Crendice escrita por BastetAzazis


Capítulo 2
Capítulo 1: Assassinato na Cidade Grande


Notas iniciais do capítulo

Por Adalberto Souza Ferreira, vulgo Lobisomem



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Capítulo 1: Assassinato na Cidade Grande  

Por Adalberto Souza Ferreira, vulgo Lobisomem  

 

Quando os primeiros raios de sol atravessaram a cortina de fumaça que já tinha se formado no amanhecer de São Paulo, a televisão despertou. Sons diversos e ainda incompreensíveis insistiam em entrar pelos meus ouvidos, me impedindo de ignorar a claridade para voltar a dormir. Céus! Não tem nada pior que as manhãs após a primeira lua cheia do mês. Eu estava com a fome de um lobo, e o corpo todo dolorido pela força que minha forma irracional fez durante à noite para tentar se livrar das amarras que me ainda me prendiam na cama.  

 

Abri os olhos somente depois que ouvi a chave girando na fechadura da porta do apartamento que ocupo quando tenho negócios a resolver em São Paulo. Se estivesse em casa, no interior do estado, quem faria esse “trabalho sujo” seria a última descendente do meu irmão mais velho, minha “sobrinha”, Mariana. Sendo o temporão de uma família de sete filhos varões, caiu sobre mim a maldição do lobisomem, me condenando a vagar pelas noites de lua cheia numa forma meio lobo, meio humana até o dia que uma bala de prata atinja meu peito. Mas desta vez estou na capital, e quando isso acontece, sou obrigado a recorrer à ajuda de Vanessa, uma prostituta (ou acompanhante de executivos como chamam hoje em dia) para me amarrar firmemente na cama durante a primeira lua cheia do mês, evitando maiores problemas na cidade grande. Alguém como ela jamais estranharia um fazendeiro do interior com taras de ser amarrado por fortes correntes durante uma noite inteira; provavelmente ela já vira muita coisa estranha nas noites paulistanas. Ela também não pode reclamar de precisar voltar pela manhã apenas para me soltar, está recebendo uma boa quantia pelo serviço, e além disso, sua profissão a obriga a ser discreta sobre o nome e às preferências dos seus clientes.  

 

Acompanhei com os olhos a universitária que tinha acabado de entrar no quarto. Pronta para seguir para a faculdade depois que saísse, usava apenas jeans e camiseta, diferente da loira predadora que me deixara antes do anoitecer no dia anterior. Ela me soltou delicadamente e cuidou dos ferimentos nos meus pulsos. Tinha um belo corpo, o rosto jovem e sem maquiagem passava a imagem de ingenuidade que ela perdera há muito tempo. Depois de conhecer os dois lados de Vanessa, até podia dizer que ela era uma mulher tentadora, sem dúvida. Entretanto, há muito anos decidira não misturar negócios com prazer. Entreguei-lhe o cheque com a quantia combinada e a deixei sair, jamais tocaria na filha de um de meus melhores empregados.

 

-+-+-+-+

 

A apenas alguns quarteirões dali, um rapaz negro, não muito alto e com aparência de quem havia acabado de deixar a adolescência, caminhava com a ajuda de uma muleta pelas ruas de São Paulo. Ele sabia que eu estava por perto. Havia conseguido o endereço de onde eu costumava ficar quando estava na cidade com a ajuda de seus informantes – outras Lendas que lhe deviam favores. Segurava-se para não dar mais um trago em seu pito escondido no bolso e andava cauteloso, inseguro sem o píleo vermelho na cabeça e incomodado com a calça jeans e a camisa que vestia. Tinha que fazer alguns sacrifícios para tentar se passar como uma pessoa comum, procurando por um condomínio da classe alta paulistana. O problema era tentar parecer uma pessoa comum tendo que andar de muleta numa cidade que não fora projetada para deficientes físicos. Ah, imagino como ele deveria estar ansioso para usar um redemoinho para se locomover, como fazia quando estava em seu território.  

 

O Saci-pererê continuou andando, fingindo ignorar as pessoas que se afastavam dele pelo caminho, indagando se elas faziam isso porque ele era negro ou deficiente, ou os dois. O saci talvez estivesse ficando incomodado com a cidade grande, mas eu já convivi tempo suficiente com os Humanos para entender que os problemas dos outros são sempre dos outros até que os atinjam negativamente. Era o comportamento padrão daquelas pessoas, assustadas com as notícias que liam nos jornais todos os dias, deixando-as apreensivas com qualquer um que não lhes parecesse “normal”. O Brasil era um país livre de preconceito, mas todos tinham que ficar atentos, afinal, ele estava bem no meio da “civilização”.  

 

Depois da exaustiva caminhada, o saci finalmente encontrou o prédio que procurava. Com um suspiro cansado, meu visitante encarou os dez degraus de escada que ele ainda tinha que subir com sua única perna para conseguir falar com o porteiro.

 

- Bom dia – ele disse assim que terminou sua escalada. – Estou aqui para ver o Sr. Adalberto, do apartamento 404.  

 

- Um momento – o porteiro respondeu, encarando-o com desconfiança.  

 

Quatro andares acima, o interfone tocou no meu apartamento, tirando-me do sofá onde estava esparramado desde as seis horas da manhã. A televisão mostrando desenhos infantis que eu mal prestava atenção.  

 

- Sr. Adalberto? – o porteiro perguntou do outro lado assim que atendi o interfone. – Tem um rapaz aqui querendo ver o senhor.  

 

Sem saber ainda que era o saci, estranhei receber uma visita tão cedo.

 

- Eu não estou esperando receber ninguém hoje. Você perguntou o nome dele, ou o que ele deseja?

 

- Ele disse que é lá da sua terra, e que o senhor o conhece apenas pelo apelido de Saci.

 

Saci? Claro que eu não conhecia ninguém em Ribeirão, ou em nenhuma das minhas fazendas, com o apelido de Saci. O único Saci que conhecia era um autêntico Saci-Pererê. Meu coração parou por um instante.

 

- Pode deixá-lo subir, seu Luiz – ordenei imediatamente, sem tempo para mais reflexões. – Ele é de minha confiança.  

 

Desliguei o interfone e corri para a porta, acompanhando o elevador que indicava estar no térreo e subindo, pensando que o Saci jamais fora de confiança. Mas era melhor deixá-lo subir que correr o risco dele chamar atenção demais na portaria.  

 

Quando o elevador chegou, abri a porta violentamente e puxei a figura magra recostada dentro dele, deixando bem claro que não pretendia entrar em nenhuma de suas brincadeiras. Eu o conduzi até o apartamento antes que algum vizinho percebesse a movimentação no corredor e tranquei a porta atrás de mim.

 

- O que você veio fazer aqui? – perguntei assim que nos fechamos no apartamento.  

 

- Calma, Seu Lobo – ele respondeu com aquele jeito irônico dele. – Eu nunca fiz mal a você, fiz? Não tem por que querer prejudicá-lo, tem? Eu só vim pedir a sua ajuda.  

 

Estreitei os olhos, desconfiado.

 

- Não me chame de Seu Lobo, não sou nenhum personagem de contos da carochinha. E por que você acha que eu iria ajudá-lo, seja lá em que insanidade você se meteu?

 

- Porque eu sei que você não gosta de mim – o Saci respondeu, pulando pela sala de estar com sua única perna até se acomodar numa poltrona confortável, livre da muleta que carregava. – Mas antes de discutirmos negócios, você tem fumo por aí? Desde que cheguei nesta cidade que não dou um trago no meu pito.  

 

Estreitei os olhos ainda mais.

 

- Um Saci-Pererê sem cachimbo nem gorrinho vermelho – disse, devolvendo o escárnio. – Em que você se meteu? Quem retirou seu capuz? Quem ordenou você vir até aqui?  

 

- Eu vim por conta própria – o Saci respondeu, retirando seu píleo de um dos bolsos da camisa e recolocando-o na cabeça. – Não posso sair pelas ruas de São Paulo numa perna só e com um capuz vermelho na cabeça. Todos iam pensar que eu sou aquele da TV.

 

Ao menos esta explicação parecia convincente. Se o Saci ainda possuía seu gorro, provavelmente estava agindo por conta própria. Não precisaria me preocupar em descobrir quem estava manipulando-o para me encontrar. Conhecendo o inimigo, caminhei até onde ele havia se sentado para conversarmos.

 

- Então, por que você veio me procurar?  

 

Com um sorriso maroto, o Saci retirou o cachimbo de outro bolso e o mostrou para mim. Não obteria nenhuma resposta sem antes lhe arranjar algum fumo. Resignado, tive que ir até o escritório e pegar um pedaço de fumo guardado justamente para reuniões inesperadas com outras Lendas.  

 

- Sorte sua que eu ainda tinha um resto aqui – resmunguei, enquanto lhe entregava o presente. – Agora você me responde ou eu te faço voar pela janela.  

 

O Saci pegou o fumo e acendeu seu cachimbo, ignorando a ameaça. Depois de alguns momentos deleitando-se com o fumo que provavelmente ele se privara nos dias em que estava em São Paulo, disse calmamente:  

 

- Se você me ajudar, Lobo, esta será a última vez que vai me ver. Você devia estar comemorando também.  

 

- Eu não acho que a visita de um Saci seja motivo de comemoração – respondi enquanto me sentava em outra poltrona. – Mas me livrar de um seria com certeza. O que você quer?  

 

- Sair do país.  

 

Eu ri.

 

- Você quer dinheiro?  

 

- Não – o Saci respondeu. – Eu preciso de um visto para entrar nos Estados Unidos, e eles me negaram, você acredita?  

 

Avaliei o rapaz negro e perneta de cima a baixo e não consegui conter uma risada discreta:

 

- Por que isso não me surpreende?  

 

O Saci se enfureceu.  

 

- Você acha que eles estão certos, então? Acha?  

 

Eu simplesmente dei de ombros, sem nada a dizer, o que o deixou ainda mais indignado.  

 

– Vocês estrangeiros são todos um bando de usurpadores arrogantes. Isso aqui tá cheio de lobisomens, vampiros, heróis com superpoderes e loucos comedores de criancinhas – ele disse, usando os dedos para numerar cada ser não-humano que vira nos últimos dias em São Paulo. - Agora, quando eu quero mudar de ares, eles me negam! Isso é injusto!  

 

- Só porque eu tenho semelhantes na Europa não significa que eu seja estrangeiro, não me coloque no meio deles – me defendi, perdendo a paciência. – Eu entendo o que você quer dizer, eu também preciso enfrentar toda essa burocracia quando preciso viajar a negócios. Mas por que você quer sair do país? Você tem estado aqui sua vida inteira, não é?  

 

O Saci deu de ombros.

 

– Eu só quero viver como uma pessoa normal, num país normal, onde eu possa viver em paz e juntar uma graninha no fim do mês pras minhas despesas. Como um negro sem uma perna vai conseguir isso no Brasil?

 

- Você nunca vai ser uma pessoa normal, você é um saci – tentei argumentar. – Além do mais, se você descobriu onde fica esse paraíso, me avisa e eu vou para lá também.

 

O Saci deu mais um trago no cachimbo e depois continuou, mal-humorado:  

 

- Os humanos conseguem se dividir e brigar entre si porque um tem mais dinheiro que o outro, ou a pele mais clara que o outro, ou reza para um deus diferente do outro. Ninguém é normal para eles, e nós, Lendas, estamos ficando iguais. Hoje é praticamente impossível um de nós sair do país se não explicar exatamente o porquê.  

 

- Mas procure entender – tentei argumentar. – Como explicar um Saci-Pererê em Times Square? Não é “normal” um de nós aparecer em locais que não nos conheçam.  

 

- O chupa-cabras fez isso – o Saci replicou, endireitando-se na poltrona.

 

- E você lembra a confusão que foi? Fiquei sabendo que as autoridades não-humanas de Porto Rico até hoje o mantém sob vigilância constante. Aceite meu conselho, Saci, ninguém quer se meter nos problemas dos outros. Você não vai conseguir visto para sair do Brasil porque isso iria causar incômodo para muita gente e ainda por cima ameaçaria tomar a posição deles.  

 

- Isso não está certo – ele revidou, indignado. – Eles não têm bruxas? A Cuca poderia se passar muito bem como uma das bruxas européias. E o Bicho-Papão? Tem Bicho-Papão no mundo inteiro, por que um saci tem que ser condenado a ficar no Brasil?

 

- Foi o que eu tentei lhe explicar – continuei. – Meus antepassados vieram da Europa, mas eu nasci aqui e fui condenado à maldição do lobisomem sem ser mordido por outro semelhante, como acontece com eles. Para os lobisomens de lá, eu sou um estrangeiro também. O mesmo deve acontecer com a Cuca e o Bicho-Papão.  

 

O Saci levantou do sofá e começou a pular pela sala inconformado.  

 

- Eu preciso sair daqui – ele resmungou.  

 

Alguma coisa me dizia que o Saci não estava falando a verdade com seu papo copiado de uma novela sobre imigrantes ilegais. Por outro lado, estava bem ciente de que não era prudente fazer muitas perguntas ao Saci, e acabei desistindo momentaneamente de entender o porquê da urgência dele em sair do país.

 

- Muito bem – disse por fim –, se não vou conseguir convencê-lo a mudar de idéia, o que você acha que eu posso fazer para ajudá-lo?

 

- Você mesmo disse – o Saci respondeu com um tom de esperança na voz –, você tem semelhantes na Europa. Você pode convencê-los a me darem um visto.  

 

Novamente, fui obrigado a rir das idéias malucas daquele perneta.  

 

- Eu pensei que você queria ir para os Estados Unidos.  

 

O Saci estreitou os olhos, e me encarou com impaciência.  

 

- Você também tem semelhantes lá, não tem?  

 

- Tenho sim – respondi, ainda rindo. – Mas duvido que eles confiem na palavra do primo pobre.  

 

Saci não se deu por vencido, olhando em volta da sala, continuou:  

 

- Você não parece tão pobre assim...  

 

- Você entendeu o que eu quis dizer – rebati, sério.

 

- Você pode comprar o visto deles – o Saci insistiu.  

 

Fui obrigado a explodir em outra gargalhada. Quando consegui me acalmar, perguntei:  

 

- É só isso e eu me livro de você?

 

Quando o Saci estava prestes a assentir, a velha música que todos já conhecem como predecessora de más notícias tocou na outra sala, avisando o plantão do telejornal. Com um pressentimento ruim, dei as costas para o Saci e caminhei até a televisão, olhando incrédulo para a foto da garota que tinha saído da minha casa nesta manhã e agora, segundo o que o repórter dizia, tinha sido assassinada num tiroteio dentro de uma universidade. Em menos de um segundo o chão começou a tremer sob meus pés. Vanessa tinha saído daqui carregando na bolsa um cheque assinado por mim no valor de cinco mil reais. Como eu fui tão estúpido? Se a polícia achasse o cheque na bolsa dela, meu nome rapidamente estaria envolvido. As paredes juntaram-se ao chão para girar em torno de mim, e meu estômago se remexeu por dentro. Precisei sentar para recuperar o controle do corpo e nem percebi o Saci na porta da sala, olhando atentamente para a notícia na TV.

 

- Bela garota – ele comentou. – Você a conhece?  

 

Pulei assustado do sofá quando ouvi sua voz. Para as coisas piorarem, ainda tinha um intrometido em casa.  

 

- Sim – o Saci continuou com um sorriso no rosto –, você a conhece... Você a conhece e agora teme que eles te achem por causa dela. O que você andou aprontando na cidade grande, Lobinho?  

 

Com a insinuação, me recuperei imediatamente do mal-estar e me levantei num pulo, agarrando o Saci pelo colarinho.  

 

- Isso não é da sua conta! E pare de me chamar como se nós fôssemos velhos amigos.  

 

De olhos arregalados, o Saci levantou as mãos em sinal de arrependimento e esperou até que eu o soltasse, em silêncio. Voltei a me sentar na poltrona em frente à televisão, de costas para o Saci, e finalmente disse:

 

- Você está certo, Saci, eu conheço, ou conheci essa moça. Ela me ajudava nas noites de lua cheia. Ela saiu daqui nesta manhã com um cheque meu. Se acharem aquele cheque, alguém pode fazer perguntas ao meu respeito, e você sabe que minha situação exige uma certa discrição.  

 

Ficamos em silêncio por algum tempo. Eu ainda estava perdido, tentando raciocinar uma maneira de sair de uma enrascada em que eu meti sem querer, enquanto o Saci elaborava a barganha que me proporia a seguir:

 

- Eu tenho meus contatos. Posso investigar essa história para você. Depois disso, você me ajuda com seus amigos gringos.

 

Pousei o queixo sobre as mãos unidas à minha frente, com os cotovelos apoiados nos braços da poltrona onde me sentara. Eu devia estar louco, ninguém em plena consciência faria um trato com o Saci-Pererê. Mas se meu nome aparecesse no noticiário relacionado com a morte de uma prostituta, eu estaria muito encrencado. A reunião da tarde que fosse cancelada, precisava voltar para Ribeirão Preto e preparar Mariana para o pior. Se o Saci conseguisse ganhar algum tempo, tanto melhor.

 

Tinha plena consciência que me arrependeria amargamente, mas concordei:  

 

- Está bem, Saci – disse, resignado. – Espero notícias suas, e depois nós conversamos sobre o visto.  

 

O Saci se conteve para não pular de alegria em respeito à minha visível irritação. Do outro lado da sala, eu já estava com o celular à mão, berrando com a funcionária da companhia aérea para conseguir antecipar a passagem de volta.

 

-+-+-+-+

 

*chupa-cabras: Lenda nascida em Porto Rico, que se alimenta do sangue de cabras. Os animais começaram a ser encontrados por Humanos que se assustaram com o fato de não encontrar nenhuma gota de sangue nos cadáveres e assim, batizando-o com este nome. Não se sabe por que, o chupa-cabras deixou seu país natal alguns anos atrás e ganhou notoriedade no México, Estados Unidos e América do Sul. Atualmente, o chupa-cabras original encontra-se preso sob forte vigilância militar, mas seus descendentes já foram avistados na Amazônia, Peru e no sul/sudeste do Brasil.


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