A Égide de Athena escrita por Joy Black


Capítulo 3
3. Despertar


Notas iniciais do capítulo

Bora ficar em casa, meu povo!! Aproveitem a quarentena para ler e comentar os caps das fics que vcs gostam! Vamos prestigiar os autores! E não esqueçam que, além dessa, tenho mais duas histórias. Uma do World of Warcraft "Herdeiros da Guerra" e outra de Naruto "O Tempo e a Esperança". E vamos ter esperança, que isso tudo vai passar! ♥



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Apesar do que diziam os boatos, nem toda criança pega pelos caçadores de crianças tinha seus órgãos retirados e vendidos em troca de membros biônicos. Mesmo entre esses inescrupulosos criminosos havia aqueles que entendiam que algumas exceções precisavam ser feitas, em prol de facilitar seu trabalho. Por isso algumas crianças, aquelas com tendências à crueldade e inescrupulosas desde cedo, eram treinadas para ajudar no serviço.

O que essas crianças faziam era bem simples: afastar alvos de seus pais e acompanhantes. Essa ideia veio aos caçadores quando estes viram que uma criança confiava mais facilmente em outra criança do que em um adulto. E duas crianças conversando chamavam menos atenção do que um adulto tentando uma aproximação. O método era simples e eficaz: uma distração era acionada, para os pais ou acompanhantes. No mesmo instante, uma criança aparecia para a criança-alvo, chorando, dizendo que estava sem os pais e com medo. Quando a criança-alvo dizia que ia chamar os pais e os mesmos estavam distraídos, a criança-caçadora se mostrava mais chorosa e apontava para algum lugar, pedindo companhia para ir até lá. A criança-alvo a acompanhava, na maioria das vezes.

Fora assim que Athena fora afastada de seus cavaleiros.

Na verdade, foi até mais fácil tirá-la de perto dos cavaleiros do que tirar uma criança de perto dos pais. Primeiro, porque o coração bom da deusa jamais negaria ajuda. Mesmo que fosse um adulto, ela atenderia, afinal, era sua missão proteger a humanidade. Segundo, a proximidade dos cavaleiros a deixou confiante que estava sendo protegida, por isso seguiu o menino, de uns seis anos, choroso e assustado, sem pestanejar. Fora levada até uma parte escura e vazia da festa, um beco estreito e mal iluminado, carregando o Pégaso pequeno de pelúcia em uma das mãos. Quando deu por si estava rodeada de adultos desconhecidos, cheios de membros biônicos.

— Essa foi fácil! - disse o menino parando de chorar no mesmo instante que vira os homens – Ela é bem bobinha!

Os adultos ao redor riram e Athena os olhou, intrigada.

— São seus pais? - perguntou inocentemente.

Houve um momento de silêncio e então os adultos caíram na risada.

— Essa mercadoria é da boa! - exclamou um deles encarando a menina – Vejam como é bem cuidada!

— Ah, o Pégaso não é mercadoria. - reclamou Athena olhando para o brinquedo – É meu cavaleiro mais amado.

Os risos pararam.

— Será que ela é retardada? - perguntou um deles – Nem está com medo…

— Desde que os órgãos estejam saudáveis, não me importa o cérebro dela. - e se aproximando da menina ordenou – Venha comigo!

— Não posso. - respondeu singelamente – Tenho que voltar para meus cavaleiros. Eles vão ficar preocupados.

Mais uma rodada de risadas.

— Você não vai pra lugar nenhum que não seja o saco, menininha! - e exibiu um saco grande de tecido – Se vier quietinha, não vai apanhar muito.

Foi só então que Athena percebeu que estava com pessoas muito ruins ao seu redor e que havia sido enganada.

— Achei que você precisasse de ajuda. - disse para a criança que a levara ali, em tom de mágoa.

O menino sentiu algo se mexer dentro dele, mas nada falou.

— Entre logo, menina, não temos tempo. - e fez menção de segurar o braço dela.

Athena lhe lançou um olhar duro, que fez o homem recuar por um momento.

— O que foi? - perguntou um outro.

O homem não sabia como explicar que algo emanava dos olhos da menina e que o deixava sem ação. Titubeou e percebeu o que precisava ser feito.

— Tragam a injeção. Vamos nocautear ela. - disse, evitando olhar para Athena.

— Para quê? - perguntou outro – Ela nem tá chorando!

— Só traga!

A injeção foi imediatamente para as mãos dele e, evitando olhar nos olhos da menina, ele levantou a injeção e desceu em direção ao ombro dela.

— Nem pensar! - gritou uma voz.

Um pequeno pé calçado com um tênis sujo acertou o nariz do homem, que soltou um grito abafado, caindo de costas no chão e derrubando a injeção. Os outros ficaram sem entender por um momento, até que uma menina, vestida com roupas muito velhas e de cabelos cacheados cheios e rebeldes, aterrissou em frente a Athena e os encarou com raiva.

— Ninguém toca nela! - avisou a recém-chegada.

— Sophia! - exclamou Athena, sorrindo.

O menino que atraíra Athena saiu correndo, mas os adultos ficaram no mesmo lugar.

— Ei, essa não é a menina que tentamos pegar há meses? - perguntou um deles.

— Essa mesma! Ela sempre foge. - respondeu outro.

— Que bom que ela veio tão voluntariamente a nós dessa vez. - riu-se um terceiro.

O homem que tiver ao nariz esmagado, levantou-se, o sangue escorrendo por seu rosto. Encarou a sua agressora, furioso.

— Peguem-na! - gritou, tateando ao redor, em busca da injeção.

Os homens avançaram e Sophia deu um sorriso sapeca. Deixou que eles chegassem perto e esmurrou um no abdômen, chutou o saco de outro e deu uma cabeça no terceiro. Quando os três caíram no chão, pegou a mão de Athena e gritou:

— Corre!

As duas meninas saíram correndo pelas ruelas, mas logo eram perseguidas. Chegaram na avenida principal, a da procissão, e Sophia percebeu que poderiam ser encurraladas ali. Tinha muita gente por perto e seria fácil se perderem uma da outra.

— Sobe nas minhas costas! - ordenou.

— O quê? - perguntou Athena, confusa.

— Sobe logo nas minhas costas! Eles estão vindo!

Rapidamente, Athena subiu nas costas de Sophia e a segurou com força, ainda apertando o Pégaso de pelúcia nas mãos. Sophia se concentrou e mandou o ‘algo’ dela para os pés e pulou. Pulou bem alto e, à medida que foi caindo, começou a usar os telhados das casas próximas para pegar impulso e continuar pulando. As pessoas não achavam isso anormal, pois muitos membros biônicos davam a habilidade de saltar distâncias. E o problema era aquele. Os caçadores de crianças tinham membros biônicos e começaram a persegui-las na mesma velocidade.

— Merda! - exclamou Sophia.

— Para lá! - apontou Athena – Meus cavaleiros estão lá!

Usualmente Sophia não atendia a ninguém, mas foi impossível não fazer o que Athena lhe pedia. Mudou a direção e pulou entre um lado da rua e outro, a maior distância até então. Porém, os caçadores tinham visto seu movimento e um deles já as esperava do outro lado. Assim que as meninas pousaram no telhado, o homem apontou o braço, que se transformou em um canhão e atirou. Por pouco Sophia não conseguia escapar, mas pulou bem na hora e o tiro abriu um buraco no teto da casa. Assustada com o barulho, Athena deixou cair o Pégaso de pelúcia.

Um segundo caçador apareceu e dessa vez Sophia não conseguiu esquivar. Levou uma explosão de plasma bem no estômago, que a atirou de volta ao chão. Apesar da dor, a menina conseguiu aterrissar razoavelmente bem, impedindo Athena de se machucar. O problema era que os caçadores chamaram reforços. Havia pelo menos seis rodeando-as.

— Eu vou distraí-los e você foge. - disse Sophia colocando Athena no chão.

— Sophia… - murmurou – Não posso te deixar aqui.

— Apenas faça, ok? Eles iam me pegar um dia de qualquer jeito mesmo. - e dando de ombros, acrescentou – Espero que não peguem a única amiga que fiz na vida. - e sorriu para ela.

Sem esperar uma resposta de Athena, atacou. Concentrou todo aquele ‘algo’ dentro dela e foi direto no primeiro. Seu punho brilhou e conseguiu derrubá-lo com facilidade. Dois outros a ladearam e a menina concentrou novamente o ‘algo’, dessa vez em maior quantidade e conseguiu que seu punho se dividisse em dois e os derrubassem sem que ela os tocasse.

— Sophia, cuidado!

O aviso de Athena chegou tarde. Um dos homens, o do braço biônico, usou a arma de plasma e atingiu a garota em cheio. Assim que o Sophia se desequilibrou, outro homem se adiantou e a socou repetidas vezes, até que a menina caiu no chão, as dores a impossibilitando de revidar. O líder deles, o que Sophia quebrara o nariz, apareceu segurando a injeção que estava destinada a Athena. Cambaleando, Sophia se levantou e o atacou novamente, conseguindo atingi-lo. Todavia, na hora que seu punho tocou a barriga dele, percebeu que esta era de metal. Titânio, provavelmente. O homem sorriu e aplicou a injeção na menina.

Sophia pulou para trás, mas sua visão embaçou. Tudo começou a ficar desfocado e, sem forças nas pernas, ela desabou, aos pés de Athena.

— Sophia! - Athena se abaixou e segurou Sophia.

Quase desfalecida por causa da injeção, Sophia viu o homem apontar o braço-canhão para ela e Athena. Eles iriam eletrocutá-las? Ou decidiram matá-las? Com a mente enuviada, Sophia sabia que não conseguiria fugir. Queria gritar para Athena correr, que a deixasse lá, mas seus lábios estavam dormentes.

“Fuja…”, murmurou com a mente, antes de tudo apagar.

 

************************

Shun sempre fora conhecido por sua paciência e seu equilíbrio. Poucas pessoas sabiam o quão perigoso era despertar a ira do antigo cavaleiro de Andrômeda. Infelizmente, os quatro cavaleiros ajoelhados a sua frente sabiam exatamente o que esperar e só aguardavam.

— Athena sumiu. - disse Shun, de pé, em frente a eles, com as mãos nas costas – Sumiu, enquanto estava na responsabilidade de vocês. Quatro cavaleiros de ouro.

A decepção em sua voz era evidente.

— Eu assumo toda a responsabilidade pelo que aconteceu. - disse Lucius, a cabeça baixa, encarando o chão – Eu a deixei sozinha. Eu mereço qualquer punição que for escolhida pelo Grande Mestre

— Não, meu senhor, a culpa foi minha. - falou Lorenzo, as palavras cheias de dor – Se não fosse pela minha distração, isso não teria acontecido. Eu falhei, falhei gravemente como cavaleiro, envergonho essa armadura que visto! - ele se calou, fechando os olhos, as lágrimas em seus olhos – Por favor, puna a mim, Grande Mestre!

— Devo discordar desses dois, Grande Mestre. - a voz de Lilian estava contida, bem diferente do usual – Eu tirei a atenção de Lorenzo. Eu deixei meu irmão desguarnecido. Eu sou a culpada.

O Grande Mestre os ouviu, sem olhar para nenhum deles. Depois de alguns instantes, chamou.

— Saphyra. Levante-se.

A amazona de Libra levantou-se, a vergonha estampada em sua face.

— De quem é a culpa? - quis saber.

— De nós quatro, Mestre. - da mesma forma que podia fazer as pessoas disserem a verdade, Saphyra era comprometida por sua habilidade a também responder com honestidade – Nós quatro devíamos estar de olhos em Athena. Nós quatro nos deixamos levar por outras coisas que não fosse a segurança dela. Nós quatro falhamos. Nós quatro merecemos a punição.

Shun finalmente os encarou, a máscara cobrindo sua expressão desapontada, mas o ar ao seu redor estalava, mostrando quanto aquela situação o afetara. Ele fitou vagarosamente os cavaleiros, analisando o rosto de todos eles.

— Vocês três, levantem-se. - ordenou.

Os que ainda estavam ajoelhados se levantaram e ficaram lado a lado.

— Athena discorda de vocês. - disse ele por fim.

Os quatro cavaleiros o encararam, confusos.

— Ela me garantiu que vocês – e apontou para Lorenzo e Lilian – estavam decidindo algo pelo qual ela pedira, enquanto você – apontou para Saphyra – mediava uma solução. E você, Lucius, correu para recuperar algo que alguém havia tomado de Athena. - Shun suspirou – Se a situação se resumisse a isso, eu os puniria de forma exemplar, para que nenhum outro cavaleiro ou amazona sequer pensasse em descumprir com seus deveres. - disse com firmeza – Porém, Athena admitiu que ela desobedeceu a você, Lucius, quando atendeu ao chamado de outra pessoa. Você a alertou para ficar junto aos outros e ela não o fez. Ela se colocou em risco. São as palavras dela.

— Athena é uma criança de bom coração, Mestre. - começou Lucius, emocionado com a atitude da deusa – Devíamos ter previsto que ela poderia ir em socorro de alguém. Não prevemos que ela poderia ser afastada de nós como esse pretexto e deveríamos ter feito! Deveríamos…

— Mas não fizeram. - Cortou o Mestre – Nem vocês, nem mesmo eu, acreditamos que alguém poderia usar uma criança para mentir, atrair Athena e pô-la em risco. Por sorte, eram apenas humanos comuns; cruéis, mas mundanos. - Shun caminhou até seu trono e sentou-se – Conte-me como você a encontrou, Lucius.

E o cavaleiro contou.

Primeiro, falou sobre o susto ao darem por falta de Athena. Todos eles ficaram assustados. Procuraram rapidamente ao redor, mas logo perceberam que ela não estava nas proximidades. Lucius procurou o cosmo de Athena e percebeu que ele se deslocava, em outra direção, junto a um outro cosmos, mais fraco, mas que parecia ser aliado. Lucius ordenou que os outros três cavaleiros juntassem o máximo possível dos demais cavaleiros que estavam dispersos pela festa e o encontrassem quando o fizessem. E Saphyra fizera questão de levar o Pégaso grande de pelúcia de Athena, pois ela ficaria chateada se o abandonassem.

Lucius, então, foi na direção em que o cosmo de Athena irradiava. Quando estava se movendo viu, de relance, a outra pelúcia que a menina ganhara, a do Pégaso pequeno. Parou, recolheu o bichinho e voltou a se mover. Quando o cavaleiro de Escorpião finalmente chegou onde estava Athena, o cosmos menor, que estava próximo a ela, se esvanecia lentamente. Viu quando a pequena deusa se debruçou sobre outra menina, emanando seu próprio cosmos, para intimidar o homem que apontava uma arma mundana para as duas. Era certo que a arma não machucaria Athena, mas faria mal à outra criança.

Todavia, o homem que apontara a arma, não atirou.

— O que foi? - perguntou um dos homens presentes na cena – Atire!

— N-não con-sigo… - gaguejou o que apontava a arma.

O outro olhou ao redor e viu que Athena estava calma e os encarava, placidamente enquanto ao seu redor uma luz dourada se agitava; era a única pista da irritação da menina.

— Vocês não vão machucar Sophia! - exclamou, destemida.

— O que diabos é isso?! - gritou um deles.

A maioria dos homens estava paralisada, e Lucius parou, observando. Queria ir logo salvar Athena, mas ficou encantado ao ver uma demonstração do poder da menina. Apesar da paralisia quase geral, um dos homens conseguiu erguer uma arma e, juntando todas suas forças, atirou.

Lucius se colocara na frente no exato momento e, sem precisar mover um dedo, empurrou o tiro para o lado, que atingiu uma das paredes do beco escuro.

— Seu desgraçado! - gritou um deles.

Porém, foi tudo que conseguiu fazer. Sem sair do lugar, ou precisar se mexer, Lucius derrubou a todos. Não apenas isso, injetara veneno mortal neles.

— Vocês vão morrer. - dissera o cavaleiro de Escorpião – Lenta e dolorosamente, por terem se levantado contra Athena.

Dores excruciantes tomaram os corpos dos homens, que começaram a gritar de dor, gritos esses que foram encobertos pela queima de fogos, que marcava o fim da procissão da estátua de Athena até o Pathernon. Já era noite e eles estavam muito atrasados.

— Athena… - murmurou Lucius se abaixando.

Mas Athena não estava prestando atenção nele. Estava com a cabeça da menina humana em seu colo.

— Seu Pégaso. - dissera o cavaleiro entregando a pelúcia que ela deixara cair.

Athena recebeu a pelúcia e a segurou firme em uma mão, enquanto na outra alisava o cabelo de Sophia. E bastou um olhar da menina para que Lucius soubesse o que precisava ser feito.

— Sim, Athena. - falou.

Shun ouviu o relato, o cotovelo apoiando no trono e a mão na boca da máscara. Após alguns instantes de silêncio, disse:

— A menina… Você a trouxe a pedido de Athena.

— Sim, Mestre. - respondeu Lucius.

— Alguém com o cosmo tão desenvolvido sem nenhum treinamento… - continuou o Shun – É raro. Tão raro quanto ver Athena tão apegada a alguém em tão pouco tempo.

— O que pretende fazer com a menina, Mestre? - perguntou Saphyra.

— Decidirei quando ela acordar. - e, se levantando, ordenou – Saiam. Pensem no que fizeram e voltem para suas casas. Vocês não poderão falar com Athena até que eu resolva o contrário.

Os quatro cavaleiros se curvaram, submissos, e saíram da presença do Grande Mestre. Shun suspirou. Detestava fazer aquele tipo de coisa, mas era necessário. Foi então para o templo, onde estava Athena e a misteriosa menina.

 

******************

Sophia acordou lentamente, a mente ainda entorpecida. Mexeu a cabeça e percebeu que o pescoço doía. Onde estava? Devia ser a torre onde dormia… Olhou para o lado e afastou-se rapidamente, assustada. Havia algo do lado dela. Levou alguns segundos para perceber que era um imenso cavalo alado de pelúcia. O que aquilo fazia ali?

O bicho de pelúcia não era a única coisa estranha. A cama era imensa, com colunas de dossel de mármore, bem diferente do chão onde dormia. O colchão era tão confortável que Sophia achou que estava deitada em uma nuvem. E havia um perfume doce no ar, que ela não soube distinguir. Mas era coisa mais perfumada que já sentira.

“Athena…”, pensou lembrando do dia anterior. “Onde ela está? Espero que tenha conseguido fugir…”

Ainda sem entender o que estava acontecendo, jogou os lençóis para o lado e se levantou. Percebeu que não usava sua roupa, mas um vestido branco, como o que os gregos antigos usavam. A roupa clara contrastava com sua pele escura, de um jeito tão bonito que a deixou encantada por um momento. Depois, seu coração disparou. Tinha sido capturada pelos caçadores? Era isso? Por isso estava em um local tão estranho? Mas, se eram os caçadores, por que ainda estava viva? Apalpou-se. Todos os membros no lugar, nenhum corte indicando uma cirurgia. Estava intacta. Aquilo só tornava as coisas ainda mais estranhas.

Achou suas roupas em um canto e elas destoavam totalmente do resto do ambiente, pois parecia ter acordado em um dos contos de Homero. As roupas estavam limpas e perfumadas e se surpreendeu ao ver que seu tênis era verde. Há muito tempo esquecera a cor dele. Pensou em vesti-las, mas tinha medo que, ao pôr aquela roupa, acordasse do sonho e estivesse em uma sala de cirurgia, tendo seus órgãos removidos. Por isso, continuou com as vestes gregas brancas.

Andou pelo quarto, seus pés descalços sentindo o frio do mármore do chão, e foi até uma porta imensa e dourada. Pensou que ela estivesse trancada, mas não estava. Abriu-se facilmente e Sophia a empurrou, o coração aos pulos, temendo e ao mesmo tempo ansiosa, para saber o que tinha por trás dela.

Havia um salão imenso, a decoração da Grécia Antiga ainda mais evidente. Caminhou por entre os móveis e então ouviu passos se aproximando. Procurou um local para se esconder e não achou nenhum. Restou para Sophia se encolher atrás de uma coluna.

— Não precisa ter medo. - disse uma voz – Ninguém aqui lhe fará mal.

Sophia espiou, relutantemente, ainda escondida na pilastra. Era um homem grande, usando o que parecia ser um exoesqueleto dourado e com um capacete embaixo do braço. Ele tinha pele branca, pálida, cabelos negros, mas já ficando grisalhos, uma espessa barba, olhos verdes brilhosos e falava com um sotaque inglês.

— Sou Galahad, cavaleiro de Capricórnio. - disse com um sorriso discreto – Venha, Athena está esperando-a.

A menção à menina do parque fez Sophia sair de seu esconderijo.

— Sophia, certo? – perguntou ele e Sophia acenou que sim com a cabeça – Acompanhe-me. - e apontou para o lugar de onde viera.

O homem irradiava uma calma imensa. Seu rosto era só tranquilidade e, por sentir-se à vontade e segura, Sophia apontou para o traje dele e perguntou:

— Isso é um exoesqueleto?

Galahad olhou para baixo e sorriu.

— Não. É minha armadura de ouro.

—Armadura? - repetiu sem entender – É de ouro mesmo?

O cavaleiro não conseguiu conter a risada diante da surpresa da menina.

— Sim, é de ouro. Pode conferir.

Sophia se aproximou com cautela, mas encantada com o brilho dourado. Chegou perto de Galahad, mais perto do que jamais chegara em anos de um adulto e encarou a armadura. Pensou ter ouvido um zumbido mecânico, mas logo percebeu que estava enganada e pulou de susto.

— Ela tá viva! - exclamou.

— Sim, está. - Galahad encantou-se com a menina naquele instante – Você conseguiu sentir o pulsar dela?

Sophia afirmou com a cabeça.

— É como um coração gigante batendo. - falou a menina.

O sorriso do cavaleiro de Capricórnio aumentou.

— Poucas pessoas conseguem sentir a pulsação das armaduras sem nenhum treinamento. - ele acenou com a cabeça, impressionado – O que ouvi sobre você é verdade.

— Quem tava falando de mim? - perguntou, na defensiva.

— Não era nada ruim, eu garanto. - riu-se o cavaleiro – Agora vamos, Athena a aguarda.

Sem saber porque confiava naquele homem, Sophia o seguiu pelo belo local, até que chegaram a uma varanda, de onde ela podia ver uma paisagem completamente estranha para ela: não havia prédios, nem carros voadores, nada disso. O que via era uma infinidade de casinhas; era como olhar para o passado através de uma tela gigante. Daquelas casas, as que mais lhe chamara a atenção foram algumas casas totalmente brancas, feitas de mármore, que reluziam à luz do sol e que estavam dispostas como se formassem um caminho na direção de onde se encontrava. Contou rapidamente. Eram doze.

— Sophia! - ouviu uma voz alegre a chamar.

Era Athena. A menina estava usando roupas bem diferentes do dia anterior. Eram vestes gregas, como a que Sophia usava, mas muito mais exuberantes e com acessórios dourados. O cabelo de Athena estava preso em um rabo de cavalo e balançava elegantemente enquanto corria em sua direção, lhe dando um abraço apertado.

— Que bom que você está bem! - disse Athena ainda a abraçando – Eu fiquei preocupada que você não acordava, mas aí chamamos Agatha e ela disse que foi uma droga que lhe deram, aí ela te lhe deu um remédio e ficou tudo bem!

— Agatha? - foi o que conseguiu falar.

— Sim, Agatha! - e soltando-a, disse – Está com fome? - e sem esperar resposta, completou – Claro que está, venha! - e saiu puxando-a.

Galahad seguiu as meninas, pensativo. Ouvira sobre a história sobre o dia anterior, mas achou que pudesse ser exagero. Agora, ao ver Sophia e sentir seu cosmos, entendeu porque o Mestre o mandara para ver a menina e levá-la ao encontro de Athena.

Alheias às determinações do Santuário, as meninas seguiram até uma imensa varanda onde, para Sophia, o sol brilhava mais do que na cidade. Havia uma mesa cheia de comida e Athena a levou até ela e sentaram-se.

— Caralho! Nunca vi tanta comida na minha vida! - exclamou Sophia.

Galahad franziu o cenho. Sophia precisava ter seu vocabulário revisto. Por sorte, Athena não prestou atenção ao palavrão.

— Sério? - perguntou Athena surpresa – Por que não?

— Eu moro na rua, não tenho casa. - explicou a menina – Não teria como ter uma mesa com tanta comida assim…

Os olhos de Athena se encheram de lágrimas.

— Você não tem casa?! Que terrível! E onde você dorme? E onde você come?!

— Por aí. - murmurou Sophia desviando o olhar de Athena para a mesa. Não sabia por que, mas a tristeza da outra lhe incomodava mais que tudo – Posso comer? Estou morrendo de fome. - desconversou.

— Sim, sim, vamos comer! - concordou Athena e as meninas se puseram a comer.

Havia muitas coisas na mesa que Sophia nunca tinha visto nem provado. Muitas eram tão comuns no Santuário que Athena ficou surpresa que não fossem encontradas com facilidade no mundo exterior, como as frutas coloridas na mesa.

— Frutas é comida de rico. - Sophia explicou pegando uma maçã bem vermelha – Tem umas gororobas sintéticas, que dizem que tem tanta vitamina quanto as frutas orgânicas, mas o gosto é horrível. Eu nunca vi uma maçã como essa. - Sophia admirou a fruta e então deu uma mordida nela e seus olhos brilharam – É tão deliciosa!

Athena pegou uma maçã e a encarou. Nem gostava tanto assim da fruta e agora aquilo parecia errado. Com tantas pessoas que não tinha a oportunidade de comer algo assim, deveria ser mais grata por tê-la à disposição. Lembrou do dia anterior, de como Lorenzo falou da comida sintética e que ela podia fazer mal.

— Por que as pessoas comem coisas sintéticas? - perguntou intrigada.

Sophia a olhou, espantada.

— Como assim? - perguntou.

— Por que elas comem coisas sintéticas e não os naturais? - insistiu Athena – As coisas da natureza são melhores, não são?

— Bem, acho que teve um tempo que todo mundo comia assim. - a menina lembrou de algumas coisas que ouvira em suas andanças – Até que a humanidade destruiu parte do planeta e a maior parte das terras férteis. - Sophia deu mais uma mordida na maçã e continuou, com a boca cheia – Acho que é bem-feito que sofram agora.

A expressão de Athena foi tão sofrida que Sophia se engasgou. Depois que conseguiu engolir a maçã, perguntou, preocupada.

— O que foi? Foi algo que eu disse? Te magoei?

— Não... É que… - as lágrimas brilharam nos olhos dela – Eu não estou fazendo meu trabalho direito…

— Hein?

— Sophia. - chamou Galahad e a menina o olhou, ainda segurando a maçã, já meio comida – Você não faz ideia de onde está, não é mesmo? Não faz ideia de quem ela seja? - e apontou para Athena.

Sophia olhou para Athena, que ainda tinha lágrimas nos olhos e a encarava, triste.

— Ela é minha amiga. - respondeu, sem jeito.

A tristeza abandonou o rosto de Athena, que sorriu para Sophia. Sophia retribuiu o sorriso.

Galahad se mostrava cada vez mais curioso. Athena nunca se apegara a alguém tão rápido. Normalmente era bem tímida e somente depois de algum tempo se abria com as pessoas. Apesar de amar a humanidade incondicionalmente, o apreço pessoal de Athena se restringia ao Grande Mestre, aos doze cavaleiros de ouro e àqueles que ali trabalhavam. Porém, aquela menina a cativara e, de acordo com o relato de Lucius, só haviam se visto uma vez antes de Sophia arriscar a vida por Athena e Athena a proteger e insistir para que ela fosse levada ao Santuário. Sophia não fazia ideia que havia pessoas que morreriam para estar na companhia de Athena, para ter aquele olhar de alegria da deusa dirigido a eles… A maioria dos cavaleiros e amazonas só tinham vislumbres de Athena quando esta aparecia para os eventos e jamais sequer sonharam em sentar e comer com tanta intimidade com a deusa.

Mas o que mais o intrigava era o cosmos latente dela …

— Bom, terminem de comer, então poderemos conversar. - disse o cavaleiro de Capricórnio.

Não foi necessário repetir. Sophia atacou a comida com vontade. Nunca pudera comer tão bem e na quantidade que queria, por isso aproveitou. E a comida era tão boa que lágrimas de felicidade escorreram de seu rosto.

— Isso aqui tá muito bom! - disse com a boca cheia.

— Você vai se engasgar se falar com a boca cheia. - advertiu Athena, carinhosamente.

— Ok. - disse Sophia e então riu. Engoliu a comida e falou – Ok, entendido.

As meninas tinham acabado de comer quando ouviram passos se aproximando. Prontamente Galahad se levantou e se ajoelhou, o que Sophia achou muito esquisito. Uma pessoa entrou, usando uma máscara e um capacete estranho, além de um manto escuro. Sophia não sabia dizer se era um homem ou uma mulher.

— Shun! - Athena exclamou, levantou-se e correu até ele, abraçando-o – Você não brigou com eles, brigou? - perguntou franzindo o cenho.

— Só dei uma advertência, Athena. - disse com um tom de quem queria rir e estava se controlando.

— Que bom, porque eles não merecem castigo. Ah! - ela o puxou pela mão até onde estava Sophia – Essa é Sophia. Sophia, esse é o Shun.

Sophia podia não entender bem o que acontecia ali, mas sabia reconhecer uma pessoa de autoridade quando a via. Sentiu que não podia ser mal-educada com aquele homem. Levantou-se, limpou a mão na roupa e a estendeu para Shun que, para espanto de Galahad, a aceitou.

— É um prazer, senhor. - disse seriamente – O senhor é o pai de Athena?

— Um tipo de pai, sim, poderíamos colocar dessa forma. - e soltando a mão da menina, perguntou – Está sendo bem tratada, Sophia?

— Como nunca antes, senhor! - exclamou prontamente – É a melhor comida que já comi na vida!

— Ela até tava falando de boca cheia. - Athena riu – Porque não parava de comer!

Sophia riu também e as meninas se olharam e riram uma para a outra. O coração de Shun acelerou. Já vira aquilo antes.

— Mestre. - chamou Galahad, de cabeça baixa – Devo deixá-los agora?

— Apenas me diga suas impressões. - pediu.

— É exatamente como o Mestre disse. - falou o cavaleiro enigmaticamente.

Shun assentiu.

— Pode se retirar. - permitiu – O chamarei quando for necessário.

O cavaleiro levantou-se, acenou para Athena e Sophia e simplesmente sumiu. Sophia ficou encarando o local vazio, sem acreditar.

— Isso foi um teleporte? Pensei que precisavam de máquinas para isso! Cadê a máquina? - perguntou olhando para o local vazio.

— Não, não, ele só foi embora na velocidade da luz. - disse Athena como se fosse a coisa mais comum do mundo.

— Como é?! - exclamou Sophia.

Ouviram uma risada e Athena encantou-se por perceber que Shun rira. Não era sempre que alguém arrancava uma risada do Grande Mestre. Shun então fez um gesto e as meninas sentaram à mesa com ele.

— Querem sobremesa? - perguntou.

— Sim! - exclamou Athena levantando o bracinho.

— Tem mais comida? - Sophia estava espantada e feliz.

— Claro que sim.

E logo as meninas estavam saboreando uma belíssima torta de leite, mel e amoras. Enquanto elas comiam, Shun as observava. Há tempos não via uma pessoa tão autêntica e espontânea quanto Sophia. E aquele brilho no olhar de Athena… Já o vira antes, em Saori.

“Será….”, ele pensou. “Não, é impossível...”

Depois que acabaram a sobremesa, o Grande Mestre percebeu que Sophia o fitava atentamente, a curiosidade borbulhando em seus olhos.

— O senhor usa essa máscara por quê? - quis saber.

— Faz parte do meu cargo de Mestre do Santuário. - explicou pacientemente - Ela demostra meu respeito por Athena e pelos cavaleiros.

Sophia pendeu a cabeça para o lado, visivelmente confusa com as palavras dele.

— Antes de tudo, Sophia, quero lhe dizer algo. - começou Shun seriamente – Você lutou por Athena. Salvou-a, mesmo sem saber quem ela era. Porque você sentiu. Um dia, você vai entender a importância desse ato e o tamanho da minha gratidão.

A menina sentiu o rosto quente e soltou uma risada, coçando a cabeça.

— Que isso, só salvei uma amiga… O senhor tá me deixando sem jeito…

Shun sorriu por baixo da máscara.

— Agora, eu vou te explicar tudo. - continuou ele – Vou te dizer onde você está e com quem você está. Ouça com atenção.

Sophia assentiu e Shun começou a falar.

 

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A bebida desceu rasgando quando Lucius a engoliu. Era como se tivesse engolindo a própria humilhação e frustração. Pousou o copo no balcão, desejando que pudesse ficar bêbado e esquecer a vergonha. Porém, o máximo que acontecia com os Cavaleiros de Ouro com relação ao exagero da bebida era ficarem com a cabeça levemente entorpecida e uma azia desgraçada.

O Grande Mestre o mandara pensar, mas preferia que tivesse sido punido. Uma punição física, um trabalho como os do herói Herácles*. Lidar com a dor do corpo seria melhor do que lidar com a dor da alma, de sentir-se inútil enquanto uma garotinha sem treinamento protegia Athena. E agora não teria acesso à sua amada deusa até decisão do Mestre. Patético.

O taverneiro colocou mais uma dose e Lucius a entornou. O homem estava nervoso e com razão. A expressão dele e de seus companheiros não era das melhores. Estavam com suas roupas civis e suas armaduras estavam nas caixas, empilhadas em um canto da taverna. Nenhum deles conseguiu continuar vestido com elas depois que o Mestre os dispensou.

Depois de um tempo bebendo, sentados no balcão, Saphyra suspirou e falou:

— Poderia ser pior.

Lorenzo a encarou, horrorizado.

— Pior? Pior do que sermos privados da companhia de Athena? - o cavaleiro não conseguia conceber nada pior em sua mente. – Nossa situação é terrível!

— Ela não disse que a situação era boa, siri. - falou Lilian seriamente – Apenas que poderia ser pior.

O cavaleiro de Câncer virou-se para a amazona de Aquário.

— Se você não tivesse vindo com suas ideias absurdas, nada disso teria acontecido! - acusou.

Lilian o encarou, os olhos faiscando.

— Apenas porque não sou uma pessoa quadrada e enfadonha, que quer fazer tudo do mesmo jeito, sou culpada? Por que você não pode aceitar uma sugestão minha, uma vez que seja, sem fazer confusão?!

Antes que Lorenzo pudesse dizer algo, Saphyra os interrompeu, com a voz enérgica:

— Chega vocês dois! - e Lorenzo e Lilian a olharam, surpresos. A amazona de Libra não costumava a falar naquele tom – Foram essas picuinhas que nos levaram a situação de hoje! Não sei o que levou o Mestre a mandar vocês dois juntos, porque, sinceramente, vocês não conseguem cooperar! Por Athena, vocês não param! - o taberneiro rapidamente encheu o copo de Saphyra e se afastou. A amazona tomou tudo em um gole – Nós quatro temos culpa sim, mas ouso dizer que os mais responsáveis por tudo, são vocês dois! Quando estão perto um do outro se comportam como duas crianças birrentas! Pela deusa, nem eu consigo fazer vocês cooperarem! - ela respirou fundo antes de continuar - Ok, é engraçadinho às vezes, mas vejam o extremo a que chegamos hoje! Extremos são ruins! Vocês não precisam se amar, mas devem lembrar que tem o mesmo propósito! Vocês são Cavaleiros de Ouro, cacete!

Os dois baixaram a cabeça, envergonhados e nada falaram. Lucius então pediu mais bebida, permanecendo em silêncio. Pouco tempo depois ouviram um fungar e perceberam que Lorenzo chorava.

— Sem poder ver Athena! - exclamou, inconsolável – Como vou ensiná-la a cozinhar? Quem vai fazer os lanchinhos dela?

Ligeiramente arrependida do que falara ao amigo, mesmo que ele precisasse ouvir, Saphyra segurou sua mão, consolando-o.

— Calma, Lorenzo. - sua voz voltara ao tom gentil de sempre – Tenho certeza que esse castigo não vai durar muito tempo.

— Concordo. - falou Lilian, falando de forma mais branda – O aniversário de Athena se aproxima e o Mestre não a deixaria sem seu bolo preferido…

Lorenzo a encarou, horrorizado.

— Por Athena, e se o Mestre mandar outra pessoa fazer o bolo de aniversário dela? Eu sempre o fiz, desde que ela... - o choro dele aumentou.

Saphyra olhou irritada para Lilian, que levantou as mãos, defendendo-se silenciosamente, pois aquela não tinha sido sua intenção. E diante do olhar duro da amazona de Libra, suspirou e deu dois tapinhas nas costas de Lorenzo.

— Se alguém vai ser logo tirado do castigo será você, sirizinho. Athena ama sua comida e não vai demorar a pedir por ela ao Mestre. E o Mestre sempre faz o que Athena quer.

O choro de Lorenzo diminuiu um pouco e ele encarou Lilian.

— Você acha mesmo? - perguntou.

— E desde quando eu minto para te agradar? - retrucou.

Em vez de ficar chateado, Lorenzo riu.

— Tem razão. - e levantando o copo dele, propôs – Trégua?

Lilian levantou o dela.

— Trégua. - e brindaram.

Saphyra deu um sorriso satisfeito. As coisas sempre tinham dois lados e aquele era o lado bom do que acontecera.

Permaneceram em silêncio, bebendo, até que o dia claro deu início a uma noite chuvosa. Assim que escureceu, Saphyra levantou-se, pegou sua sombrinha, tocou de leve com ela na caixa de sua armadura e abriu os braços. A caixa veio até ela e pendurou-se sozinha.

— Até mais, meus amigos. – despediu-se.

— Mande meus cumprimentos a Gêmeos. - gracejou Lilian.

Saphyra revirou os olhos, sacudiu a cabeça e não respondeu. Empurrou a porta da taverna com a sombrinha, abriu-a elegantemente e saiu na chuva.

— Você abusa da sorte, Lilian. - falou Lucius, as primeiras palavras que dizia desde que chegara ali.

— O que é a vida sem riscos? - filosofou a amazona de Aquário antes de também se levantar – Vou voltar para minha casa. Já pensei demais.

E pegou a armadura, colocou-a nas costas e saiu, sem se importar com a chuva.

Ficaram apenas Lucius e Lorenzo, calados, na taverna vazia. O cavaleiro de Escorpião tinha certeza que as pessoas estavam evitando o local após saberem que havia quatro cavaleiros de ouro de mau humor ali dentro. E Lilian era uma delas. Sua irmã tinha a mania de congelar as pessoas que a incomodavam. Não usava gelo eterno, mas um gelo forte o suficiente para dar trabalho para Lucius quebrar e presentear o alvo com uma bela pneumonia.

— Não me leve a mal, Lucius. - começou Lorenzo depois de um tempo – Eu sei que Lilian tem um bom coração e eu até gosto dela, quando ela não está sendo desagradável… O problema é que ela parece fazer questão de ser desagradável…

Lucius poderia dizer que Lilian tinha motivo para ser assim, mas preferiu ficar calado. Ia parecer somente um irmão mais velho defendendo a irmãzinha e sabia que Lilian não ia querer isso. E Lorenzo não estava errado, apenas não sabia o motivo pelo qual Lilian era daquele jeito.

— Desculpe-me pela minha irmã, Lorenzo. - disse sem olhar para o outro – Vou tentar controlá-la, para que ela não te perturbe tanto.

Para a surpresa de Lucius, Lorenzo deu uma gargalhada.

— Ninguém controla a cabeça de vento, Lucius, e você sabe disso. - e terminando a bebida, disse – Pode deixar que eu pago a conta. - colocou mais dinheiro do que o necessário no balcão (o Santuário ainda usava moedas), pegou sua armadura e saiu.

Lucius foi deixado sozinho com seus pensamentos.

O tempo passou, mas o cavaleiro de Escorpião permaneceu onde estava, o mesmo copo vazio à sua frente. Talvez devesse se auto penitenciar por seu erro, pensou. Ou descarregar sua ira em outras pessoas. Os caçadores de crianças não saíam de sua cabeça e ele supôs que o Grande Mestre não se importaria se ele fizesse uma limpeza de bandidos na capital da Grécia. Vingaria Athena, vingaria a si mesmo e ainda distrairia a mente.

Estava fazendo planos para por sua ideia em ação quando um maravilhoso aroma doce de rosas o envolveu. Sentiu-se inebriado, muito mais do que a bebida o fizera se sentir. Fechou os olhos e sorriu.

— Agatha. - falou.

Dois braços o envolveram e um queixo pousou em seu ombro.

— Saphyra passou pela casa de Peixes, pelo visto. – continuou Lucius, sorrindo, mas sem virar-se.

— Sim. - a voz aveludada falou ao pé de seu ouvido e ele estremeceu – Mas eu já sabia. Todos nós fomos informados.

— Ótimo. - falou sarcástico – Todos sabem do nosso fracasso. - o queixo dele se tensionou – Terry e Mario vão me infernizar até um deles cometer um deslize maior.

A risada graciosa dela, tão próxima, o desarmou e ele relaxou.

— Você não será o único que eles infernizarão. - confortou ela – Você não estava sozinho lá.

— Ah, serei sim. - disse convicto – Ninguém tem coragem de dizer um ‘a’ para sua irmã. Se disserem algo a Lorenzo, vão ficar sem comida ou, na melhor das hipóteses, ele vai cuspir em tudo que servir aos dois. E Lilian… Lilian não se importa.

— Ah, se importa sim. – discordou - Eu demorei a vir porque estava acalmando-a na casa de Aquário.

Lucius virou-se devagar, os braços de Agatha ainda envoltos em seu corpo. Encarou a amazona de Peixes e precisou de alguns segundos para recuperar o fôlego. Agatha era a criatura mais deslumbrante que existia. O rosto era parecido com o de Saphyra, mas era mais afilado e seus olhos eram cor de fogo. Às vezes dourados, às vezes laranja, às vezes vermelhos, mas usualmente a mistura exuberante das três cores. Ela usava o cabelo prateado solto, na altura do ombro e o encarava com um sorriso consolador.

— Você é mesmo incrível. - disse ele passando a mão pela cintura dela e a puxando para perto – Para tirar minha irmã de dentro do jarro.

— Ser cunhada tem suas vantagens. - brincou.

— Mais do que ser irmão, pelo visto. - falou, desanimado.

— Você cuida da minha irmã, eu cuido da sua. - ela sorriu, passou os dedos pelo rosto dele e Lucius sentiu o formigamento que o veneno que emanava do corpo dela lhe causava.

— Ela está bem? Lilian? - quis saber.

— Vai ficar. Só precisa de um tempo. E de que ninguém a pressione. Você sabe como ela fica quando a pressionam.

Lucius sabia e concordou com a cabeça.

— Espero que Saphyra e Lorenzo fiquem bem. - desejou o cavaleiro de Escorpião.

— Não se preocupe com esses dois. Aldebaran foi para a casa de Câncer. Ela me disse que provavelmente Lorenzo passará a noite xingando, chorando e cozinhando, tudo ao mesmo tempo. Decidiu ir acalmá-lo e comer de graça.

Lucius riu. Típico da amazona de Touro.

— E Saphyra está na casa de Gêmeos. - continuou Agatha – De vocês quatro, será a que lidará melhor com tudo isso, lhe garanto. Minha irmã é fofinha por fora, mas casca dura por dentro.

— Espero que Gêmeos cuide bem dela. - ele suspirou, antes de confessar – Eu me sinto um fracassado, Agatha.

Ela segurou seu rosto e o encarou.

— Você não é. - garantiu – As coisas aconteceram assim porque tinham que acontecer.

— Não deviam ter acontecido. - insistiu ele.

— Você não poderia evitar. - falou, enigmática - Nem você, nem ninguém. Ia acontecer de qualquer forma.

O cavaleiro de Escorpião franziu o cenho.

— Como assim?

Agatha o soltou, mas pegou sua mão.

— Venha comigo. Vou lhe mostrar.

Ele foi. Pegou sua armadura, pôs nas costas a seguiu. Foram até o platô que antecedia as doze casas. De lá, era possível ver o templo de Athena, resplandecendo. A chuva tinha cessado e o céu estava limpo.

— A menina que salvou Athena. - começou Agatha – Eu cuidei de seus ferimentos... - deu uma pausa e o encarou - Lucius… Você sentiu o cosmos dela?

— Sim. Era… diferente. Pequeno, mas potente.

— Exato. Eu nunca senti nada como aquilo. E então... – ela olhou para o céu – Você lembra que eu e Saphyra treinamos um tempo junto com Klaus de Sextante?

— Sim, vocês três ficaram sob a tutela de Cassandra de Taça por um tempo, quando chegaram ao Santuário.

Ela assentiu.

— Mestra Cassandra nos ensinou muitas coisas. Eu posso não ter as habilidades dadas à Constelação de Sextante ou de Taça, mas, às vezes, consigo compreender o céu. E sabe o que vejo? - ela fitou a noite estrelada – Vejo mudanças.

Lucius fitou o céu também.

— Não sei o quanto essa menina está envolvida. Nem o seu papel, mas nada foi ao acaso. - ela o encarou com seus olhos brilhando como fogo – Por isso, não se culpe. Você ainda é o cavaleiro mais fiel de Athena.

A mão de Lucius procurou a dela e a apertou. Sorriu, um sorriso misto de tristeza e esperança. Agatha então se inclinou e o beijou suavemente.

— Fique comigo hoje. - pediu ela.

Lucius sorriu ainda mais.

— Não há nenhum outro lugar onde eu gostaria de estar. - disse antes de beijá-la novamente.

 

********************

Havia um limite entre sonho e loucura e Sophia estava certa que já o cruzara,

Tudo era tão absurdo que só podia ser isso: a mais pura e simples insanidade. Lembrou dos homens e mulheres que via pelas ruas, falando coisas desconexas, presos em seus próprios mundos e se perguntou se era assim que estava naquele momento.

“Se for, quero ficar presa nessa loucura.”, pensou.

Estava em outro quarto, menor que o anterior, que descobrira ser o de Athena. Ficaria ali até o dia seguinte, quando começaria sua jornada. Entretanto, sabia que essa jornada já começara. Começara quando entrara naquela cabine de roda gigante.

Deitada, observando a luz da vela em sua cabeceira bruxear no teto de mármore, lembrou do que ouvira naquele dia. O Grande Mestre lhe contara tudo. Sobre a deusa Athena, sobre a sua amiga ser a encarnação daquela deusa que vinha a cada duzentos anos para salvar a humanidade e, principalmente, sobre os guerreiros de Athena, homens e mulheres que com um soco poderiam romper os céus e seus pés abriam fendas na terra. O “algo’ que ela sempre sentira, tinha um nome: cosmos. As pessoas possuíam pequenos universos dentro de si e o cosmos era a energia que provinha desse microuniverso e fazia com que os cavaleiros e amazonas realizassem feitos sobre-humanos. Os guerreiros leais a Athena recebiam armaduras, que representavam as constelações do zodíaco. O homem que vira mais cedo, Galahad, era um cavaleiro de Ouro (só havia doze desses) da constelação de Capricórnio.

Ouvir tudo aquilo já seria estranho. Mas não fora apenas isso.

— Você tem um cosmos incomum, Sophia. - ouvira o Mestre dizer – Galahad acredita em seu potencial. Se você aceitar, poderá ficar aqui no Santuário e treinar para ser uma Amazona de Athena.

A decisão fora fácil. Entre ficar nas ruas de Athenas e ali, não havia muito o que pensar. Claro, sabia que não moraria naquele templo: ali era a casa de Athena e ela era uma deusa. Uma deusa mesmo! Deu uma risada. Bilhões de pessoas no mundo e ela entrara na cabine de roda gigante de uma deusa!

“Gastei a sorte da vida toda.”, pensou.

No dia seguinte, seguiria para a academia dos aspirantes. Ficaria por lá, treinando e sendo avaliada. Se fosse boa, alguém a tomaria como discípula, treinaria e poderia competir por uma armadura. As doze de ouro já tinham cavaleiros e amazonas, mas ainda tinha algumas de prata e bronze sobrando. Se fosse apenas mediana ou regular, seria uma guarda do Santuário. Para Sophia não importava; qualquer opção era melhor que a vida que tinha antes.

Todavia, o melhor de tudo, era que poderia continuar amiga de Athena.

— Você poderá vir visitá-la sempre que estiver livre. - lhe garantira o Mestre – Athena fica feliz em sua presença.

E Sophia ficava muito feliz na presença dela e já estava triste por ter que ir para outro lugar e vê-la apenas quando pudesse.

Ouviu uma batida na porta e sentou-se, alerta.

— Sou eu. - ouviu Athena falar.

Sophia sorriu, levantou-se da cama e foi abrir a porta. Athena usava uma camisola rosa, com babados na gola alta e nos punhos. Vinha carregando, com dificuldade, o cavalo alado gigante que assustara Sophia mais cedo. Também trazia um cavalo alado menor na mão.

— O que é isso? - perguntou, estranhando.

— Não queria deixar você sozinha. - explicou – Nem os Pégaso. Então os trouxe.

— Está sem sono?

Athena fez que sim.

— Deixe eu ajudar.

Sophia pegou o Pégaso maior e o levou para sua cama que, mesmo menor que a de Athena, ainda era bem grande. Acomodou a pelúcia e esperou Athena se acomodar na cama também.

— Você está assustada? - indagou a pequena deusa.

— Estou. - admitiu Sophia.

Athena sorriu, consoladora.

— Não tenha medo, você vai se sair muito bem! Tenho certeza! - garantiu.

Sophia sentiu o rosto queimar e fez um ‘não’ com a cabeça.

— Não é do treinamento que tenho medo. - revelou, para surpresa de Athena – Tenho medo de acordar e ver que isso é um sonho.

— Não é, não. - garantiu a menina.

Sophia acreditou. E sorriu.

— Você acha que serei amazona de quê? - perguntou animada fazendo um ‘muque’ com o braço – Uma de ouro? – brincou, sabendo que os cavaleiros de Ouro eram os mais fortes ali.

— Espero que não. - disse, preocupada.

— Por quê? - o ânimo de Sophia minguou um pouco. Será que Athena não acreditava em seu potencial?

— Acho que você pode ficar bem forte, tanto quanto uma amazona de ouro. - afirmou, para a surpresa da outra – Mas já tem doze cavaleiros de Ouro. Você só se tornaria uma se alguém morresse. E não quero que ninguém morra. Então prefiro que você fique com uma armadura que está vaga. Assim, ninguém morre. - e abrindo o sorriso, disse – Vou gostar de você sem me importar com qual armadura você vai pegar.

— Obrigada, Athena… - murmurou Sophia, sentindo que lágrimas queriam chegar aos seus olhos. Sacudiu a cabeça, espantando-as.

— Eu te trouxe um presente. - avisou Athena lhe mostrando o Pégaso menor – Eu poderia te dar o grandão, mas ficaria difícil pra você levar por alojamento. Por isso, quero que fique com esse. Para lembrar de como nos conhecemos.

A meiguice de Athena finalmente trouxe lágrimas aos olhos de Sophia. Lágrimas de alegria. Ela pegou o Pégaso, enquanto limpava os olhos com as costas das mãos.

— Obrigada. Guardarei para sempre. - garantiu.

Sorriram uma para outra.

— Posso dormir aqui? - perguntou Athena – Podemos ficar conversando sobre o Santuário. Tiro qualquer dúvida sua.

— Claro. - concordou animada - Tenho muita coisa para perguntar. E se você quiser saber do mundo lá fora, lhe contarei também.

— Oba!

Apesar da animação, logo as duas meninas dormiam, lado a lado, os Pégaso de pelúcia velando o sono de ambas, alheias à maré de mudanças que a chegada de Sophia causaria no Santuário de Athena.

 

*Mais conhecido como Hércules. “Hércules” é a forma romana de chamar o herói, que, em grego, é Herácles.


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