O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 40
O último cangaceiro


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Do lado de fora, chuva. Dentro, gratidão e fé. Com o cair das lágrimas do céu, o povo de Água Funda sentiu que Deus ainda olhava por ele. Assim, os pobres coitados resolveram que aquele dia histórico precisava ser marcado por um ato palpável de gratidão. Fizeram o que sabiam fazer de melhor: foram à missa. A igreja, por mais que não estivesse em sua melhor forma, continuava receptiva. Dessa vez, não havia medo, discórdia ou dúvida. Entrando pela porta principal, os corpos molhados dos cidadãos de Água Funda rapidamente se curvavam ao se depararem com Jesus Cristo na cruz. Em seguida, olhavam para os lados e buscavam um espaço vago nas dezenas de bancos de madeira.

Sentados, aguardavam a chegada do padre. Sendo mais um domingo no ano, aquela deveria ser uma missa comum, ao menos em teoria. No entanto, a chuva que se iniciou na madrugada e se prolongava até aquele horário – próximo das cinco horas da tarde – mudou tudo. Após quatro longos anos de seca, Água Funda voltava a encontrar aquilo que buscava em seu próprio nome. Com aquele presente dos céus, o povo sabia que aquele dia não poderia passar batido e, recuperando a fé que às vezes parecia esquecida, retornaram à casa de Deus para agradecer.

O que os cidadãos não sabiam, entretanto, é que aquela missa também tinha um significado político. Com a incursão dos soldados contra os cangaceiros no dia anterior, os primeiros resultados já estavam sendo colhidos. Ao saber da morte de alguns bandidos, Breno Farias urrou de alegria. Ele tinha consciência de que Miguel tinha grande responsabilidade nisso. Sendo assim, não podia deixar que a ocasião passasse despercebida e, dessa forma, resolveu reatar o relacionamento político com o homem. O prefeito, entretanto, não era a única figura de impacto político presente. Ali, mais bem vestido que qualquer outro católico, Gustavo Água-Santa rezava para que o banco de madeira não quebrasse com seu peso. Com acesso privilegiado a informações do estado, ele se alegrava com a abertura dos novos contratos que viriam. O fato era: todos ali estavam ganhando algo e tinham muito a agradecer.

Quando o padre chegou, porém, a aura do ambiente mudou. Miguel não trazia o sorriso costumeiro, nem os muitos cumprimentos que sempre fazia quando se deparava com a população mais pobre. Agora, ele sentia como se carregasse uma cruz maior do que seus ombros aguentavam e, em instantes, ele poderia cair. Por sorte, o peso em sua alma foi confundido com pura seriedade sacerdotal e, em instantes, ele estava preparado para iniciar a missa. Trajando uma batina branca como a paz, ele começou o rito de forma quase automática. Ao invés de falar com a alma, usava a memória, o reles costume. O povo, porém, seguia cego – ou protegido – pela gratidão. Com a chuva ainda caindo do lado de fora, a postura fechada de um padre era o menor dos problemas do mundo.

A missa prosseguiu nesse ritmo até que a leitura de um trecho específico fez com que o coração do religioso palpitasse. Era o seguinte:

“E Deus falou todas estas palavras:

Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão.

Não terás outros deuses além de mim”.

            Era Êxodo, capítulo vinte, versículos do um ao três. Uma leitura bastante conhecida e cujo padre já havia estudado ao longo dos tantos anos de sacerdócio. Agora, entretanto, todo aprendizado parecia ser mais um peso do que uma forma de salvação. Sem qualquer forma de fuga, Miguel agora entendia: ele havia abandonado Deus há muito tempo, adorando a uma coisa deformada, imoral e violenta. Que tipo de monstro ele havia se tornado?

Ouvindo a resposta do vazio, ele sabia que não podia transparecer a terrível cruz que carregava. Então, voltando a se concentrar na missa, seguiu a estrutura padrão sem deixar que sua mente viajasse. No fim, o padre entendia que reconhecer o erro poderia ser mais doloroso que qualquer outra opção. Dessa forma, avançou sem inspiração ou reflexão, chegando ao fim do ritual com a completa ausência da benção divina. Olhando para os fiéis, percebeu que tivera sorte: todos pareciam encantados com a celebração, em especial Breno Farias, sua esposa, Clara, e sua irmã, Lara.

— Idem em paz e que o Senhor os acompanhe! — Miguel encerrou a celebração como se tirasse um enorme peso das costas.

Deixando o altar, via a maior parte dos fiéis saindo do templo sagrado, sendo possível enxergar uma felicidade quase santa em seus rostos. Passando pela porta principal, eles se deparavam como uma Água Funda ainda banhada pela chuva duradoura e, diante de tal situação, regozijavam e sentiam a presença de Deus cada vez mais forte. O padre, por outro lado, não sentia nada disso. Para ele, era como se o abismo tivesse tomado conta de sua fé e, naquele momento, só lhe restava encarar o precipício que era a existência.

— Uma grande missa para um grande dia! — Breno parecia mais animado que o normal. — Como se sente, padre? Tudo deu certo no fim!

“Tudo?”, Miguel se questionou. Primeiro, ele tinha ciência de que tinha vendido a alma e isso já era ruim o bastante. Para piorar, havia um buraco naquela história toda: Lúcio e Diabo ainda não haviam sido encontrados. A situação podia piorar muito e, diferentemente do político, o religioso não fingia que estava tudo bem.

— Estou cansado, Breno. A política cansa — ocultou seu ódio em expressões generalistas, mas Breno captou tudo muito bem. Logo em seguida, o religioso virou-se e olhou para Saulo. O rapaz atuava como coroinha, sendo um excelente assistente durante as missas. — Vamos logo com isso, Saulo. Estou com uma dor de cabeça terrível.

— O que é isso, padre? — Breno seguia sendo dissimulado. Junto dele, Clara, Lara e Gustavo acreditavam naquela atuação mequetrefe. — Hoje é dia de comemorar!

— Precisamos conversar a sós, Breno — o padre tinha uma expressão séria, além de uma voz firme.

— A sós? — Farias olhou ao redor e viu que a igreja estava quase vazia. A maioria dos fiéis já havia saído e o lugar agora só estava preenchido pelo núcleo político e sua pequena família. — Não há nada que você possa dizer para mim que não possa dizer para minha irmã e minha esposa. Somos uma família, Miguel. E quanto ao Gustavo? Ele é nosso amigo, não é mesmo?

Furioso, o religioso pensou em revelar toda a verdade. Queria gritar que Breno era um traidor e que lhe obrigara a tomar decisões terríveis. Mas aquilo era mesmo verdade? O prefeito era tão poderoso a ponto de decidir como um homem de Deus agiria? No fundo, Miguel sabia: estava apenas querendo enterrar a própria culpa na cova de outra pessoa. Entretanto, não teria tempo para discutir sobre isso. Com um estrondo, a porta da igreja foi fechada, chamando a atenção de todos.

Próximo a entrada, um homem caminhava lentamente. Com um chapéu de couro sobre a cabeça, sombras se projetavam sobre o rosto, escondendo sua identidade. Seu andar, porém, entregava algumas informações. Com passos lentos, o homem claramente fazia um esforço hercúleo para mexer as pernas. Além disso, também era possível ouvir grunhidos de dor a cada novo passo dado. “Ferido ou cansado?”, Miguel se questionou. “Provavelmente os dois”.

Aproximando-se da luz, o homem de chapéu teve sua identidade revelada. Com o rosto castigado pelas dores do corpo e da alma, ali estava Lúcio Arcanjo, o último cangaceiro. Em seus olhos, não havia nada mais senão ódio. Miguel, Breno e Gustavo tremeram ao reconhecer o homem, ao mesmo tempo em que as mulheres presentes pareciam não entender toda aquela comoção. O menino Saulo, por outro lado, lembrava bem dos atos do cangaceiro e rapidamente escondeu-se atrás do altar. Àquela altura, eles eram os únicos presentes na casa de Deus.

— Lúcio, eu posso explicar — o padre se adiantou.

— Calma lá, padre — Arcanjo sacou um revólver polido, que brilhava ante as luzes tremulantes das velas. Aquela ação fez com que o religioso pausasse a sua ação, assim como Clara e Lara entendessem que a ocasião não era de festa. — Então vai ser assim? já me diz que pode explicar? Mas explicar o quê? O que foi que eu não entendi?

Apoiado em um dos bancos centrais da igreja, Lúcio observava o grupo a sua frente. Com um olhar atento, ele percebeu Breno gesticulando para que sua esposa e irmã fugirem pela porta dos fundos. As mulheres até fizeram menção de correr, mas o cangaceiro foi mais rápido.

— Nada disso! — Apontou a arma na direção delas. — A minha conversa é com o padre, mas vocês também têm que ficar aqui. Agora me diga, Miguel. O que você tem pra explicar?

— Tenho tudo, Lúcio — naquele momento, o religioso abriu o coração. — Eu não queria fazer o que fiz. Não queria que tanta gente morresse, mas eu me vi sem opção. Eu não tive escolha!

Em meio ao desespero, as mulheres Farias não questionavam as palavras do padre. Tudo que queriam era um meio de escapar daquele pesadelo, mas estava evidente que aquilo não aconteceria tão cedo. Lúcio, por outro lado, deixou que um sorriso jocoso ficasse exposto, provocando calafrios em seus reféns.

— Então é isto: o padre da cidade se une com o prefeito, mata meu grupo e, pior ainda, assassina minha mãe. A culpa é de quem, então? Do prefeito? — O último cangaceiro observava muito bem cada uma das reações. Estando com um grau de nervosismo extremo, Breno respirou fundo e deu um passo à frente.

— Fui eu, Lúcio — o político não dava falsos sorrisos e nem parecia interessado em cumprimentar supostos aliados. — Se for se vingar de alguém, se vingue de mim. Minha irmã e minha esposa não têm nada a ver com isso. Deixe que elas saiam, por favor!

— Elas não têm nada a ver, entendo — os sorrisos de Lúcio pareciam cada vez mais diabólicos. — Eu tenho uma pergunta: o que minha mãe tinha a ver? Que eu saiba, ela estava pra morrer de velhice e mal conseguia ficar de pé. Ela lhe oferecia muito risco, prefeito?

Breno Farias engoliu em seco. Podia pressentir muito bem o que estava por vir, mas sentiu o frio da morte congelar seus braços e pernas. Paralisado, ele só conseguia rezar para tudo aquilo não passasse de um pesadelo.

— O gato comeu sua língua? — O cangaceiro destravou a arma. — Eu vou te mostrar como as coisas são.

Com a mão firme, Lúcio Arcanjo puxou o gatilho. O estrondo da pólvora explodindo foi acompanhado pelos gritos de desespero dos reféns. O projétil atravessou o templo de Deus vorazmente, parando apenas quando se deparou com a parede dura que era o crânio de Lara Farias. O sangue voou e encontrou seu destino nas vestimentas e peles de Breno, Clara e Gustavo. Mais afastado, o padre ainda estava incrédulo quanto a veracidade daquela situação. Os outros, porém, agiam. Num frenesi de horror, Clara correu na direção das portas dos fundos da igreja, enquanto Breno ainda encarava o corpo de sua irmã morta. Água-Santa foi, no fim, aquele que tentou algo com potencial mais efetivo.

Puxando o revólver que escondia atrás das calças, começou a disparar na direção do último cangaceiro. Sua mira, no entanto, não era a das melhores. As balas atravessaram os bancos, a entrada e até mesmo o piso do templo divino, mas não encontraram o corpo do bandido. Sem perder tempo, Lúcio mirou no magnata e disparou. Mais uma vez, o projétil advindo da arma polida viajou curtos metros antes de encontrar o seu destino. Dessa vez, não se deparou com duros ossos. Ao invés disso, afundou-se na macia carne do peito, cortando a massa vermelha de Gustavo por dentro até se deparar com o coração. Gritando desesperadamente de dor enquanto caía no chão, o magnata deixou que seu revólver voasse para longe, ficando próximo do altar. Em seguida, com o corpo encharcado de sangue, ele sentiu a morte chegar e a escuridão o tomou por completo.

De pé, Padre Miguel já havia se entregado. Entendia que era um monstro e agora se colocava a disposição de Deus para receber a punição que merecia. Ele até mesmo vislumbrou a morte quando o cangaceiro lhe apontou o revólver, mas algo mudou o curso natural das coisas. Em um momento de pura adrenalina, Breno Farias pegou a arma caída de Gustavo e, em seguida, efetuou três disparos na direção de Lúcio. O primeiro projétil destruiu parcialmente o ombro do cangaceiro, que deixou que sua arma caísse longe de onde estava. O segundo foi em seu peito, fazendo com que o homem perdesse o equilíbrio e caísse no chão. O terceiro, no entanto, encontrou o nada. Trêmulo, Breno mal podia esperar para finalizar aquele desgraçado.

Caminhou até o cangaceiro caído. No chão, Lúcio tremia com as dores e com o sangue que tomava conta de seu corpo. O fim havia chegado. Com o revólver em mãos, o prefeito de Água Funda vislumbrou o estado do último cangaceiro.

— Você vai encontrar sua mãe no inferno, desgraçado! — E puxou o gatilho.

Nada. A última bala já havia sido disparada. Um reles segundo de distração por parte de Breno foi o suficiente para a reação de Lúcio. Puxando forças do inferno, ele sacou agilmente uma faca de arremesso e jogou-a contra o político. A lâmina penetrou a frágil pele do pescoço e se deparou com os vários caminhos que o sangue tomava na região. Usando as mãos para evitar o terrível sangramento, Breno Farias sentiu sua garganta queimar e imediatamente foi ao chão. Não estava morto, mas o sofrimento era intenso e ele precisava de ajuda urgente.

— Padre! — ele dizia com grande dificuldade, cuspindo sangue a cada sílaba. — Socorro!

Miguel seguia de pé. Olhando para cima, tentava entender os designíos de Deus. “Por que eu ainda estou vivo?”, ele questionava sem obter uma resposta clara. Passando a encarar o cenário ao redor, pôde ver o inferno na terra. Ao seu lado, dois cadáveres ainda quentes, enquanto a sua frente havia quem estivesse para morrer. Passou a caminhar lentamente e, após poucos instantes, estava diante de mais uma cena de morte. Caídos um na frente do outro, prefeito e cangaceiro ainda se encaravam. Lúcio não estava morto, mas era só questão de tempo para que os ferimentos lhe extirpassem a vida. Quanto a Breno, o sangramento era contido pela pressão feita com as mãos, mas ele não duraria muito.

O padre, porém, não parecia muito apressado. Olhava para os homens às portas da morte e perguntava a si mesmo se tudo aquilo tinha que terminar daquele jeito. Foi então que apanhou a arma caída do cangaceiro e, logo em seguida, olhou para o Cristo na cruz.

— É isso que você quer que eu faça? — perguntou ao Filho de Deus.

Sem obter resposta, voltou a olhar para os dois moribundos. Lúcio tinha um estranho sorriso no rosto, como se comemorasse o caos que causou.

— Era pra você ter conseguido — Miguel disse ao se aproximar. — Era pra você ter me matado! Por que não conseguiu, por quê?!

— Esse é o fim, padre — o cangaceiro respondeu com dificuldade. — Você adorou o deus errado. A gente ainda vai se ver no infer...

Antes que pudesse concluir sua fala, foi interrompido por um tiro na cabeça. Com o cano do revólver quente, Miguel virou-se então para Breno Farias.

— Me ajude, padre — o político estava pálido em decorrência da perda de sangue. — Chame ajuda!

“Ajuda?”, o padre refletiu. A ajuda não deveria estar longe. Com os sons dos disparos, era só questão de minutos para que a polícia entrasse pelas portas dos fundos e encontrasse aquela confusão. Quase que instantaneamente, o religioso começou a ouvir batidas na porta de entrada, que seguia trancada. “Eles estão vindo. Terei que ser rápido”.

— A culpa é sua, Breno — Miguel então apontou o revólver para a cabeça do político. — Desculpe-me!

A surpresa nos olhos de Breno só era superada pela dor. O que o padre não sabia, no entanto, era que Saulo finalmente criara coragem para sair de seu esconderijo atrás do altar. O menino então se deparou com a terrível cena do religioso puxando o gatilho e assassinando o prefeito de Água Funda.

— Padre! — ele exclamou em um momento de descontrole emocional. — O que...

— Não! — Miguel começou a chorar. Olhava para Saulo e tinha a certeza de que o garoto não esconderia aquela terrível verdade. — Eu não queria isso!

E então, antes que o jovem pudesse correr, o homem de Deus disparou contra ele. Com uma perfuração no pescoço, Saulo começou a se engasgar com sangue enquanto se debatia no chão. Foram longos segundos de agonia antes que a morte aliviasse a dor. Quanto ao padre? Ele seguia vivo e com a alma maculada. Com o revólver ainda em mãos, foi até o corpo do cangaceiro morto e colocou a arma ao seu lado. Logo em seguida, olhou na direção das portas dos fundos. Não tardou para que um policial aparecesse e quase vomitasse com aquela cena visceral.

— Meu Deus, padre! — O agente da lei tremia. — Que disgraça aconteceu aqui?!

— Foi ele — Miguel apontou para o corpo frio de Lúcio Arcanjo. — Foi tudo ele. Quando eu consegui pará-lo, era tarde demais.

Horrorizado, o policial não teve que aguentar toda aquela tragédia sozinho por muito tempo. Em instantes, mais agentes adentraram a casa de Deus e, logo atrás deles, dezenas de curiosos queriam entender o que se passara no local. A morbidez das pessoas, entretanto, foi reprimida pelos policiais que impediam que elas adentrassem a cena do crime. Entre as pessoas impedidas, estava Clara, que chorava enquanto queria saber o destino de seu esposo. Na igreja, ficaram apenas os defensores da lei, o padre e os cadáveres.

— Como... Como que essa desgraça foi acontecer? — o homem fardado utilizava a incredulidade como um mecanismo de defesa. — Eu nunca vi algo assim, ao menos não aqui em Água Funda.

— Acho que ele quis atacar o prefeito e a mim por conta da caça aos cangaceiros. Um homem vingativo é um homem perigoso — o padre estava de volta ao controle de si. Mentia de uma forma que nem sentia. — Sobrou até mesmo pro coitado do Saulo e a pobre Lara. Deus os tenha.

Após aquele breve depoimento, o religioso olhou mais uma vez para o Cristo crucificado. Não aguentando a repreensão divina, virou o rosto e decidiu que seguiria vivendo aquela mentira. A verdade era pesada demais para suportar.

Distante de tais dilemas, Diabo ainda cultivava medo. Depois de tudo que passara com a pequena família, ele temia que não fosse bem-vindo no novo destino. Esse temor, no entanto, não era compartilhado. Sofria em silêncio e, da mesma forma, rezava. “Que Deus tenha misericórdia de mim”, orou enquanto imaginava o que poderia resultar daquele encontro. Estava a poucos quilômetros de reencontrar Regina Arcanjo, a ex-esposa do líder de seu antigo bando. Ele sabia que a mulher não aprovava a violência e que, pior ainda, conhecia muito bem o histórico de brutalidade que ele carregava. “Não poderei julgá-la caso ela me expulse de lá”.

Ao seu lado, no entanto, existia uma dose de esperança. Descansando na luxuosa carruagem, José de Lima dormia como um bebê. Os sinais de cansaço estavam espalhados em seu corpo e em sua postura. Logo ao lado dele, Beatriz mantinha Alice entretida. A bebezinha parecia sentir que algo de bom estava por vir. Mais a frente, o condutor, Bárbara e Socorro completavam o grupo. Todas excelentes pessoas e com históricos ilibados, ao menos quando comparados ao de Diabo. “Será que o pai de Regina ainda é vivo? Ele odiava os cangaceiros”, o homem relembrou.

Foi então que a primeira voz externa à carruagem foi ouvida.

— Parados aí! — Um homem com uma espingarda na mão vigiava aquela estrada. Não era um agente da lei, mas um simples trabalhador da zona rural. Isso se fazia evidente em suas roupas, sotaque e até mesmo na falta de alguns dentes, como julgou o condutor da carruagem. — Quem são você?

— Viemos em paz, meu amigo — o condutor se antecipou na resposta. — Por acaso este é o caminho para o sítio de dona Regina?

— É o caminho pro sítio do pai dela, sim — o vigia pareceu mais calmo diante da tranquila voz do homem da carruagem. — O que vocês quer?

— Eu apenas faço o transporte, amigo. Trago comigo homens e mulheres trabalhadores que precisam de um novo lar. Sei que isso parece ser uma proposta estranha, mas cada um deles tem habilidades únicas que podem ser de grande utilidade para este adorável lugar.

Socorro olhou para Bárbara e arregalou os olhos em decorrência das palavras usadas pelo homem. A mãe de Beatriz apenas sorriu, como se sentisse orgulhosa dos contatos que obtivera ao longo da vida. O vigia, entretanto, parecia inseguro. Por mais tranquilizadora que fosse a voz do condutor, aquela era uma oferta incomum.

Mim desculpe, mas... — começou, mas logo foi interrompido por uma voz mais forte.

— Chame Regina! — Diabo estava morrendo de ansiedade para resolver aquilo.

— E quem é que chamando a dona?

Silêncio. “Diabo” era uma palavra forte e nem mesmo ele sabia se aquele nome ainda o definia.

— Sebastião — apresentou-se não só para o vigia, mas também para si mesmo. — Diga que é Sebastião quem está chamando!


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