophia não foi atendido, pois assim que terminou de comer e estava indo para o campo de treinamento com seus colegas, deu de cara com Galahad na entrada da academia. O cavaleiro de Capricórnio não escondeu o choque ao ver o estado do rosto da menina.

— Por Athena, Sophia! Você se machucou no treinamento de ontem?!

— Eu cai da cama. - disse a menina prontamente.

Galahad piscou os olhos, surpreso com a resposta e a encarou confuso.

— Você caiu da cama. - repetiu como se não tivesse a ouvido direito.

— Sim.

— Então o chão tem um punho bem forte, pois quase consigo ver todos os dedos marcados em seu rosto. - rebateu o cavaleiro, com calma.

— Para o senhor ver, mestre, como até o chão em sua academia é forte e bem treinado. - gracejou a menina com um sorriso meio torto por causa do inchaço.

Em vez de rir, Galahad ficou ainda mais sério.

— Sophia, se alguém andou lhe maltratando…

— Não, senhor. - a menina o cortou – Está tudo bem. Pode confiar em mim.

Os dois se encararam por um momento, a irritação de Galahad bem visível. Por um instante, Sophia ficou tentada a contar a ele o que realmente ocorrera, mas seria como assinar seu atestado de fraqueza. Não correria para contar a um adulto algo que ela sabia poder resolver. Sempre resolvera seus problemas sozinha antes, não começaria a depender dos outros logo quando devia ficar ainda mais forte.

— Tudo bem Sophia, não vou insistir. - disse ele por fim – Mas, se mudar de ideia, já sabe onde estou.

— Sim, mestre. - ela fez uma reverência e saiu, acompanhada de Derya e Shaoran. Galahad a acompanhou com os olhos e depois virou-se.

— Por que você não disse a ele que se machucou no treinamento? - perguntou Derya – Ele lhe deu a desculpa perfeita e você não usou.

— Porque ele acabaria por conversar com as monitoras e saberia que eu menti. - respondeu a menina.

— Sophia, está na cara que você está mentindo. - lembrou Shaoran.

— Mas ninguém pode provar. - rebateu ela – Por enquanto, vamos deixar assim.

Os três então foram treinar, ou, pelo menos, tentar, já que Sophia não conseguia fazer a maior parte dos movimentos porque sua cabeça parecia que ia explodir. Por fim, se relegou a ficar assistindo Shaoran e Derya lutarem, até que Claire chamou a todos para ir até a arena. Os três sentaram em um dos bancos, com Sophia no meio, Derya do seu lado esquerdo e Shaoran do seu lado direito. Quando Galahad apareceu, seguido por Lucius e Lilian, Sophia reconheceu o cavaleiro de Escorpião imediatamente: era o homem de preto que tentava entrar na cabine infantil da roda gigante onde estava Athena. Então ele era um cavaleiro de Ouro, pensou. Naquelas roupas gregas, muito similar a que os aspirantes usavam, ele estava bem menos sombrio que no dia que o vira no parque.

Sophia sabia que fora o cavaleiro de Escorpião que a levara para o Santuário; Galahad lhe contara no da anterior. Porém, não esperava que fosse o mesmo homem de preto do parque, nem esperava que ele a ajudasse com o olho inchado. E não apenas isso, o que quer que ele fizera com seu olho, também ajudara a passar as dores do corpo. E por mais que não tivesse gostado de ser cutucada, era um alívio poder ver claramente e poder acompanhar a luta dele e de Lilian.

O céu havia escurecido e trovejava quando a luta entre o cavaleiro de Escorpião e a amazona de Aquário começou. A primeira coisa que Sophia reparou era em como os movimentos dos dois eram fluídos. Não pareciam que eles tinham nenhum peso no corpo e que seus corpos funcionavam de forma diferente das outras pessoas. Notou também que, apesar de o estilo similar de luta, Lilian era muito mais ofensiva que Lucius. Enquanto o cavaleiro desviava sem nenhuma dificuldade dos golpes da irmã, a amazona atacava e atacava, procurando encurralá-lo. Parecia que dançavam: Lilian partia para a ofensiva, Lucius elegantemente desviava. E assim foi várias vezes, até que o cavaleiro de Escorpião atacou, atingindo a irmã com um soco bem no meio de seu peito.

— Ouch! - ouviu Derya exclamar do seu lado.

Lilian fez uma careta de dor, mas aplicou um golpe com a mão aperta na vertical entre o ombro e o pescoço de Lucius. Ele exclamou de dor, mas retribuiu com outro soco, dessa vez no rosto dela. Lilian defendeu-se com o braço, apenas para Lucius atacá-la com uma rasteira. Lilian acabou caindo e, quando o irmão fez menção de atacá-la, algo aconteceu muito rápido, tão rápido que quase Sophia não viu. A amazona fechou o punho e um golpe brilhando e cintilante saiu dele e atingiu o cavaleiro de Escorpião bem no meio do peito. Ele deu dois passos para trás, aturdido e visivelmente contrariado.

— Por que ele recuou? - perguntou Shaoran sem entender.

Sophia o olhou, confusa.

— Você não viu? - perguntou.

— Viu o quê? - quis saber o menino.

Sophia então olhou para Derya, mas a menina também balançou a cabeça em negativa. Será que tinha visto coisas?, se perguntou.

Do outro lado da arena, Galahad balançou a cabeça e colocou a mão no rosto. Lilian fizera justamente o que ele pedira para não fazer. Usou um ataque cósmico e agora todos os aspirantes ficaram sem entender por que Lucius recuara de repente, dando tempo de ela levantar e contra atacar.

— Eu devia fazer como Siku fazia. - resmungou o cavaleiro de Capricórnio – Para fazer com que Lilian cumprisse as ordens, deveria mandar ela NÃO fazer algo e aguardar.

— Ela deixou os aspirantes confusos. - comentou Claire.

— Quem não fica confuso perto de Lilian? - completou Kaiola.

Apesar de Lucius ter sido pego de surpresa, a luta não parou e eles continuaram atacando, recuando, revidando, até Galahad se dar por satisfeito. Assim que o cavaleiro de Capricórnio se levantou, Lucius e Lilian pararam de se atacar e aguardaram.

— Bem, crianças, espero que tenham prestado muita atenção à luta. - disse Galahad indo para o meio da arena – Alguma pergunta?

Os aspirantes começaram a falar, todos ao mesmo tempo, empolgados com a exibição. Kaiola e Claire interviram, organizando as perguntas enquanto Lucius e Lilian se reversavam para responder. Na verdade, a amazona de Aquário respondeu quase todas, o que agradou a Lucius. Preferia apenas observar os aspirantes e deixar a irmã fazer o que ela mais gostava: falar sobre seus conhecimentos. Ninguém perguntou sobre o golpe de Lilian, então Lucius entendeu que eles realmente não tinham visto.

Apesar do tempo está piorando, ninguém fez menção de ir para dentro da academia. Tempo ruim não era motivo para parar os treinos, muito pelo contrário; se exercitar em condições adversas era incentivado, pois melhorava o desempenho dos aspirantes.

— Ei, Gal! - chamou Lilian depois que as perguntas cessaram – Que tal os aspirantes fazerem uma exibição para nós?

— É uma boa ideia, Lilian. - concordou Galahad – Eles podem mostrar se aprenderam algo assistindo vocês dois. - e se dirigindo aos aspirantes, perguntou – Alguém se habilita?

Ninguém falou nada. Os aspirantes estavam temerosos de terem que lutar na frente de três cavaleiros de Ouro.

— Ah, crianças, vamos lá! - incentivou Lilian – Nós já fomos aspirantes como vocês. Não precisam ter vergonha.

Sophia decidiu que aquele seria o momento perfeito para fazer o que estava planejando. Seu olho já estava totalmente bom e ela não sentia nenhuma dor no corpo. Não precisou nem perguntar aos seus amigos para saber que não havia mais nenhum inchaço em seu rosto; a técnica de Lucius a deixara nova em folha e foi por isso que ela levantou a mão, depois da fala de Lilian.

— Ah, Sophia não é? - perguntou Lilian. Quando a menina assentiu, a amazona abriu um sorriso – Acho que vou gostar de te ver lutar.

Galahad estava surpreso. Depois que soubera o que acontecera no dia anterior, achou que demoraria um bom tempo para que Sophia concordasse em participar de uma exibição. Talvez tivesse subestimado a menina.

— Muito bem, Sophia. - falou Galahad fazendo um gesto para que ela fosse para o centro da arena – Quem quer lutar com Sophia?

— Eu, mestre. - falou prontamente Kosuke levantando a mão.

Sophia sorriu no mesmo instante. Ele mordera a isca, exatamente como ela imaginava.

— Não sei se isso é uma boa ideia, mestre Galahad. - falou Claire, preocupada – Os dois já lutaram ontem e… Bem, a luta não terminou bem.

— Eu prometo que não haverá chutes no saco dessa vez. - garantiu Sophia angelical.

A face de Kosuke ficou vermelha de raiva quando alguns aspirantes deram risadinhas. Porém, o olhar rígido de Galahad calou a todos.

— Muito bem, vamos ver como será dessa vez. - falou ele.

Os cavaleiros de Ouro se sentaram, para observar a luta. Lucius percebeu que Sophia estava confiante e satisfeita. Foi então que entendeu que aquele menino, Kosuke, fora o responsável pelo olho inchado dela. E não foi só ele quem percebeu isso. Todos os cavaleiros chegaram a essa mesma conclusão.

— Ah, Kosuke… - murmurou Galahad – Achei que você tivesse melhorado…

— Então ele costuma aprontar. - falou Lilian de braços cruzados observando as duas crianças se encarando.

— Sim, e eu intervi há algum tempo. - comentou o cavaleiro de Capricórnio – Mas parece que ele se sentiu à vontade para fazer de novo.

Um trovão ressoou e foi como a permissão que os dois aspirantes precisavam para começar a luta. Kosuke, como no dia anterior, partiu para cima de Sophia, que novamente desviou. Mas, daquela vez, o menino estava preparado e, quando a menina deu um passo para o lado, ele a chutou no mesmo instante. Sophia percebeu o movimento a tempo de erguer os braços de bloquear o ataque, mas Kosuke a atacou, dessa vez com um soco vindo pelo lado oposto ao qual a menina defendia. Sophia foi atingida, mas revidou no mesmo instante, conseguindo atingir Kosuke, que se desequilibrou. Os dois então pularam para trás e se mediram. Naquele instante, a chuva começou a cair.

Ninguém dizia nada e o único barulho era da chuva. Os dois aspirantes se encaravam, cada um numa posição de batalha e aquela luta há muito deixara de ser um treinamento. Os dois lutavam por seu orgulho. Kosuke atacou de novo e daquela vez Sophia não recuou. Começaram a tentar um acertar o outro, enquanto bloqueavam os ataques dele. Lucius estava impressionado. Sophia chegara no dia anterior e já lutava de igual para igual com um aspirante experiente. Ela realmente devia ter sofrido muito nas ruas, para aprender a se defender daquela forma.

A tenacidade de Sophia estava irritando muito Kosuke e os golpes deles começaram a ser mais violentos e mais precisos, fruto da raiva do rapaz. Sophia era mais rápida, mas o chão molhado lhe deixava insegura de realizar movimentos bruscos. Se continuasse assim, a força bruta de Kosuke, que era maior que a dela, a nocautearia.

Decidiu que aquele era o momento de usar sua verdadeira força.

Em um movimento mais incisivo, Kosuke acertou Sophia no estômago. A menina encolheu-se de dor e ele sorriu. Contudo, era exatamente o que Sophia queria. Ela precisava de tempo para concentrar o cosmo, pois ainda não conseguia usá-lo naturalmente, como Lilian o fizera. Apenas quando protegera Athena havia conseguido usá-lo, no calor do momento e agora, precisava usá-lo intencionalmente. Kosuke ainda estava com o punho na barriga dela quando sentiu a mesma energia do dia anterior. Tentando impedir o que viria a seguir, desferiu uma série de socos no estômago de Sophia, na esperança de esmaecer o cosmo dela, mas foi em vão. Apesar da dor que sentia, Sophia juntou cosmo o suficiente para aplicar um único soco em Kosuke, um soco brilhante, que saiu de sua mão e atingiu Kosuke bem no peito, com força o suficiente para derrubá-lo.

— Tem certeza que ela nunca teve treinamento? - perguntou Lucius impressionado com o golpe de Sophia.

— Absoluta. - falou Galahad que, apesar de já esperar algo do tipo de Sophia, vê-la usar o cosmo daquela forma o deixou extasiado.

— Por que essa menina não nasceu em Aquário, hein? - Lilian estava chateada – Eu adoraria uma aprendiz que eu não precisasse perder tempo ensinando a despertar o cosmo!

Enquanto só cavaleiros de ouro estavam surpresos com aquele cosmo, Kaiola e Claire se entreolharam e pensaram a mesma coisa. Aquele fora o cosmo que sentiram no dia anterior.

Caído em meio ao chão molhado, Kosuke tentou se levantar. Sophia então assumiu uma postura de luta e voltou a concentrar, agora com um pouco mais de dificuldade, o cosmo no punho. Contudo, nem precisou usá-lo. O rapaz voltou a cair e, quando tentou se levantar novamente, não conseguiu. Galahad então, se levantou.

— A vitória é de Sophia. - anunciou, antes de completar – Você também lutou muito bem, Kosuke. Os dois estão de parabéns.

A chuva agora estava bem mais forte e Galahad achou melhor encerrar o treinamento por hora. A manhã já havia sido bem produtiva.

— Vamos parar até a chuva cessar. - informou a todos – Claire, leve as crianças para dentro. Crianças, troquem de roupa e tomem algo quente. Kaiola, veja se Kosuke precisa de algum cuidado médico. - e se voltando para Lucius e Lilian, perguntou – Tomam um chá comigo?

— Claro! - aceitou Lilian – Não estou a fim de subir todas as casas debaixo dessa chuva! Já imaginou passar pela casa de Virgem pingando água? Dharma nos matará!

Lucius concordou e todos se encaminharam para dentro do prédio. Enquanto os aspirantes corriam para se secar e trocar de roupa, os cavaleiros de ouro tomaram o caminho da sala de Galahad, quando ouviram uma voz:

— Senhor Lucius?

Lucius se voltou e viu Sophia, parada em pé no corredor. A menina estava encharcada e o cabelo cacheado perdera todo seu volume, fazendo Sophia parecer que encolhera. Vê-la daquele jeito fez Lucius lembrar novamente da atitude protetora de Athena com relação à menina.

— Posso falar um minuto com o senhor? - perguntou ela.

O cavaleiro assentiu e voltou-se parta Galahad e Lilian:

— Já me encontro com vocês.

Galahad e Lilian continuaram seu caminho e Lucius ficou sozinho com Sophia.

— Pois não? - perguntou ele.

Sophia hesitou por um momento e então falou:

— Eu gostaria de agradecer. Primeiro, obrigada por tratar do meu olho. E também, o mestre Galahad me disse que foi o senhor que me trouxe para o Santuário. Obrigada mais uma vez.

— Não há necessidade de agradecimento. - disse ele – Tratar seu olho foi apenas a coisa certa a fazer. E, com relação a trazer você aqui, foi Athena que me pediu para fazer e eu apenas fiz. Agradeça a ela.

Talvez tivesse soado rude demais, pensou Lucius, mas Sophia não ficou nem um pouco ofendida, apenas comentou:

— Você é bem chato, hein?

Lucius estava acostumado a ser tratado com muito respeito pelas crianças que habitavam o Santuário, então a atitude de Sophia o chocou um pouco. Ficou se perguntando se o comentário dela fora por falta de conhecimento de sua posição ou apenas porque ela era muito atrevida. Fosse o que fosse, aquilo acabou arrancando um pequeno sorriso do cavaleiro de Escorpião.

— Eu ouço isso com bastante frequência. - comentou.

— Então você devia simplesmente aceitar os agradecimentos das pessoas. - retrucou a menina – Bem, eu já agradeci, com licença. - e fez menção de sair.

— Espere. - falou Lucius e Sophia parou – Também lhe devo um agradecimento. - e vendo a confusão no olhar da menina, completou – Você lutou por Athena, mesmo sem ter ideia do que fazia. Agiu quando eu falhei. Agradeço por isso.

Sophia ficou extremamente envergonhada pela fala do cavaleiro e desviou a vista para o chão.

— Obrigada, mas… Eu só defendi uma amiga. Só isso. - o rosto dela estava quente.

— Continue pensando em Athena assim. - pediu ele – Cavaleiros, Athena tem muitos. Amigos… Nem tantos.

— Como ela está? - perguntou, ansiosa.

— Está bem, não se preocupe. - Lucius não via Athena há dois dias, mas sabia que ela estava segura.

Sophia sorriu.

— Que bom. - disse, aliviada – Espero poder visitá-la em breve. O Grande Mestre disse que eu podia.

— Depois de hoje, acho que o Gal não vai se importar em te liberar um dia. - comentou – Você luta bem, Sophia, mas precisa refinar seu estilo e aprender a controlar seu cosmos.

— É, eu sei… - ela fechou o punho e o olhou – Quero poder usar meu poder facilmente, como a amazona de Aquário fez hoje. - e o encarou antes de perguntar – Por que você não fez o mesmo que ela?

— Você viu? - perguntou Lucius surpreso – Viu quando Lilian usou o golpe?

A menina estranhou a pergunta.

— Por quê? Não era para ter visto? - perguntou na defensiva.

“Não, não era.”, pensou Lucius. Mas, decidiu falar de outra forma.

— A maioria dos aspirantes não prestam atenção a esses detalhes. - desconversou – E Lilian nem devia ter usado. Gal pediu que usássemos apenas golpes físicos, por isso não usei. - ele deu de ombros – Mas minha irmã nunca seguiu a cartilha.

— Nossa, ela deve ter tido muitos problemas aqui. - comentou Sophia passando a mão na orelha, ao lembrar do dia anterior.

— Teve muitos e me causou mais ainda. - ele sacudiu a cabeça, diante das lembranças.

Os dois ficaram em silêncio e Sophia ficou curiosa para perguntar quais problemas ele tivera ali, mas achou que seria muita invasão da privacidade do cavaleiro. Satisfeita que falara o que queria, fez uma reverência e disse:

— Vou voltar para o alojamento. Obrigada mais uma vez. - e, sem esperar resposta, saiu.

Lucius ficou olhando para a poça de água deixada por Sophia e se perguntou que tipo de amazona ela se tornaria. Uma ideia surgiu em sua cabeça, mas ele a afugentou no mesmo instante. Porém, a ideia teimou em voltar enquanto tomava chá com sua irmã e seu antigo professor e Lucius decidiu que a levaria em consideração.

Haveria muito em que pensar quando voltasse para a casa de Escorpião.

 

 


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