Altivez Criativa escrita por Juarez Weiss


Capítulo 4
Presença


Notas iniciais do capítulo

Quando dei por mim, o capítulo já estava terminado.

Espero que gostem.



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Talvez sua solidão completasse seu vazio.

 

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A conhecida sensação de despertar alcançou seu corpo, inabalável. Mesmo deitado, o instinto agiu sobre sua mente e as pálpebras levantaram, automáticas.

 

Era como estar morto, mas acordado. A costumeira névoa negra que pairava à frente de seus olhos defeituosos ficava ali, cruel e debochada. A vida seguia, visual e pulsante, e ele estava ali, cego.

 

Ergueu sua mão e pôs em seu próprio rosto. Correu os dedos pelas pálpebras, sentindo os cílios brincarem em sua pele, inocentes. Abriu os olhos e encostou em seu globo ocular. A sensação de incômodo que deveria acompanhar esta ação simplesmente não ocorreu. Era um sentido morto, uma privação injusta, uma afronta diária. Era um ser humano incompleto: paladar, tato, audição e olfato. E morte visual.

 

Ergueu a cabeça e encarou a vastidão infinita que veria para sempre: escuridão, solidão e frustração, suas companheiras até o fim da vida.

 

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Ajeitou sua postura, levou os braços à frente e tocou as teclas. A energia correu por suas veias, seus dedos se movimentaram involuntariamente e, antes que percebesse, estava tocando "Nocturne 9", de Chopin.

 

E o som encheu a sala e os corredores, seus pulmões, sua mente, sua anti-visão, seus sentimentos, angústias, vida. E ele era só música, sobrenatural, fluído, desprovido de emoções, somente existindo e dançando nos alicerces musicais, certo de seu destino feliz de morrer em ouvidos satisfeitos, sentidos clássicos, completo por terminar sua existência fazendo do mundo um lugar mais musical, sereno, ondulatório...

 

E então, um som espectral se juntou, sem permissão, à sua existência sonora: eram cordas agudas e estridentes que pareciam gritar enquanto alguém as aliciava. E a vibração que elas causavam era cortante, agoniante, impossível de ignorar, e quando ele percebeu, estava gritando, com as mãos nos ouvidos, tentando, desesperadamente, parar aquela agoniante sucessão de notas e tons que pareciam querer explodir sua cabeça...

 

E elas pararam.

 

O silêncio o atingiu como uma pluma, e ele respirou fundo para retomar a calma. Em seus olhos, o infinito negro continuava ali, firme, mas em seus ouvidos reverberava as memórias do som que acabara de escutar... agudez e desespero.

 

Alguém, bem próximo dali, acabara de tocar um violino.

 

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Nos dias que se seguiram, piano e violino haviam se comunicado incessantemente, dia e noite, incansáveis. A música era sua linguagem, e o ar, seu instrumento.

 

O pianista ainda não conseguia entender esse novo dialeto, apenas respondia ao impulso musical que a junção causava: era impetuosa e sagaz, uma inteligência filosófica que vivia a partir do momento que existia, e existia a partir do momento em que era tocada. Dois sons distintos e crus que, juntos, faziam os transeuntes da Rua das Lamentações entrarem em júbilo auditivo, no momento em que eram alcançados pela frequência das ondas sonoras.

 

Estranhamente, enquanto piano e violino se entendiam no campo da música, o pianista experimentava algo novo: seu universo negro desenhava formas desconexas, traços fortes gravados na perspectiva, linhas e curvas subliminares traçadas por uma mão invisível. Já havia se acostumado às estranhas cores que o acompanhavam em sua estrada instrumental, mas os traços eram novos, desconhecidos e intrigantes, que somente ocorriam quando a junção de sons acontecia.

 

E ele então passou a aguardar ansiosamente por esses momentos, encontros às cegas de realidades alternativas, uma aceitação mútua de um ideal coletivo, uma vida a dois não-presencial, uma relação nivelada além dos limites humanos.

 

E descobriu então que estava apaixonado.


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