O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 26
Um mundo paralelo




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Com a ajuda do cartão psíquico, o Doutor e a Clara conseguiram acesso privilegiado à parte de trás do palco. Deixaram-no passar por ele ser um inspetor da Associação Britânica de Artes e Espetáculos que viria investigar se as licenças estavam todas em ordem e se o volume de decibéis iria ser cumprido. Entregaram uma pasta a Clara cheia de papelada e designaram um pequeno escritório entalado entre divisórias, junto às escadas de acesso ao palco, equipado com uma mesa e três cadeiras. Aí poderiam fazer as verificações que quisessem com total privacidade. Os promotores mostraram disponibilidade para responder a todas as perguntas.

Assim que se viram sozinhos, Clara deixou a pasta com os documentos na mesa e seguiu o Doutor que subiu até ao palco. Escolheram um ponto discreto, junto a um dos pilares metálicos que sustentavam a estrutura de luzes, por detrás de uma grande coluna de som e quedaram-se aí, a observar o corrupio de assistentes que preparavam o lugar para a entrada dos artistas.

À sua frente e após o limite dianteiro da imensa plataforma, estendia-se um mar de gente aos pulos e aos gritos, que aguardava pelo início do espetáculo, no típico frenesim das apresentações musicais ruidosas. O público de uma orquestra clássica comportava-se melhor, ou, pelo menos, aguardava mais sossegado nas suas poltronas de veludo. Num estádio seria como ali, pessoas excitadas com o que estavam prestes a presenciar, cada secção das bancadas a torcer pela sua equipa. Numa ópera também havia contenção e atenção, nada daquele histerismo e agitação, nem quando os protagonistas morriam, isso acontecia bastante nas histórias operáticas.

A voz da Clara interrompeu-lhe o devaneio:

— O que vai acontecer aqui, Doutor?

Olhou para a sua companheira e entremostrou um sorriso.

— O espetáculo da banda Linkin Park em Milton Keynes. Dentro de minutos eles vão aparecer e dar início à primeira música da apresentação que têm preparada para esta noite. Ruído, luzes, música e vozes ampliadas.

— Voltámos… atrás no tempo?

— Evidentemente!

Ela deu dois pulinhos e bateu palmas, muito contente e entusiasmada.

— Ah! Vieste mostrar-me que conseguimos, efetivamente, salvar o mundo e curar o Joe?

O Doutor negou devagar, mas sem desmanchar aquele sorriso esmaecido.

— Não, Clara. Estamos numa dimensão paralela em que vamos ver o que vai acontecer se não conseguirmos salvar o mundo e curar esse tal de Joe, que presumo seja o infeliz que foi o primeiro infetado com o fungo.

— Ah… – Clara apagou a sua alegria, murchando como um girassol à noite. – E isso serve que propósito? Será uma tortura, Doutor! Aviso-te. Vais mostrar-me a destruição do mundo, as pessoas todas transformadas em mortos-vivos, o Chester… o Mike… o Pobre Brad… todos eles… – Calou-se, horrorizada, de lágrimas nos olhos. – Desculpa, não quero ver isso.

Girou sobre si mesma. A mão carinhosa do Doutor no seu braço deteve-a.

— Clara. Preciso de ver a infeção do fungo avaza e perceber exatamente como atua. Como te expliquei são uma lenda, os métodos de proliferação que usam são efetivamente similares a um fungo que existe na Terra, mas preciso de recolher informações precisas sobre como armazenam e utilizam o som. Não posso simplesmente adivinhar a razão que levou os daleks a escolherem um espetáculo de música Rock. E se gostarem mais de Jazz e esta situação é apenas um engodo? E se neste momento existirem outros avaza espalhados pelo globo terrestre, em casas de concertos, salões de ópera e feiras com música folclórica e nós tropeçámos num desses fungos por acaso na apresentação dos Linkin Park?

— Certo, certo… já percebi! – cortou Clara impaciente, tentando lutar contra as suas emoções. – E como vais fazer as tuas análises?

O Doutor apontou para o seu rosto, conferindo mais autenticidade ao seu sorriso, que dobrou de tamanho.

— Esses… óculos escuros…?

— São perfeitos e dão-me estilo. Tenho é de ter cuidado com o histórico.

— Qual histórico?

— Não queiras saber… Foi o Mike que teve a ideia.

— Do histórico?

— Dos óculos!

— Gostas do Mike.

— Claro. É o mais inteligente do grupo! Olha, Clara… vai começar.

Ela arrepiou-se.

— O que vai começar?

— Tudo, Clara Oswald. Tudo. Será um pesadelo com monstros, ruína e sofrimento. Nós estamos aqui para que possamos evitar tudo isso, na nossa dimensão. Isto… isto não passa de uma simulação, onde iremos ver os erros que não podemos cometer. Onde iremos aprender.

— Sim, Doutor. Compreendo. É uma simulação demasiado real, contudo, e isso agonia-me.

Os primeiros a entrar em palco foram o baterista, Rob Bourdon, e o disc jockey, Joe Hahn. Caminhavam rigidamente, a lembrar autómatos com problemas nas articulações artificiais. À primeira vista não se lhes notava a infeção, não havia manchas visíveis, mas captando o olhar vazio do rapaz mais alto, Clara arrepiou-se até aos ossos ao notar que as íris e as pupilas dele eram verdes, mas um tom de verde esquisito, muito vivo e brilhante.

Rob sentou-se no pequeno banco e agarrou nas baquetas. Começou a marcar o compasso com um dos pratos. Joe subiu até ao palanque onde se montava o seu equipamento e girou os pratos automaticamente.

De seguida, surgiu uma guitarra elétrica num acorde furioso e incrivelmente desafinado. Clara cobriu os ouvidos com as mãos e olhou incrédula para o Doutor. Ele estava sereno, de braços cruzados, a observar com a sua habitual atenção autoritária e casual, como se tudo fosse importante e como se nada valesse a pena, entre a banal distração e a suma concentração.

Uma segunda guitarra juntou-se à primeira e o ruído que produziam era tudo menos música. Era uma cacofonia avassaladora de som que irritava o sentido de audição de qualquer pessoa menos sensível. Clara cerrou os dentes, mas o som desgarrado feria-lhe os ouvidos com uma contundência inédita. Ela viu Brad Delson e Mike Shinoda aparecerem em cima do palco e os dois moviam-se na mesma rigidez dos seus amigos. Também estavam infetados! Ela gritou, mas o barulho era de tal maneira alto que ninguém se apercebeu do seu grito.

A seguir, foi a vez de Dave Farrell que apareceu carregando o baixo num gesto indolente, a mão direita pendurada que tentava chegar às cordas, mas sempre que fazia a tentativa a palheta presa entre os dedos riscava o vazio. Cabisbaixo, um lenço a cobrir-lhe metade da cara, a moleza indicava que era outro infetado.

Por fim, entrou Chester Bennington. Tentou os seus saltos habituais. Tropeçou nas pernas e caiu com aparato. Ficou estendido sobre o palco, a arfar como um animal ferido que se enfurecia com os seus ferimentos. Os seus olhos estavam fluorescentes, vivos e inquietos. E então riu-se. Agitou-se em altas gargalhadas que as guitarras incoerentes abafaram. A batida de Rob era igualmente desalinhada e bruta.

O fungo tinha conseguido contaminá-los a todos.

O público levantou-se numa vaia monumental. Os assobios e os apupos eram ensurdecedores, criaram um muro de ruído que buscava batalhar a música patética e irreal que os cinco membros dos Linkin Park tocavam em cima daquele palco. Clara continuava com as mãos nos ouvidos e dividia-se entre o espetáculo risível dos músicos, a aparente serenidade do Doutor e a multidão que se assanhava por não estar a receber aquilo que estava à espera.

O céu tingia-se de vermelhos e laranjas melancólicos devido ao pôr-do-sol.

A muito custo, Chester levantou-se. Estendeu os braços num registo bastante dramático, o rosto paralisado numa expressão de horror, andou dois passos, voltou a cair, agarrou a perna de Mike que mexia a mão automática sobre as cordas da guitarra. Dave oscilava no mesmo lugar e Brad arreganhava os dentes, tentando combater o que o estava a devorar por dentro. Joe arranhava a mesa de mistura e Rob batia nos tambores e nos pratos de forma apática, até que a fadiga o venceu e ele caiu para diante, arrastando a bateria que despencou da plataforma elevada onde estava montada. Foi como uma espécie de deixa para desencadear a ação seguinte.

Os holofotes concentraram os seus focos verdes num único ponto do palco, onde estavam Chester e Mike, para onde se juntavam Brad e Dave. As luzes apagaram-se. Os espetadores gritaram um “oh!” zangado. E logo um jorro verde foi projetado desse lugar central, que caiu numa chuva medonha sobre as primeiras filas. Clara percebeu que se tratava de fungos, milhares de bolhas contaminadas que invadiam novos hospedeiros.

As pessoas que eram atacadas estrebuchavam amedrontadas. A seguir iluminavam-se de azul. Para concluir o processo, voltavam-se para a pessoa que estava ao seu lado, tocavam-na e a transmissão do fungo resultava imparável.

Clara saltitou no seu lugar, impaciente e encolerizada por não estarem a fazer nada para pararem com aquilo. Era tenebroso apenas observar a doença a espalhar-se e ver toda a gente a ser convertida em mortos-vivos.

Em cima do palco, a música desafinada prosseguia e ia crescendo de intensidade e de ruído, para ajudar à proliferação do fungo que engordava, borbulhava e reproduzia-se ante aquele estardalhaço de som. Os Linkin Park tocavam os seus instrumentos, surdos ao som horrível que produziam, desnorteados, cegos e infetados. Menos Rob que se limitava a agitar os braços num registo automático, vibrando pratos e tambores invisíveis. Menos Chester que rodopiava sobre si mesmo à procura do microfone que deixara cair.

— Não aguento mais ver isto – queixou-se Clara.

O Doutor agarrou-lhe na mão.

— Espera! Está quase. Está mesmo quase…

Ela olhou para o céu que escurecia. Não soube dizer o que era, mas uma massa enorme tapava a claridade do ocaso e deixava o mundo ainda mais escuro e perigoso. Das nuvens surgiram pequenos pontos que começaram a baixar velozes até ao solo, berrando o seu distinto grito de guerra:

— Exterminar! Exterminar! Exterminar!

A invasão dos daleks à Terra tinha início. Os seus raios assassinos dizimaram as filas mais recuadas do público. O anfiteatro tornou-se caótico, com as pessoas ainda saudáveis a perceberem, finalmente, o que estava a acontecer e a quererem fugir para se salvar. Clara puxou pela mão do Doutor, mas ele não se moveu. Zangada deu um puxão mais forte. Soltou-se, tropeçou e caiu para trás. Bateu com a cabeça numa caixa de equipamento e desmaiou. O Doutor, apercebendo-se que a sua companheira tinha ficado sem sentidos, chamou, aflito:

— Clara!

Uma voz zangada sobrepôs-se à barulheira infernal.

— Se este espetáculo maravilhoso foi provocado por ti, então devo avisar-te que me deixaste bastante impressionada. Nunca esperaria uma confusão desta magnitude com a tua assinatura. Nem eu tenho tanta imaginação… fungos avaza dos Azkura? Absolutamente lendário!

O Doutor voltou-se e exclamou:

— Missy!


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Num refúgio.