Crendice escrita por BastetAzazis


Capítulo 3
Capítulo 2: O Filho do Boto


Notas iniciais do capítulo

Por Mariana Albuquerque Mendonça e Ferreira



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Capítulo 2: O Filho do Boto

Por Mariana Albuquerque Mendonça e Ferreira

 

 

 

Com quatro horas de atraso, o avião finalmente conseguiu pousar em Ribeirão Preto. Mais uma hora, e meu tio nem precisaria ter antecipado sua viagem de volta. Para variar, ele provavelmente teria chegado mais cedo em casa se tivesse alugado um carro e dirigido até aqui. Eu já tinha acabado com duas revistas, três cappuccinos e estava prestes a encarar uma enorme fatia de bolo quando o avistei saindo pelo portão de desembarque. Consegui visualizar o brilho em seu olhar quando ele me enxergou, provavelmente agradecendo por não ter que esperar sei lá mais quanto tempo até conseguir um taxi.

 

- Obrigado por vir me pegar. E me desculpe por fazê-la sair do trabalho.

 

- Sem problemas, tio – respondi, ajudando-o com a bagagem enquanto nos dirigíamos ao estacionamento. – Eu não tinha nenhum cliente para receber esta tarde, apenas alguns projetos que posso finalizar amanhã de manhã.

 

Era verdade. O escritório de arquitetura que havia aberto com a Solange estava às moscas, o que nos salvava era um projeto aqui e ali. Mas é claro que eu não ia entrar em tantos detalhes com o meu tio. Para ele, já é um alívio o fato da sua única herdeira ter feito uma “faculdade de verdade” e ter sua própria profissão ao invés daqueles cursos que algumas velhas amigas do colégio ainda fazem no intervalo entre o salão de beleza e a academia. Meu tio acha que eu tenho uma carreira de sucesso, não vou desmenti-lo agora. Pelo menos quando tenho uma novidade mais delicada para lhe revelar hoje.

 

Nós entramos no carro e eu dirigi até o centro da cidade, ao invés de seguir direto para casa. Sabia como meu tio ficava faminto após a primeira lua cheia do mês, e sabia que se precisava agradá-lo ou acalmá-lo, nada melhor que um bom pedaço de carne mal passada e bem preparada. Fui direto para a churrascaria preferida dele.

 

Segundo meu tio, desde que ele descobriu que se transformava em lobisomem nas noites de lua cheia, sempre teve um membro da família incumbido de cuidar dele, para evitar que o lobo perdesse o controle e causasse algum mal impossível de reverter. Foi só por causa disso que ele conseguiu ter uma vida razoavelmente normal entre os Humanos. Uma vida normal para alguém de quase 300 anos, pelo menos. O primeiro a ficar encarregado de amarrar e amordaçá-lo antes do sol se pôr foi seu irmão mais velho, e conforme as gerações passavam, meu tio foi escolhendo sucessivamente um descendente deste irmão. Até que chegamos no tio Ricardo e, nos últimos dois anos, em mim. O tio Ricardo nunca se casou e, quando morreu, deixou para mim a herança de cuidar do tio Adalberto. Não que eu enxergue isso como um fardo. Nunca conheci meus pais; eles morreram num acidente de carro quando eu era nova o suficiente para nem ao menos lembrar que estava com eles. Tio Adalberto foi, então, o pai que eu não conheci, e eu jamais me perdoaria se alguma coisa acontecesse com ele por um descuido meu. Ele me contou que era um lobisomem quando eu tinha quinze anos, e depois disso, tio Ricardo me treinou para ocupar o lugar dele depois que eu terminasse meus estudos. Afinal, teria sido impossível fazer faculdade em São Paulo se eu tivesse que voltar todo mês para Ribeirão de olho no calendário lunar.

 

Mas hoje nós estávamos longe de parecer o pai e filha unidos como a maioria dos nossos conhecidos nos descrevia. Eu fingia estar concentrada no volante enquanto imaginava as palavras ideais para lhe dar uma notícia que sabia que ele não receberia bem. Ele também não estava muito falante, seu semblante estava sério durante todo o caminho. Podia parecer cansaço da viagem, mas eu o conhecia bem para saber que havia mais alguma coisa o incomodando. Já estava até esquecendo que eu estava brava com ele e me perguntando se tinha acontecido alguma coisa em São Paulo, quando o silêncio foi quebrado:

 

- Nós não vamos para casa?

 

- Eu pensei em pararmos para comer alguma coisa – expliquei. – Nós não esperávamos que você voltasse ainda hoje, a Maria não preparou nada para o jantar.

 

- Está bem – ele concordou sem dizer mais nada.

 

Nós continuamos com uma conversa amena, esclarecendo o quanto a viagem foi cansativa, o quanto tinha chovido na tarde anterior em Ribeirão ou no quanto os engarrafamentos em São Paulo estavam cada dia maiores. Estacionei o carro, entramos no restaurante e um dos garçons já nos recebeu e nos levou para a mesa preferida do meu tio. Ele nem precisou fazer o pedido, sua picanha mal passada já estava sendo providenciada.

 

- Você soube do tiroteio hoje de manhã em São Paulo? – voltei para os tópicos inúteis antes de entrar no assunto que queria realmente discutir com ele. – Dizem que uma garota morreu.

 

- Sim – ele respondeu, descansando o copo de uísque na mesa. – Eu vi alguma coisa na TV, mas não era perto de onde estava. Não precisava se preocupar.

 

Ele estava tentando me acalmar, como se São Paulo fosse uma vila minúscula onde ouvir falar de um assassinato fosse me fazer imaginar que meu tio corria algum risco. Não sei dizer porquê, mas isso me chamou a atenção.

 

- Este país está cada dia mais violento, não sei onde vamos parar – repeti o mesmo comentário padrão para encerrar a conversa.

 

Meu tio simplesmente assentiu com a cabeça, provavelmente absorto nos seus próprios problemas. Depois de um tempo, mais um tiroteio deixa de ser novidade para se transformar apenas em mais uma estatística; e eu estava mais interessada em outros assuntos. Por exemplo, já estava começando a ficar preocupada com o que quer que poderia estar ocupando a mente do meu tio a ponto de deixá-lo tão calado. O garçom chegou trazendo nossos pedidos, nos serviu e começamos a comer sem mais nenhum comentário na mesa. Aquele silêncio estava me deixando cada vez mais nervosa e menos segura de começar a conversa. Foi só quando meu tio terminou a refeição parecendo satisfeito que resolvi respirar fundo para tomar coragem de dizer o que eu estava querendo desde que ele tinha chegado no aeroporto:

 

- Tio, eu tenho uma novidade.

 

Ele levantou os olhos repentinamente, desperto das suas reflexões. Senti que estava mordendo os lábios para controlar o nervosismo.

 

- Eu estou grávida – tentei anunciar o mais calma possível, apenas olhando para os lados para me certificar que ninguém nos ouvia.

 

- Grávida? – ele repetiu.

 

Instintivamente, fechei os olhos e me encolhi esperando um grito voraz, mas foi justamente para evitar esse comportamento que eu escolhi lhe dar esta notícia num lugar público. E deu certo. Ele estava surpreso, mas ao invés de berrar aos quatro cantos, ele berrava sussurrando, também olhando para os lados para se certificar que não estávamos chamando atenção.

 

– Mas como? Quero dizer... Você sempre soube se cuidar... Pelo menos eu imaginava que sim...

 

Foi só então que eu me toquei como aquela situação era embaraçosa. Eu não tinha mais quinze anos, não estava loucamente apaixonada ou inconseqüente. Aliás, sempre fui bem cuidadosa nesse aspecto desde o meu primeiro namorado. E agora, depois de praticamente independente financeiramente e com uma idade onde todos esperam que uma mulher saiba como evitar filhos, eu precisava contar ao meu “pai” que estava grávida. Estava me sentindo no meio de uma novelinha adolescente, no papel da vilã da história que recebeu o “castigo” por ter transado antes da hora. Senti meu rosto enrubescer e perdi totalmente a fala, assistindo apenas ao meu tio fazendo mil e uma perguntas sobre minha vida íntima.

 

– Eu nunca mais vi você com um namorado... Quem é o pai dessa criança?

 

Fiquei em silêncio por um instante; finalmente a pergunta que eu estava esperando. Desviei os olhos dele antes de criar coragem para responder:

 

- Você acreditaria se eu dissesse que é o Boto Cor-de-Rosa?

 

Se eu estivesse de fora, apenas ouvindo esta conversa, minha primeira reação seria rir. Imaginei que meu tio faria isso também, mas ele continuou sério. Então era mesmo verdade. Ele sabia da existência de outras Lendas, mas nunca tinha me contado nada a respeito.

 

A segunda reação dele foi fingir que não tinha acreditado em mim.

 

- Querida, isso é uma lenda que as mulheres usavam para explicar uma gravidez fora do casamento – ele explicou num tom paternal, quase infantil até. – Você não precisa disso, sabe que eu a apoiaria sob quaisquer circunstâncias.

 

- Mas eu estou dizendo a verdade – insisti.

 

- Mariana – agora, o tom era de repreensão. – Não brinque comigo. Nós sabemos muito bem que o Boto Cor-de-Rosa é uma lenda.

 

Eu pensei que ele fosse dizer que o Boto não existia.

 

- E qual o problema? – perguntei. Acredito que ele me conhecia bem o bastante para saber que aquilo era oficialmente uma afronta. Queria ouvir ele dizer que sabia da existência de outras Lendas.

 

Ele entendeu o recado, pois começou a olhar para os lados para me evitar.

 

- Não me diga que aquele caboclo desmiolado chegou perto de você! – Desta vez ele estava falando alto o suficiente para as mesas do lado nos ouvirem. Felizmente o restaurante estava praticamente vazio. – Eu disse para ele não se meter com você... que você era como uma filha pra mim...

 

- Ah... Então você conhece mesmo ele? – eu o interrompi, cínica. – E ainda avisou para não se aproximar de mim...

 

Ele foi obrigado a admitir, com um silencioso assentimento com a cabeça.

 

– Por que você nunca me contou? – continuei. – Eu sempre cuidei de você nas luas cheias, por que me esconder que há outras Lendas? Que existe todo esse “mundo” escondido...? Você faz parte disso... Qualquer problema com outras Lendas envolve você também... E eu...

 

- O que ele contou pra você? – Meu tio estava começando a perder a compostura. Não queria estar na pele do Boto agora. – Aquele golfinho desgraçado vai se ver comigo, ele não tinha o direito de...

 

- Tio! – eu o interrompi para tentar acalmá-lo. – Eu não sou nenhuma donzela inocente enganada por um rapaz sedutor. Você não precisa defender minha honra.

 

- Exatamente por isso é que eu não entendo como você se deixou enganar por aquele patife... – ele respondeu, agora com a voz mais baixa.

 

- Tio... – Coloquei as mãos sobre as dele. – Eu sei que ele não vai casar comigo e nem que viveremos felizes para sempre. Eu já sabia de tudo isso antes de me envolver com ele.

 

Meu tio soltou um suspiro, balançando a cabeça em negação. Fiquei imaginando se, ao longo de 300 anos, nunca, ninguém da família havia engravidado fora do casamento. Mas eu sabia que comigo era diferente. Eu era a “filinha” dele. Intocável. Talvez por isso o Boto fez tanta questão de inventar essa história de gravidez. Meu tio... Um dos lobisomens mais velhos e mais temido pelas outras Lendas... Um dos homens mais ricos e respeitado da cidade... estava visivelmente abalado.

 

- E você acha que está tudo bem assim? Que você vai ter esse filho sozinha e todo mundo viverá feliz para sempre? – Ele estava se remexendo na cadeira e gesticulando como um louco. Provavelmente para compensar os berros que ele tinha que conter. – Ele por acaso contou que as Lendas estão em guerra há séculos?

 

Estreitei os olhos para ele.

 

- Agora você me conta isso, não é? – Ele recuou um pouco na cadeira, assustado com a minha reação. – Talvez, se eu soubesse que era sobrinha de uma peça chave de uma guerra que eu nunca ouvi falar, eu teria mais cuidado ao encontrar outras Lendas.

 

Observei meu tio respirar fundo, apoiando a cabeça na mão num gesto óbvio de alguém que procurava se acalmar. Por fim, ele fez um sinal para o garçom mais próximo trazer a conta e me anunciou:

 

- Não vou discutir isso aqui.

 

Nós deixamos a churrascaria e fomos para casa em silêncio. No caminho, lembrei que meu tio estava estranho desde sua chegada, e decepcionada, concluí que ele não me contaria o que aconteceu tão cedo. Não com a bomba que eu tinha passado para ele resolver.

 

Mal paramos o carro, e Maria, a governanta, apareceu na porta antes que entrássemos na casa.

 

- Boa noite, Sr. Adalberto. – Ela esperou o assentimento dele e continuou: - O senhor lembra daquele rapaz que vinha sempre aqui... Parecido com o Tarcísio Meira quando era novinho?

 

- O que tem ele, Maria? – Meu tio perguntou, olhando de soslaio para mim.

 

Tarcísio Meira, é?” – pensei, divertida. “É a cara da Maria...

 

- Bem... Depois daquela história da Marina dizer que ele é o pai da Catarina, eu sei que o senhor o proibiu de voltar aqui. Mas hoje...

 

- O que aconteceu hoje? – ele interrompeu, impaciente.

 

Se meu tio não fosse praticamente imortal, eu juraria que ele teria um infarto ainda esta noite.

 

- Bem... – Maria desviou os olhos para mim, procurando por ajuda. Mas eu não sabia o que fazer também. E pra mim era novidade essa história de pai da Catarina... – É que ele apareceu aqui hoje, e parecia urgente. – Ela continuou. – Me desculpe, Seu Adalberto, mas eu acabei deixando ele entrar e ficar esperando o senhor no escritório, antes que a Marina o visse e acabasse fazendo o mesmo escândalo daquela outra vez.

 

Enquanto a Maria esperava amedrontada pela reação do meu tio, eu comecei a ligar os fatos. A Marina, secretária particular do meu tio, responsável por todas as questões financeiras dele e uma das empregadas que moram na casa, conhecia o Boto? E a Catarina, filha dela, era filha do Boto também?

 

Meu tio pareceu não ter gostado muito da visita – acho que eu também não gostaria de receber o canalha sedutor que enganou a inocente da minha filha –, mas acabou agradecendo à Maria, dizendo que ela fizera a coisa certa por ter deixado ele escondido no escritório. Ele nem sequer olhou para mim quando entrou tempestivamente em casa e foi direto encontrar com sua visita.

 

Quando ele desapareceu das nossas vistas, puxei a Maria pelo braço antes que ela entrasse na casa também.

 

- Você não vai falar nada para o tio que ele já esteve aqui ontem!

 

- Claro que não! – ela me assegurou. – Você me pediu. Sem contar que o Seu Adalberto me mataria se soubesse que eu deixei ele entrar.

 

Eu olhei para ela, incrédula.

 

- Então por que você deixou ele entrar hoje de novo?

 

- Eu já disse, ele disse que era urgente, disse que era um assunto sério sobre o que aconteceu em São Paulo. Como o Seu Adalberto estava chegando de São Paulo, achei melhor deixar ele entrar. E você sabe como é difícil dizer não para aquele homem!

 

Eu virei os olhos, rindo da Maria com o último comentário. Mas ela tinha razão, o Boto sabia convencer as mulheres. Somente no instante seguinte que liguei a apreensão do meu tio quando o encontrei no aeroporto com a história de que o Boto estava em casa para falar do que havia acontecido em São Paulo.

 

Sem dizer nada, passei pela Maria e entrei em casa seguindo direto para o escritório. A porta estava fechada, mas meu tio falava tão alto que podia ouvir tudo pelo lado de fora mesmo. Me abaixei para espiar pelo buraco da fechadura e lá estava o Brad Pitt, sentado calmamente numa das poltronas, enquanto meu tio andava em círculos, gesticulando aleatoriamente. O discurso dele era o previsível: “Como você ousa tocar na minha filha!”, “Seu traidor!”,”Aproveitador!”; mas também tinha um elemento a mais, que me chamou a atenção:

 

- Você a usou para me obrigar a me unir a vocês, não é?

 

O Boto não respondeu, mas o encarou de um jeito intrigante. Quando pensei que meu tio estava prestes a trucidá-lo, ele tirou um envelope do bolso e o estendeu.

 

- Tome. Eu só vim aqui hoje porque o Saci me pediu para entregar isso aqui.

 

Meu tio estreitou os olhos, desconfiado, mas tomou o envelope das mãos dele raivosamente. Quando ele o abriu, tirou um cheque de dentro dele.

 

Meu tio ficou branco no mesmo instante.

 

- Como ele conseguiu isso?

 

O Boto deu de ombros.

 

- Você conhece o Saci, ele tem seus próprios métodos. Eu não me meto nisso.

 

Meu tio ainda olhou desconfiado.

 

- Suponho que ele virá me exigir cumprir minha parte no trato.

 

- Não sei o que vocês combinaram – o Boto respondeu, estendendo as mãos para frente, indicando que não tinha nada mais a ver com aquilo. – Eu sou só o garoto das entregas.

 

Mas meu tio ainda não estava convencido.

 

- E a onde a Mariana entra nisso? Por que você a envolveu nessa história?

 

O Boto deu um sorriso cínico.

 

- Está bem! Eu admito que a procurei pensando numa maneira de prendê-lo a nós. Mas o Saci foi muito mais eficiente. Você sabe que ele tem como fazer esse cheque aparecer no meio do inquérito policial caso você não coopere.

 

- Ele não me pediu para cooperar com você – meu tio o desafiou. – Se vocês pretendem mesmo entrar nessa guerra, é melhor conhecer bem seus aliados.

 

- Tudo bem... – O Boto se levantou indicando que estava prestes a sair. – Não me interessa o que o Saci lhe disse. Ele nunca fala a verdade mesmo. – Antes de se virar para porta, entretanto, deu um passo em direção ao meu tio e disse num tom mais baixo, mas que eu ainda consegui ouvir: - Se esse cheque aí não o prende a mim, lembre-se que nós teremos um parente em comum em breve.

 

Eu baixei os olhos ao ouvir aquilo, me sentindo um tanto culpada. Ele realmente ia usar essa mentira de gravidez para convencer meu tio a tomar uma posição.

 

- Você deu um jeito de trazer uma filha minha para o seu lado – o Boto continuou. – Eu só respondi na mesma moeda. – E deu as costas em direção à porta.

 

Meu tio bufou em escárnio.

 

- Hunf! Como se você se preocupasse com a Catarina! Ela é uma menina bonita, inteligente, e você nem ao mesmo pensou em visitá-la e saber se ela estava bem depois que a descobriu aqui!

 

O Boto nem se virou para encarar meu tio, apenas ajeitou o chapéu e respondeu:

 

- É claro que ela é bonita e inteligente. Ela é minha filha. Não preciso vê-la para saber disso. Você que é o fraco que fica se prendendo a laços familiares.

 

Depois disso, eu tive que sair de trás da porta antes que ela se abrisse e fui esperar o Boto fora de casa. Demorou mais que o esperado para ele aparecer no jardim – meu tio provavelmente o interpelou depois do que ele disse sobre família – e eu o puxei para perto de mim antes que ele saísse pelo portão.

 

- Que história é essa que a Catarina é sua filha?

 

Ele sorriu ao me ver... Aquele sorriso encantador e conquistador de meninas indefesas que eu já havia aprendido a evitar.

 

- Está com ciúmes? – ele respondeu. – Se você quiser, a gente pode providenciar que essa história de gravidez se torne verdade ainda esta noite.

 

Ele levantou uma sobrancelha e aproximou o rosto de mim, enquanto eu dei um passo para trás para me afastar. Tudo bem que ele aparece para as mulheres como um homem maravilhoso e tal... Mas como ele consegue conquistar tantas com aquele papo nojento? E a Marina era uma delas! Ela parecia uma mulher tão inteligente...

 

-  Por que você não me falou da Catarina? – repeti a pergunta. – Pra que inventar essa história de filho se você já tem uma filha aqui?

 

Ele deu um suspiro impaciente.

 

- É diferente. Acredite em mim.

 

- Fica difícil acreditar em você desse jeito – respondi, cruzando os braços na frente dele.

 

- Não se preocupe. Você está fazendo a coisa certa forçando seu tio a tomar uma posição a nosso favor. Acredite, vampiros e lobisomens não se dão muito bem fora do Brasil.

 

Eu ainda olhei desconfiada para ele, e depois desviei os olhos distraída, lembrando de tudo o que ele havia me explicado sobre a guerra entre as lendas do Novo e Velho Mundo. Muita coisa ainda não fazia sentido para mim, e era uma quantidade enorme de informações que até uns dias atrás eu julgava que não passava de meras crendices. Confiar apenas num Boto – uma figura conhecida por enganar mulheres – não me parecia muito inteligente.

 

- Mas você ainda... – e então percebi que ele já havia desaparecido.

 

-+-+-+-+

 

*Saci-Pererê: É uma Lenda de origem brasileira, que vive mais próximo das matas e se desloca por meio de redemoinhos de vento. O saci possui apenas uma perna, usa um gorro vermelho e sempre está com um cachimbo na boca. Pode ser capturado jogando uma peneira sobre os redemoinhos. Após a captura, deve-se retirar o capuz da criatura para garantir sua obediência e prendê-lo em uma garrafa.


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