A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 8
07: Uma raposa de seifuku.


Notas iniciais do capítulo

Olá e obrigada por voltar.

GLOSSÁRIO:

Kendô: Arte marcial japonesa trata-se de uma espécie de esgrima em que os adversários usam espadas de bambu. O praticante de kendô é chamado de kenshi ou kendoka.

Senpai: é usado para indicar alguém com mais experiência e para indicar hierarquia.

Kohai: é usado para indicar alguém com menos experiência e para indicar hierarquia.

P.S: Caso haja alguma palavra que não compreendam avisem-me.



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É óbvio que Yukari deveria ter desconfiado que ele estava aprontando alguma coisa.

Há praticamente três semanas que a raposa andava quieta demais, claro, ele ainda saia e passava o dia fora, e às vezes boa parte da noite também, mas não incomodava mais Yukari com suas histórias tanto quanto fazia antes.

Ele também andava fazendo perguntas, perguntava-lhe sobre os uniformes, se os alunos podiam ir a qualquer escola ou apenas a uma, o que eram todas aquelas coisas que ela colocava na pasta... E quando ela lhe respondia ele sempre dava aquele sorriso, aquele sorriso lento e perigoso que devia ter soado um alarme no cérebro da garota avisando-a “PERIGO! PERIGO!”.

Mas não alertou.

Antes que se desse conta do que fazia, a garota de tranças sentada na segunda cadeira da fileira ao lado da janela se levantou batendo as palmas das mãos na mesa, com os olhos arregalados.

Suas bochechas queimaram intensamente quando os rostos de cada um na sala se viraram em sua direção.

O professor de ciências franziu o cenho, ele era um homem corpulento, já perto da casa dos cinquenta, e que sempre tinha o cabelo penteado em várias direções estranhas para encobrir os vários e óbvios pontos de calvice.

—Sim? Algum problema?

Ao seu lado a raposa também a olhava, com um delicado olhar de falsa inocência.

Yukari sentou-se.

—N-não, eu apenas... Eu... — ela sentia-se diminuindo na cadeira — Desculpe.

O professor olhou-a por mais alguns segundos, ainda de cenho franzindo, e então, pigarreando, voltou-se novamente para a raposa.

—Muito bem Ayaka-san... Sente-se ali, naquela cadeira vaga.

A raposa curvou-se agradecendo.

—Obrigada professor.

E pescoços viraram-se quase em ângulos de 180° para acompanhar o passar da nova garota enquanto ela dirigia-se ao seu lugar, logo atrás de Aoi-chan, na última cadeira duas fileiras à direita da fila de Yukari, que também se virava para olhá-la, ainda incrédula com o que estava acontecendo ali.

O professor pigarreou.

—Muito bem, vamos começar. Levantem-se. Certo. Curvem-se.

Entre os olhares nervosos de Yukari e os olhares curiosos e fascinados do resto dos alunos, a nova aluna não deixou de ser observada nem um segundo sequer durante todo o período da aula, e por mais de sete vezes o professor teve de chamar a atenção de algum aluno que, distraído, virava a cabeça e voltava a sua atenção para o lado errado da sala, numa cidade pequena como Higanbana transferências escolares eram algo raro de se ver, claro, ali havia um ou outro deliquênte — como há em todo lugar — que às vezes acabavam arrumando alguma encrenca e precisava se transferido, mas aquela garota certamente não parecia ser problemática assim, ela era tão bonita, alguém daquele tipo não podia ser perigosa. Certo? Além do mais, ela era tão bonita, não havia como desviar o olhar por muito tempo. Esse era o pensamento recorrente na maior parte dos alunos da sala, com exceção, é claro, de Yukari, pois as preocupações dela eram obviamente outras.

 A única que parecia prestar total atenção era justamente a aluna nova, que olhava o tempo todo para frente, atenta a cada minima palavra dita pelo professor.

 Só que isso não passava de uma farsa, ela não estava ouvindo uma palavra sequer do que ele dizia, seus olhos pareciam atentos sim, mas era apenas isso, em mente estava longe, muito longe dali, borbulhando de pensamentos impacientes, se perguntando quando o professor Haruna entraria, havia recolhido informações o suficiente para saber que ele dava aula nas classes daquele corredor — não havia planejado estar na mesama sala que Yukari, mas isso podia vir a acabar sendo um divertido bônus — e ainda assim tinha que ficar ali, olhando para aquele velho gordo, sendo obrigado a ver-lhe o papo sacudindo debaixo do queixo a cada palavra pronunciada, vendo-o levar os dedos gordos ao cabelo engordurado a cada dois minutos, para alisa-los em direções cada vez mais estranhas, tentando esconder a careca visivel no topo da cabeça.

Repugnante.

Quando a aula terminou, o professor mal tinha fechado a porta atrás de si — resungando que “parecia que nunca tinham visto uma aluna nova” — quando a nova aluna foi cercada, e crivada com uma torrente de perguntas confusas, mas antes que pudesse responder qualquer uma delas — ou pensar em qual responderia primeiro — a professora na terceira aula entrou, mandando todos se sentarem, a aula dela foi apenas uma reprise da aula de ciências, e assim que ela saiu — quando o sinal do intervalo soou — a nova aluna foi novamente cercada.

—Você veio de fora?

—Qual era sua antiga escola?

—De onde você é?

—“Ayakashi-chan” tem certeza que está tudo bem chamá-la assim?

—Por que se transferiu para cá?

Essas eram só algumas das perguntas que conseguiu identificar, mas tantas perguntas e vindas de tantas direções diferentes que, por um segundo, sentiu como se a sala estivesse rodando.

Ah, a curiosidade humana, provavelmente nem mesmo a curiosidade de uma raposa poderia se equiparar.

Até que uma voz ergueu-se sobre as outras.

—Vamos, deixem a aluna nova respirar um pouco, estão sufocando-a.

E assim, de um momento para o outro os alunos calaram-se e abriram caminho para que uma garota passasse.

Seus cabelos eram longos e castanhos, a saia visivelmente mais curta que as outras — talvez um ou dois dedos abaixo do meio das coxas, as meias eram negras e não brancas, e havia nela uma clara aura de “eu sou a líder”.

A líder estendeu a mão.

—É um prazer conhecê-la, sou Kanae Aiha, representante de classe. Sinto muito pelo comportamento de meus colegas, não é sempre que temos alunos transferidos aqui, especialmente no meio do período letivo, então eles se exaltaram um pouco.

Já recuperada a aluna nova aceitou a mão da representante de classe, mas pegou-a só com as pontas dos dedos, como se a oferecesse para que fosse beijada, levantando-se no processo.

—Ah sim, certamente é uma prazer conhecê-la. — ela sorriu.

Mas era um tipo de sorriso estranho, malicioso até, quase um desafio, que desconcertou a representante por um instante, mas menos de meio segundo depois ela se recompos e, soltando a mão da nova aluna continuou:

—Como representante dessa classe é minha função mostrar a escola a você, por isso depois das aulas...

—Representante! — alguém chamou, numa voz de um fôlego só — Deixe isso comigo!

A representante estranhou e franzindo o cenho girou a cabeça para ver quem se oferecia.

Com a mão estendida Yukari abriu espaço entre os alunos.

—Shibuya? O que...?

—Está tudo bem! — disse Yukari, mais uma vez em um fôlego só — Você já tem muitas preocupações e responsabilidades como representante de classe, deixe que eu cuide disso!

—Mas...

—Na verdade! — interrompeu-a — Vou fazer isso agora mesmo!

E apressou-se a agarrar o pulso da nova aluna e puxá-la dali, levando-a correndo da sala.

As duas passaram correndo pelos corredores surpreendendo alunos que pularam para fora de seu caminho, assustados, elas subiram uma escada após a outra, tropeçando nos degraus, até o terraço, onde alguns alunos costumavam almoçar embora a entrada ali fosse proibida e quase sempre a porta estivesse trancada, mas por sorte a porta estava aberta e elas eram as primeiras ali, Yukari fechou a porta e prensou a nova aluna ali, segurando-a pelos ombros.

—O que você está fazendo aqui?! — ofegou, cansada da subida.

A garota ergueu as mãos cobrindo fragilmente os olhos cinzentos.

—O que está fazendo? Está me assustando.

—Oh, por favor! — irritada Yukari a largou, atirando os braços para o alto e se afastando, embora ainda arfante.

A novata cobriu os lábios com o punho fechado.

—Shibuya-san?

—Pare com isso! Eu sei que é você! — Yukari virou-se irritada — Eu sei!

Ela sustentou aquele olhar por quase um minuto inteiro, até que a novata finalmente cedesse e levando a mão ao quadril e rindo de forma maliciosa, a garota alisou os cabelos para trás que, como se por obra de algum jogo de luz tornaram-se prateados.

—Ora, ora, parece que fui descoberto. — entregou-se a raposa em forma de garota colegial, e do topo de sua cabeça brotaram duas orelhas de raposa — Me diga Yukari, como foi que me descobriu tão rápido?

A cauda escapou-lhe por baixo da saia balançando-se de forma inquieta de um lado para o outro.

A pior parte: ele era uma garota ridiculamente linda!

Yukari enrubesceu de raiva.

—O que você está fazendo aqui?! — voltou a perguntar.

Mas ele nem sequer lhe deu atenção.

—Bem é claro que minha belíssima aparência se destaca, essa é afinal a única caracterísctica que eu não conseguiria disfaçar mesmo se tentasse, não importa a forma que eu assuma. — pensou consigo mesmo virando-se de lado e levando uma mão ao queixo — E levando em consideração que você já conhece minha identidade de raposa e sabe que eu posso mudar de forma... Sim, é óbvio que você me reconheceria, não há outra raposa por aqui afinal, e seria impossivel um humano ser tão belo quanto eu... Suponho que tenha sido realmente um golpe de falta de sorte eu ter caído justo na sua classe, um fato realmente incomum já que nós raposas somos criaturas que geralmente têm sorte. — ele já estava abrindo a porta para ir embora — Ainda assim você está de parabéns Yukari. Descobrir o disfarce de uma raposa assim tão facilmente! Seus olhos devem ser realmente impressionantes! Mas vamos. Você disse que ia me mostrar o colégio...

Yukari agarrou-lhe o braço.

—Vá embora daqui! — o expulsou.

A raposa piscou.

—Como é?

—Vá embora! — repetiu irritada — Já não basta me atormentar em casa? Agora quer atormentar-me na escola também?!

A raposa sorriu lenta e maliciosamente.

Esse, aparentemente, era o seu tipo favorito de sorriso.

—Como assim? Você acha que estou aqui por sua causa? Yukari você não está ficando um pouco convencida demais?

Yukari afastou-se, confusa.

—Então não está aqui por mim?

—Não. — cruzou os braços — Decepcionada?

—Ofendida, na verdade! — bateu o pé no chão — Se não veio por mim veio pelo que então?!

Dessa vez foi a raposa a agarrar-lhe o pulso.

—Afinal você vai ou não me mostrar à escola? — Os cabelos escureceram-se novamente, as orelhas desapareceram e a cauda enrolou-se para debaixo da saia. — Eu já conheço o terraço, quero ver o resto agora!

E a puxou escadas abaixo.

A raposa tinha mãos delicadas como as de uma garota de verdade — na verdade tudo nele era igual a uma garota de verdade, o que era muito irritante —, mas a forma com a qual ele segurava seu pulso ainda era sobrenaturalmente firme.

—Vamos Yukari, vamos! Você vai ou não me mostrar o resto da escola? — ele a chamava, sendo agora aquele que levava ao invés do que era levado.

Em meio ao percurso Yukari cerrou os olhos.

—Ei. — chamou — Onde arrumou o uniforme?

É claro que o conjunto cinza chumbo de saia pregueada e blusa de mangas curtas com gola de marinheiro e lenço vermelho assim como os sapatos e as meias podiam ser mera ilusão, tal como a maior parte de suas trocas de roupa, mas desde que a raposa roubara aquela muda de roupas de uma loja do distríto comercial que Yukari olhava com desconfiança para cada muda de roupas dele.

Parando por um momento a raposa olhou-a por cima do ombro para lhe responder:

—Não se preocupe, eu não roubei o seu uniforme. — Mas antes que Yukari pudesse suspirar aliviada, ele recomeçou a andar, levando-a consigo, e completou: — Eu roubei na lavanderia pública.

—Você...!

—As pessoas não deviam deixar as máquinas sozinhas.

Ele sorriu para um trio de garotos ao passar por eles, e Yukari não precisava olhar para trás para saber que agora mesmo os três estavam lá cutucando um ao outro, se perguntando para qual deles exatamente uma garota bonita como aquela estaria sorrindo... De repente Yukari chocou-se contra as costas da raposa, porque não percebeu que ele havia parado.

—Ai. O que foi?

A raposa nem a ouviu, largou seu pulso e saiu correndo.

Mais a frente no corredor andava o professor Haruna, e de repente Yukari teve um péssimo pressentimento de que já sabia por que aquela raposa estava ali.

—Professor! — chamou.

O professor virou-se, sorrindo como sempre... E então percebeu que não conhecia aquela aluna.

—Eu sou Ayaka Shiori, mas pode me chamar de Ayakashi-chan, estou estudando aqui a partir de hoje. — Gintsune apresentou-se pondo as mãos sobre as coxas e se curvando. — Por favor, cuide bem de mim.

—Oh, verdade? Seja bem vinda então Ayaka-chan, eu sou o professor Hruna Kakeru, leciono matemática aqui. — ele a cumprimentou — E em que turma você está?

—Que turma...? — Gintsune virou-se para Yukari, ainda parada onde ele a havia deixado no corredor — Yukari! — chamou — Qual é a nossa turma?

—Oh! Shibuya-chan! — o professor acenou e, quase que mecânicamente, Yukari aproximou-se. — Então você está na turma da Shibuya-chan, Ayaka-chan? Pois então parece que não sou apenas seu professor, mas também seu professor conselheiro. — ele ajeitou os óculos — Já que essa é a turma pela qual sou responsável.

Gintsune juntou as palmas das mãos.

—Oh, verdade?

Parece que cair na sala de Yukari não fora um raro golpe de falta de sorte afinal.

—Sim, sim. — o professor tocou amigavelmente o topo de sua cabeça — Ah, mas eu preciso ir agora, cuide-se bem, e você também Shibuya-chan.

Ele tocou o topo da cabeça de Yukari da mesma forma que havia feito com Gintsune, e sorrindo despediu-se e foi-se embora.

Gintsune levou uma mão ao queixo.

—Hum... Ele trata as alunas quase como crianças, mas trata a todas igualmente, e não é tão rígido em questões comportamentais quanto os outros professores daqui... — pensava consigo mesmo.

—Oi, você. — Yukari o chamou.

Ele a olhou.

—Hum?

—Fique longe do meu professor.

A raposa deu um sorriso travesso, provocador.

—Oh, está com cíumes, por acaso também é apaixonada pelo professor?

—Não, mas o professor Haruna é uma boa pessoa, eu não quero vê-lo metido em problemas por causa...!

—Oh, olha aí o sinal!

Novamente a raposa não a estava ouvindo, pegou o seu pulso e a puxou para a sala.

E o estômago de Yukari roncou a lembrando de que ela não havia almoçado.

Durante todo o resto do dia a raposa foi perdendo, progressivamente, todo o seu interesse nas aulas — Se é que tinha algum antes, mas quer o tivesse ou não, nem sequer estava se dando ao trabalho de fingi-lo mais. — Agora mesmo, por exemplo, ele estava fazendo o que parecia ser origamis, com uma folha arrancada de seu caderno.

Até que o professor parou ao lado de sua mesa.

—Hã... — ele levou um tempo procurando o nome dela na lista — Ayaka-chan?

Concentrado em seu trabalho Gintsune ainda levou uns dois ou três segundos antes de levantar a cabeça.

—Sim?

—O que você está fazendo?

Orgulhosamente Gintsune ergueu seu trabalho com ambas as mãos.

—São grous de papel! — afirmou, havia outros dois grous em sua mesa — Uma amiga me ensinou a fazer, eu a ajudei a dobra 1000 destes para o casamento dela!

Ele sorria como a criança que a esposa do tengu sempre dizia que ele era.

—Hã... Certo. — o professor checou o horário de pulso — Já estamos quase no fim da aula por isso não vou repreendê-la dessa vez, mas é melhor que preste mais atenção às aulas na próxima vez.

Como se os humanos tivessem alguma coisa para ensinar a ele.

Gintsune quase girou os olhos, mas ao invés disso sorriu docilmente e disse:

—Claro professor.

—Certo. — ele retornou para frente da turma, e assim que se posicionou atrás de sei púlpito o sinal soou — Muito bem, crianças, isso é tudo por hoje. Levantem-se. Certo. Curvem-se. Ótimo, estão dispensados.

Ele recolheu suas coisas e saiu.

Como já era de se esperar a nova aluna foi novamente cercada. Exatamente como Yukari esperava.

Mais do que apressadamente Yukari começou a guardar suas coisas dentro da bolsa.

—Yuki. — Kaoru a chamou — O que você acha de irmos...

—Desculpe Kaoru, hoje eu não posso. — desculpou-se apressada. — Hoje não.

—Ah claro. — Kaouru sorriu compreenssiva — Já estamos naquela época do ano novamente?

—É. É isso. — respondeu puxando com força o zíper da bolsa.

—Que bom Yuki. — Kaoru sorriu — Você fica enfadada no verão, mas as coisas sempre ficam mais agitadas no outono. O movimento na pousada já está aumentando?

—Sim, sim já está. Parece que nossos primeiros hóspedes chegam ainda essa semana, por isso eu tenho que me apressar em ir para casa.

Mas não era isso.

—Entendo. Boa sorte Yuki.

Yukari jogou a alça da bolsa por cima do ombro e correu.

Ela era uma mentirosa simplesmente terrível e, além disso, também sentia-se culpada por mentir para Kaoru, mas não podia evitar, se bem que não estava realmente mentindo, estava? É claro que a pousada estava começando a se tornar mais agitada com a chegada do outono, mas, pelo menos naquele dia, o verdadeiro motivo da pressa em ir embora de Yukari era a presença da raposa, desde o almoço quanto mais se aproximava o horário da saída mais nervosa ela ficava. Pois, querendo ela ou não, a raposa estava morando em sua casa e ela tinha medo que quando todos se levantassem para ir embora ele se agarrasse a ela e dissesse que iriam para casa juntos.

Algo que ela não queria e nem tinha como explicar depois.

Por isso ela não hesitou em aproveitar sua chance de fugir quando os colegas de classe cercaram a raposa.

É claro que Gintsune a viu fugindo, e riu consigo mesmo disso, ele já tinha dito a ela que não estava ali por sua causa, mas Yukari realmente estava bem convencida hoje.

—Aykashi-chan, Ayakashi-chan. — alguém o chamou — Está realmente tudo bem nós a chamarmos dessa forma?

Ao menos agora não estavam falando todos de uma só vez.

—Claro que sim. — Gintsune sorriu — Eu mesma disse para me chamarem assim, não é?

—Ayakashi-chan. — outro alguém, eram tantos rostos que Gintsune tinha dificuldade em ligar as vozes aos rostos — Você veio de fora?

—De fora? — repetiu — Como assim?

—De fora de Higanbana. — respondeu outra pessoa, ou talvez a mesma. — De outra cidade.

—Ah. — riu — Sim.

Isso pareceu deixá-los em novo estado de agitação.

—De fora!

—E de onde você é Ayakashi-chan?

—Eu disse que ela era de fora!

—É de Tóquio?

—Não, eu disse que ela era de fora!

—Aposto que é de Mishima!

—Porque você veio para Higanbana?

—Talvez ela seja de Kyoto!

Gintsune ergueu as mãos.

—Desculpa gente, sinto muito em decepcioná-los, mas, apesar de ser de fora, eu continuo sendo do interior. — disse — Vim de uma cidade pequena, entendem? Talvez até menor que Higanbana.

Até agora, desde que voltara ao mundo dos humanos Gintsune ainda não havia saído de Higanbana, ele não sabia como estava o mundo lá fora, como eram as grandes cidades dos humanos agora, não podia pisar em falso.

Simultaneamente os rostos ao seu redor perderam parte do ânimo, mas logo o recuperaram:

—E como era sua antiga escola? — quem perguntou foi um garoto.

—Tinha garotos bonitos lá? — agora quem perguntava era uma garota.

—Oh, na verdade eu fui educada em casa por meus pais, esta é a primeira vez que venho a uma escola. — confidenciou — E está sendo muito divertido até agora.

E pegou a todos desprevenidos com um sorriso.

Mentir não era o único talento de uma raposa... Manipulação também era.

—E por que você e sua família vieram para Higanbana, Ayakashi-chan?

—Sabe que eu não sei direito? — sorriu com o rosto entre as mãos — Eu apenas vim.

—É sempre assim! — quem falava era um garoto — Nunca nos perguntam nossa opinião!

—Pois é. — concordou.

—E a Shibuya te mostrou o colégio adequadamente?

—Ah... Como posso dizer, ela me mostrou o terraço. — respondeu distraído.

—Então vamos indo. — uma mão sobressaiu-se entre os alunos e pegou o pulso de Gintsune, e só então ele percebeu que fora a líder que fizera aquela última pergunta.

—Oh representante, ainda não! — reclamaram seus colegas de classe — Só mais um pouco!

—Vocês podem conversar melhor com Ayaka amanhã. — a líder respondeu já levando Gintsune da sala — Ela se transferiu para cá, estão lembrados?

O resto dos alunos ainda reclamaram mais um pouco sobre o quanto a representante era cruel, mas as deixaram ir.

—Muito bem, eu ouvi que esta é a primeira vez que você freqüenta uma escola, então vou te explicar tudo desde o inicio. — começou a dizer, já no corredor.

—Sou toda ouvidos. — Gintsune sorriu juntando as mãos nas costas ao segui-la.

—Ótimo, vamos aproveitar que hoje eu não tenho atividades no clube de literatura.

Então, só para começar, telefones celulares, e toda e qualquer tipo de modificação no uniforme escolar era estritamente proibida, explicou a representante de saia curta e meias negras enquanto enviava uma mensagem pelo celular, também era proibido usar maquiagem ou pintas as unhas, e todo e qualquer tipo de acessório — como colares, brincos e pulseiras — eram proibidos, “por isso é melhor tomar cuidado com essa sua pulseira, caso ela seja importante para você, para que nenhum professor a confisque”.

A tolerância máxima para entrar era às 8h quando as aulas começavam, o horário de saída era às 15h, e caso você quisesse poderia participar de algum dos clubes de atividades extracurriculares da escola, eles em sua maioria eram clubes esportivos, como o clube de basquete e o de atletismo, mas também havia o clube de artes, o de literatura — do qual a representante fazia parte — e etc. “Os clubes geralmente exigem muito de você então é bom pensar com cuidado”.

Os lugares na turma para se sentar eram marcados e mudavam duas vezes por ano, sendo escolhidos através de sorteio.

Cada turma é responsável pela limpeza de sua própria sala, através do revezamento de alunos, “os dias para cada equipe são escolhidos sempre aos sábados da semana anterior, não falte”, e as turmas revezavam-se para cuidar da manutenção e limpeza do resto do prédio também “a ordem é escolhida pelo conselho estudantil que a repassa para os representantes de classe”.

E mais uma coisa: Aquele uniforme que Ayaka e o resto da turma estavam usando no momento era o uniforme de verão, mas no dia seguinte todos deveriam retornar aos uniformes padrões diários, e qualquer aluno pego fora dos quesitos seria cabível de punição.

E... Bem, isso era tudo, provavelmente, se houvesse mais alguma coisa ela lembraria outro dia.

—Francamente não sei por que a Shibuya agiu daquele jeito mais cedo, ela não costuma agir assim. — a representante comentou quando as duas despediam-se no portão após o tour.

—Ah, vai ver que foi só a surpresa de me ver por aqui. — comentou segurando a bolsa por detrás da cabeça e encolhendo os ombros — Se bem que comigo Yukari sempre age dessa forma mesmo, toda mandona e estressada, eu já disse que ela vai ficar grisalha cedo desse jeito, mas ela não me escuta...

Montando em sua bicicleta a presidente a olhou.

—Então já se conheciam?

—Ah sim, certamente que sim. — Gintsune sorriu.

***

Embora essa parecesse ser uma visão otimista demais Yukari esperava que a raposa não aparecesse novamente na escola, quer dizer, ele havia aparentado estar tão entediado no dia anterior, que ela realmente esperava que ele não voltasse a aparecer, e ele também não havia comentado nada na noite anterior sobre planejar volta mais uma vez, não que ela tivesse perguntado, mas mesmo assim... Mas claro, essa era apenas uma versão otimista demais das coisas.

Pois Yukari mal entrou na sala e seus ouvidos já captaram a voz da raposa a sobressair-se por entre o burburinho de alunos:

—... Bonitinha?

E lá estava ele, sentado no lugar que lhe havia sido designado no dia anterior em sua forma de garota do colegial, com um garoto sentado sobre a mesa à sua direita e uma garota sentada a sua frente, no lugar de Aoi-chan, virada para ele.

E ele até mesmo tinha trocado o uniforme padrão pelo de Ed. Física!

—V-você sabe o que eu quis dizer. — o garoto gaguejou constrangido, passando a mão pela parte de trás do pescoço.

Qual era mesmo o nome dele? Nishida-kun? Nishizake-kun?

—Quer dizer que não sou boitinha? — a raposa colocou a mão sobre o peito.

—É! — o garoto apressou-se a dizer — Claro que é sim!

—Oh, pare com isso Ayakashi-chan, está deixando-o constrangido! — riu a garota que estava junto deles.

—Oh, mas não foi minha intenção! — a raposa virou-se para ela.

Claro que foi! Estava na cara que foi! Dava para ver isso no brilho travesso de seus olhos!

—Os clubes já estão caindo em cima da novata, é sempre assim. — a representante comentou se aproximando de Yukari, fazendo-a só então perceber que os estava encarando.

—Os clubes? — ela voltou-se para a representante e olhou mais uma vez para a raposa — Então é isso que está acontecendo?

—Claro que sim. — a representante respondeu, chamando sua atenção de volta para si — Nishitake é do clube de kendô e Minori é do clube de artes. Não se lembra do inicio do período letivo? Todos aqueles senpais caindo em cima dos kohais, querendo recrutá-los para os clubes, agora temos carne nova, é a mesma coisa.

—Entendi... E a representante pretende convidá-la ao clube de literatura?

A representante encolheu os ombros.

—Eu não, mas já avisei nossa presidente sobre a aluna nova, pode ser que ela passe aqui mais tarde, recrutar novos integrantes geralmente é função dos presidentes, você sabe.

—Eu sei. — Yukari concordou.

Ela mesma não havia entrado para nenhum clube, mas se lembrava das dezenas de convites que recebera para ingressar em um deles, quando ainda era caloura.

—Claro que não é raro que alguns integrantes mais entusiasmados tentem chamar novos alunos por si mesmos também. — a representante completou olhando em direção à raposa.

Agora Minori-San estava contando animadamente sobre a exposição que o clube de artes havia feito no último festival cultural, e como eles pretendiam fazer outra igual no próximo.

—Você agiu de uma forma bem estranha ontem. Ayaka disse que foi a surpresa por vê-la aqui.

—C-como? —Yukari assustou-se.

A representante acenou.

—Sim, afinal vocês duas já se conheciam, não é? Foi o que ela disse.

—Disse? E... O que mais ela disse?

Isso não era bom, isso definitivamente não era nada bom.

Yukari pretendia expulsar aquela raposa da escola de alguma forma, mas enquanto não conseguisse queria manter o máximo possível de distância dele, para assim não ser envolvida em qualquer uma das confusões que ele certamente arrumaria por ali.

A representante encolheu os ombros.

—Nada demais, só que já se conheciam antes.

—Ah, certo... Digo, não nos conhecemos tão bem assim, mas... Ela esteve um tempo na pousada, é, no último inverno, mas não muito.

Tudo bem, isso não era tão ruim assim, só porque ela havia conhecido previamente a nova aluna não significava que as duas precisavam ter algum tipo de relacionamento.

Isso. Bastava ignorar aquela raposa.

—Entendi, agora faz mais sentido.

—O que faz mais sentido?

—Desde ontem eu estava com a impressão de que já a tinha visto em algum lugar, mas não conseguia saber onde, mas sendo ela nova na cidade isso era impossivel, mas se você está dizendo que ela já esteve em Higanbana antes...

De repente Yukari empalideceu lembrando-se do que a representante contara em sua casa, de como ela, Aoi-chan e Kaoru saíram com o irmão e alguns amigos, mas foram totalmente ignoradas em prol de uma misteriosa garota, muito bonita de vestido branco, que mais tarde havia rejeitado o irmão da representante sem sequer parecer se lembrar dele, óbvio que ela só podia estar falando da raposa, mas naquela hora ele provavelmente havia assumido a face de uma mulher mais velha já que, até onde Yukari sabia, a primeira vez que a raposa se tornara adolescênte desde que chegara à Higanbana fora justamente para ingressar na escola.

—Yuki! — Kaouru a chamou entrando na sala — B...!

—Yukari! — a raposa chamou-a no fundo da sala, acenando para ela — Bom dia!

Manter distância. Claro. Não se envolver. Claro.

Óbvio que não podia ser tão fácil assim.

Nada podia. Nunca podia.

***

Em algum lugar, e não vou dizer onde, alguém entoava por entre lábios cerrados, uma suave canção.

Este lugar, que não direi onde é, era escuro, como se há séculos não visse a luz do dia — ou como se ali a luz nunca houvesse existido —, era um lugar de composição cilíndrica, com não mais de treze metros de diâmetro, e era impossível dizer de que material era feito suas paredes, por mais que a apalpassem, como se constituídas da própria escuridão, e acima a escuridão se prolongava e prolongava como se não houvesse fim.

Como um poço, que há muito fora selado e abandonado.

No centro deste lugar um circulo de luz prateada estava desenhado.

E no centro deste circulo de luz sentava-se uma mulher.

Tinha os lábios pintados de vermelho, e em suas mãos três pequenas bolas de tecido — recheadas com o que parecia ser arroz, ou serragem talvez — giravam no ar, num pequeno jogo de malabarismo ao qual ela sequer prestava atenção, os olhos sempre fixos na escuridão acima de sua cabeça, como se esperasse por algo, por alguém, enquanto os lábios cerrados continuavam a entoar aquela melodia.

Num equívoco uma das bolinhas bateu-lhe nas pontas dos dedos e quicou para o chão, rolando para além do circulo de luz, sumindo escuridão adentro, com o equilíbrio perdido as outras duas bolas também caíram, e ela assistiu enquanto elas também sumiam na escuridão.

Pousando as mãos sobre as coxas a mulher ergueu novamente o olhar para a escuridão que se assomava sobre si.

Quando seus lábios entreabriram-se, uma triste e saudosa poesia por eles escapou:

Floresce a ameixeira.

E canta o rouxinol.

Mas estou só.

Ela sabia que ele viria. Ele viria por ela.

 

 


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Notas finais do capítulo

Quem será essa personagem misteriosa no final do capitulo?
Ah sim, hoje é meu aniversário.



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