O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 38
Extrema-unção


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Aproveitando-se dos luxos que a política lhe dera, Padre Miguel descansava em uma belíssima carruagem. Com os olhos fechados, ele ponderava sobre as decisões que havia tomado, assim como aquelas em que se absteve. O condutor do veículo não tinha pressa. A sua frente, dois cavalos de raça pura seguiam em um ritmo lento, de forma que o religioso mal sentia os tremores causados pela estrada irregular. Porém, ainda que ele esbanjasse conforto físico, sua alma tremia mais que terremoto. Lembrava-se bem de como tudo começou, décadas atrás. Ele tinha uma ideia, uma esperança: tornar o Sertão um ambiente acolhedor para todas as pessoas, principalmente aquelas que mais necessitavam. “Estou conseguindo isso?”, ele perguntou ainda com os olhos fechados.

Do lado de fora, o vento sibilava enquanto o entardecer transformava as cores do céu. Sem receber nenhuma resposta divina, Miguel voltou a fazer o velho exame de consciência. Pensou na Lagoa da Esperança e como ela tinha um alcance mínimo. “Quantos gatos pingados a Lagoa realmente ajudou? Uns dez ou no máximo vinte? Isso é o suficiente?”, indagou. Ele sentia que ajudar tão poucos era algo inútil. De que adiantava ter o sorriso de alguns, quando a maioria ainda padecia em sofrimento? Por um momento, o religioso teve o conforto da certeza. Para ele, parecia evidente que sacrifícios eram necessários, desde que os ganhos fossem máximos. No entanto, não tardou para que as dúvidas retornassem e, com a cabeça quase explodindo, ele voltasse a pensar em qualquer outra coisa que fosse.

Numa tentativa covarde de autogratificação, refletiu sobre as vidas que salvou. A primeira que veio à mente foi a de Maria das Dores, mulher sofrida que tivera tantos trabalhos ingratos, mas agora tinha um propósito e, de certa forma, conforto. Depois, chegou a vez de lembrar do jovem Saulo. Além de estar ocupado com trabalhos longe do crime, o garoto auxiliava o padre nas missas, criando assim um grande interesse pela leitura de Bíblia e as tradições da Santa Igreja. Pensou então em Bárbara, pois ele que havia investigado e enviado José para salvá-la. No entanto, isso o fez lembrar do rapaz e, pior ainda, de sua esposa. Teria os salvo ou apenas condenado a uma vida de miséria e violência?

Sentindo uma secura na boca apenas por pensar no assunto, Miguel abriu os olhos e olhou para o lado. Sobre o banco, podia ver uma pequena caixa metálica. Abriu-a e, após ver o óleo que usaria na Extrema-unção (e todos os outros equipamentos sacerdotais), esticou a mão e retirou um cantil. Bebeu metade da água que ele continha, deixando que uma parcela considerável do líquido caminhasse sobre seus lábios e lhe desse algum alívio.

— Chegamos, padre — o condutor avisou.

Olhando pela janela, o religioso viu que o aviso era certeiro: ali estava um verdadeiro acampamento de cangaceiros miseráveis. Segurando a caixa com uma das mãos, o padre agradeceu ao condutor e desceu da carruagem. Do lado de fora, viu as casinhas pobres, a secura e a sensação de insegurança. Mais uma vez, sentiu sua consciência pesar, mas resolveu que não era a hora de dar ouvidos a ela. “Tarde demais para isso”, pensou enquanto caminhava com seus equipamentos. Bastaram alguns passos para que ele finalmente visse os cangaceiros.

— Padre! — Dando passos curtos, mas firmes, Lúcio Arcanjo se portava como o líder que era. Um pouco atrás dele, Amanda e Eduardo olhavam com desconfiança para o religioso. — Vamos logo com isso!

Temeroso, Miguel olhou para o condutor, que simplesmente acenou com a cabeça indicando que aguardaria ali. O padre então seguiu os cangaceiros, que caminhavam com calma até a casa mais ajeitadinha do local. Lá dentro, Miguel se surpreendeu: não só Diabo se fazia presente, como também Maria Beatriz. Com uma explosão de alívio, o religioso disse:

— Bia! Como é bom ver você, minha criança!

A “criança” carregava nos braços outra criança: Alice. O padre olhou com carinho para as duas, mas logo foi tomado por uma súbita culpa pelo o que estava por vir.

— Padre — Bia respondeu de forma fria. Desiludida, ela sentia que não podia verdadeiramente confiar no homem que ela tanto admirara. Preferia um Diabo, um homem truculento e bruto, mas honesto, do que um falso anjo com intenções malignas.

Sentindo o ar congelante que havia entre eles, o padre resolveu prosseguir. Estavam todos numa espécie de vestíbulo, um pequeno espaço contando apenas com um sofá mal costurado e alguns quadros de família. Ao lado, podia-se ver uma passagem. Miguel podia sentir: era ali que estava a moribunda.

— Podemos andar logo com isso? — Sério, Lúcio cortou o silêncio enquanto rezava para que sua mãe encontrasse paz.

— Claro, claro — sentindo uma intimidação crescente, o padre parecia ter perdido o jeito com as palavras. Estava na hora de deixar de ser político e voltar a ser sacerdote. — Você na frente, por favor.

Com o coração ainda pesado, o cangaceiro líder adentrou o quarto da mãe. Deitada, Joana Arcanjo jazia numa cama não muito confortável, mas que cumpria o seu papel dentro das limitações do local. Com os olhos apertados, era evidente que a mulher não estava enxergando bem, fazendo assim um esforço hercúleo para ver que figuras adentravam o quarto.

— Somos nós, mãe — Lúcio falou vagarosamente. — O padre também está aqui.

— O padre... — ela parecia pensar muito bem em cada uma das palavras, ou talvez só estivesse ficando cada vez mais lenta. — Você trouxe o padre.

— Trouxe sim, mãe.

E então, silêncio. Todos os cangaceiros – além de Bia, Alice e Diabo – estavam no quarto. Cada um guardava diferentes memórias envolvendo Joana e tinham consciência de que ela estava em seus últimos dias. O tempo era implacável e a velhice era uma vilã que não podia ser derrotada. Só restava ao grupo dar descanso à matriarca, pois ela já havia cumprido sua missão para com todos eles. Percebendo que aquele era o momento propício para a Unção dos enfermos, Padre Miguel colocou a caixa no chão e abriu-a delicadamente. Retirou um frasco com o óleo e, cautelosamente, aproximou-se da moribunda.

— Por esta santa unção e pela Sua infinita misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para que, liberta dos teus pecados, Ele te salve e, na Sua misericórdia, alivie os teus sofrimentos — o religioso dizia enquanto ungia as mãos de Joana com o óleo sagrado. Repetiu os gestos e palavras quando ungiu a testa da mulher.

Sentindo que Deus a olhava de cima, Joana Arcanjo sorriu. Ainda que estivesse soterrada de dores e incômodos, ela agora podia respirar a paz que tanto almejava. Percebendo tais emoções positivas em sua mãe, Lúcio deixou que uma singela lágrima escapasse e descesse pelo seu rosto. Bia, que conhecia a mulher há pouco, também emocionou-se. Elas compartilhavam algo em comum: eram mães. “Que quando eu parta, eu possa ter certeza de que Alice esteja bem”, a garota refletiu brevemente.

Finalmente, o padre levantou-se, guardou o óleo e se preparou para sair.

— Está feito, dona Joana. Que Deus ilumine o seu caminho! — Miguel falava de forma automática, como se não tentasse pensar muito no que estava por vir. — Com licença, senhores.

Tendo se despedido dos cangaceiros, o religioso estava pronto para voltar à carruagem. Mal podia esperar para fugir daquele antro de perigo, criminalidade e decadência. Entretanto, parou ao vê-la novamente: ali estava Maria Beatriz, uma das pessoas com quem ele tanto conviveu durante os longos anos da Lagoa da Esperança. Miguel sabia: não podia deixá-la ali, ainda mais depois do retorno de sua mãe, Bárbara.

— Bia — o religioso chamou e, logo em seguida, olhou para os lados, de forma que ficou evidente que ele queria conversar algo de forma privada. Diabo, que não tirava o olho da garota e sua filha, estranhou. — Podemos conversar? É importante.

Beatriz não era estúpida: tinha consciência de que o ataque de meses atrás fora planejado pelo prefeito, grande aliado do padre. O tempo com os cangaceiros também lhe fizera ver as coisas de uma forma um pouco diferente. Talvez as nobres intenções do padre não fossem tão nobres assim. Talvez toda essa busca pelo bem comum causasse mais mal do que bem. Ainda assim, considerando toda a ajuda que Miguel prestara no passado, a mulher decidiu se afastar dos cangaceiros para ouvir o que ele tinha para dizer.

— Ela voltou, Bia — Miguel falou assim que obtiveram o espaço desejado. A garota não entendeu bem o que aquilo queria dizer, então o religioso reforçou. — Bárbara voltou para Água Funda! José conseguiu!

Por um instante, a mãe de Alice sentiu alegria. No entanto, a razão foi mais veloz em cortar essa emoção antes que ela se manifestasse em um sorriso. Se Bárbara estava em Água Funda – e o padre sabia disso –, por que ele não aproveitou para trazê-la até a filha? E sobre José? O que se classificaria como “conseguiu”? Salvou Bárbara, mas morreu? Salvou, mas foi preso? Tais dúvidas ficaram escancaradas no rosto da moça, fazendo com que o padre sentisse o chão e suas certezas tremerem.

— Cadê ela? — Bia indagava com uma frieza que faria Diabo se orgulhar. — Cadê ele?

— Ela? — o padre falou com insegurança. — Ela está na cidade, já disse. Eu teria a trazido para cá, mas não sabia que você estava aqui, menina.

— Era difícil adivinhar, né? — Beatriz se utilizava de um tom de desafio. — Quem diria que Diabo se juntaria com os cangaceiros, né? E que eu estaria com eles, então? Você, o homem mais inteligente de Água Funda, não pensou nisso?

Miguel sentia que não bastava apanhar para a mãe, também seria surrado pela filha. Respirou fundo antes de tentar responder:

— Eu sei que todos nós passamos por dificuldades. Eu sei que o prefeito fez muitas bobagens, mas a verdade é só uma: sua mãe te espera em Água Funda. Venha comigo!

De forma agressiva, o padre tentou segurar o braço da moça, mas ela se afastou rapidamente enquanto continuava segurando Alice com firmeza.

— Tem mentira nos seus olhos, padre! — Bia foi firme em cada uma das suas palavras. — Eu não confio mais em você. Vá embora!

Miguel ficou paralisado. Sabia que o peso em sua alma apenas se elevaria caso deixasse a garota para trás, mas o que poderia fazer? Sequestro? Não, aquela era uma ideia estúpida. Ainda assim, também sabia que não poderia revelar o seu verdadeiro propósito. Era óbvio que a garota contaria a todos os cangaceiros que a morte viria logo após o padre. Não a morte natural, mas a morte causada por homens que acreditam que o poder vale mais do que vidas. Então, vendo-se sem opções, o religioso simplesmente calou-se.

Caminhando com o peso da omissão sobre os ombros, ele seguiu até a carruagem sem se despedir. Ao mesmo tempo, Diabo foi até Bia e percebeu um olhar de tristeza na garota, mas não só isso: também havia raiva. Sem fazer perguntas, o ex-cangaceiro simplesmente observou a carruagem indo embora, enquanto torcia para que aquele fosse o último encontro com o suposto homem de Deus. Feliz ou infelizmente, ele estava certo. Com o desaparecimento da carruagem no horizonte – e com todos os rituais tendo sido executados –, os cangaceiros, aos poucos, voltaram aos seus trabalhos rotineiros.

Joana continuou deitada e, próximo dela, Lúcio agradecia por todo o processo ter acontecido da melhor forma. Agora, o destino da mãe estava nas mãos de Deus e o cangaceiro líder sabia que tinha feito tudo da melhor forma possível. Independente do que se sucedesse, ele acreditava que finalmente poderia dormir em paz. Ao mesmo tempo, Eduardo e Amanda seguiam com os trabalhos braçais do acampamento. Como não estavam dispostos a saírem para mais uma caçada, permaneceram na base, mas se direcionaram a uma espécie de depósito construído ali. Dentro do local, eles podiam encontrar algumas dezenas de cactos armazenados sem muito zelo. Com equipamentos em mãos, a dupla começou a retirar e armazenar a água até então guardada naquelas plantas.

Ainda mais afastada dos outros, Maria Beatriz colocava sua filhinha para dormir. Em um quarto próprio, a mãe da menina tinha fúria nos olhos. Diabo, que acompanhava ela de um lado para o outro, simplesmente observava. Sentado em uma singela cadeira de madeira, o ex-cangaceiro até pensava em puxar algum assunto, mas não tinha muita disposição ou coragem. No fim, não precisou.

— Aquele padre fi duma égua aparece como se nada tivesse acontecido! — Era como se uma fera tivesse se soltado dentro da alma da moça. — “Ah, sua mãe está comigo e José conseguiu”. Desgraçado!

— Eu não estou insinuando nada — Diabo disse antes de começar a insinuação —, mas eu posso dar um jeito nele, caso queira.

— Nossa, Diabo, não! — Ela parecia se sentir ultrajada, mas no fundo sabia que aquela opção não era totalmente absurda dado o contexto do mundo em que vivia. — Mas obrigada de todo jeito.

— Então acho que é isso — o homem com o rosto cheio de cicatrizes não tinha mais assunto a tratar. Com o céu escurecendo aos poucos, ele decidiu que era um bom momento para dormir. — Vou deixar ocê e a Alice em paz. Até mais, dona Beatriz.

— Até — Bia respondeu por pura educação, pois o estresse estava quase a matando.

Diabo se retirou da casinha e começou a caminhar pela área central do acampamento. Lá, além de uma fogueira apagada, tinha também uma garrafa de café no chão junto de uma caneca velha e empoeirada. Não importava: o ex-cangaceiro colocou o café velho na caneca e tomou sem pensar duas vezes. Que dia era aquele? O mundo, por um instante, parecia ter congelado. Será que ele teria parado de girar? Aquelas eram questões que iam além do conhecimento deficitário do homem, mas ele logo obteria algumas respostas.

Há algumas centenas de metros dali, doze homens montados em doze cavalos se preparavam para um ataque. Eram homens do estado, homens da lei. Fardados, levavam armas e suprimentos médicos. O objetivo era claro: exterminariam a última resistência dos cangaceiros no estado. Dessa vez, eles não cometeriam o erro de seus antigos colegas. Ao invés disso, iriam matar todos os presentes no acampamento, sem qualquer chance de rendição ou coisa do tipo. Dividiram-se em duas equipes: seis por um lado, seis pelo outro. Apesar das tantas mortes dos fardados anteriores, agora eles exalavam confiança: esmagariam os cangaceiros de uma vez por todas.

O que eles não sabiam, entretanto, era que Diabo estava em estado de alerta. Apesar do momento de distração e confiança dos outros membros do grupo, o homem com o rosto cheio de cicatrizes tinha provado recentemente da violência perpetrada pelos fardados. Agora, olhando através da luneta que pertencia a Amanda, ele via um grupo de seis homens á cavalo aproximando-se pela porção Sul. De longe, poderiam até mesmo parecer viajantes, ao menos quando eram apenas silhuetas, sem uma identificação clara de cores e padrões. No entanto, Diabo não era besta: conseguia reconhecer uma emboscada quando via uma. Passando a apontar o instrumento para o lado oposto, não tardou de enxergar outro grupo com seis homens.

— Os fi duma égua tão vindo! — gritou para que o Universo inteiro pudesse ouvir.

Todos os ouvidos do acampamento captaram aquele alerta. Bia, em seu quarto, agilmente segurou Alice e foi para debaixo da cama. Joana, por outro lado, simplesmente pediu a Deus:

— Proteja meu filho.

Lúcio então partiu em disparada para o lado de fora e deparou-se com o grupo formado. Diabo, ainda com a luneta, fazia caras e bocas ao identificar as fardas dos inimigos que se aproximavam. Amanda, com uma espingarda destravada, repetia o sinal da Cruz freneticamente, enquanto Eduardo analisava os possíveis pontos de cobertura. De fato, o acampamento era lotado de casinhas, estruturas de madeira, palha e outros equipamentos – como uma carroça abandonada – que poderiam proteger, ainda que temporariamente, os cangaceiros dos tiros que viriam. Com um ódio crescente, Lúcio Arcanjo gritou:

— Padre do inferno! — Então, olhando para os lados, começou a pensar numa possível tática. — Diabo e Amanda, vão pra lá! Eduardo, a gente segura aqui!

Sem questionar as ordens do líder, a mulher e o ex-cangaceiro correram o máximo que puderam. Diabo carregava dois revólveres, enquanto Amanda tinha uma arma de longo alcance. Aproximando-se do limite do acampamento, abrigaram-se atrás de uma fina cerca de madeira. Deitada, a cangaceira apoiou a espingarda em uma pequena falha na cerca, apenas o suficiente para posicionar a arma e mirar com relativa liberdade. Fechando o olho direito, ela via as silhuetas violentas que se aproximavam, enquanto Diabo aguardava que a ação realmente começasse.

Do outro lado, Lúcio e Eduardo se separaram: o líder escondeu-se pouco atrás de uma carroça quebrada – e com a vantagem de ser ainda oculto por uma vegetação que crescia na área –, enquanto Peixeira adentrou um dos armazéns próximos da saída do terreno.

— Dinamites, Lúcio! — Eduardo falou com animação. — Nós tem umas dinamites aqui!

Com um brilho nos olhos, Arcanjo deu um breve sorriso.

— Traga isso pra cá! Eu tenho uma ideia — disse enquanto aproveitava o pouco tempo que tinha.

No horizonte, os fardados se aproximavam de forma cada vez mais ameaçadora. Cada um daqueles soldados tinha um motivo diferente para odiar os cangaceiros. Primeiramente, eles eram criminosos e, por si só, já eram considerados a escória do mundo. Para piorar, eles haviam sido responsáveis pelas mortes de vários colegas ao longo do tempo. Aquele era o dia para a vingança final e, com as armas destravadas, os homens da lei mal podiam esperar para começar a atirar.

No entanto, antes de qualquer disparo ou princípio de violência, houve silêncio. O vento até mesmo parou de cantar e, como que num instante de paz, Carlinhos e os cavalos pastavam e transitavam de um lado ao outro. Porém, essa paz foi dilacerada com o som de um disparo. Os cavalos correram e Carlinhos ficou sem entender, mas Amanda sabia muito bem o que tinha feito. Olhando pela mira da espingarda, a mulher entendeu que não havia mais o que aguardar. Puxou o gatilho e, com um estouro, a bala viajou vários metros até encontrar o seu único destino possível: a cabeça de um dos homens fardados.

Com uma explosão de medo, o sangue do homem respingou em seus aliados, ao mesmo tempo em que o cavalo do morto se desesperou e, levantando as patas dianteiras, deixou que o cadáver caísse.

— Ali! — um dos soldados apontou com o cano da espingarda.

Os cinco fardados daquela frente atiraram freneticamente sem saber exatamente onde mirar. Tudo que viam era, na verdade, um conjunto de casinhas e estruturas sem muita complexidade, mas nada dos cangaceiros. Não importava, pois contavam com a sorte e rezavam para que alguma bala perdida encontrasse um corpo para se alojar. Os projéteis voaram e, além de provocarem um som amedrontador, também partiam as pobres estruturas em pedaços. Dezenas de buracos foram feitos nas casas, armazéns e até mesmo na cerca que protegia Diabo e Amanda. Eles, porém, seguiam intactos.

— Mais um — Amanda disse enquanto se preparava para mais um tiro.

E acertou! Àquela altura, os quatro soldados restantes perceberam que não era eficaz atirar no nada. Controlando os cavalos de forma agressiva, começaram uma movimentação bem planejada: revezavam-se em um zigue-zague difícil de acertar com tiros, ainda mais àquela velocidade e distância. Enquanto isso, do outro lado, os outros seis sabiam o que os tiros significavam, ou ao menos pensavam isso.

— Eles estão distraídos, é a nossa chance! — um deles falou enquanto avançava com o cavalo.

Os outros cinco, sem tempo para discutir, seguiram o líder autoproclamado. Como que numa fila indiana, iam em direção à parcela aparentemente vazia do terreno. Viam apenas uma carroça velha, algumas casinhas sem graça e um pouco de mato no chão. Podiam sentir que bastaria avançar mais alguns metros para acabar de vez com os cangaceiros. Ledo engano! Não notaram que, rente ao chão, uma corda amarrada a uma série de dinamites estava em chamas. Quando um deles percebeu, era tarde.

A fila indiana foi desfeita de maneira visceral. Quando o terceiro cavalo estava para passar da corda, três dinamites explodiram. O animal e seu dono viraram pedaços de carne vermelha pintando o chão e seus colegas. Outro, logo a frente dele, também voou e encontrou a morte. O que estava logo atrás sobreviveu, mas não sem antes ver seu cavalo ser morto e, logo em seguida, ter suas pernas quase esmagadas pelo peso do animal. Os três cavalos restantes, assustados, começaram a se mover de forma descontrolada, tendo seus donos um medo ainda mais profundo.

Foi a oportunidade perfeita para que Lúcio e Eduardo se revelassem. Com os revólveres já destravados, eles dispararam agilmente contra os fardados restantes – ao menos aqueles que estavam sobre os cavalos. Foi um trabalho sujo, sanguinário, mas eficiente. Em questão de segundos, os três cavaleiros estavam caídos no chão, finalmente sem vida. Entretanto, em um momento estúpido de distração, os dois cangaceiros ignoraram que um dos homens caídos – aquele que fora quase esmagado pelo cavalo – ainda estava desperto. Com uma arma em punho e grande ódio no coração, o homem da lei disparou freneticamente torcendo para acertar os dois cangaceiros, mas logo foi calado por um tiro ágil de Lúcio. O líder cangaceiro sorriu, pois achava que ele e Eduardo tinham feito um trabalho perfeito naquela frente. Entretanto, ao olhar para o lado, viu que seu amigo não estava bem. Com o corpo crivado de balas, ele cuspia sangue e tinha um olhar perdido na direção do nada.

— Não! — Lúcio começou a sentir o luto tomar conta de si, mas não havia tempo para isso.

Do outro lado, a guerra continuava. O líder cangaceiro foi então até o triste corpo de Eduardo, retirou a última dinamite que ele carregava e correu em direção ao caos. No meio do caminho, deparou-se com cavalos mortos e até mesmo o pobre Carlinhos, todos vítimas do fogo cruzado. “Isso tem que acabar”, pensou com ódio enquanto se aproximava dos sons de tiro e violência.

Diabo e Amanda passavam por maus bocados. Com os quatro cavaleiros do Apocalipse se aproximando, a mulher não encontrava mais uma maneira de mirar com segurança. Para piorar, os algozes já sabiam onde a dupla estava e agora disparavam na direção deles. Por sorte, a cangaceira e o ex-cangaceiro estavam em um terreno levemente mais elevado. Deitados, até que conseguiam escapar das balas, mas era só questão de tempo até que a morte chegasse.

— Saiam daí! — Lúcio gritou. Na mão, o líder segurava a última dinamite com o pavio já aceso.

Entendendo o que ocorreria, Diabo tocou no ombro de Amanda e apontou para Lúcio. A dupla então se arrastou e, logo em seguida, começou a correr na direção do líder. Ao mesmo tempo, Lúcio arremessou a dinamite rezando para que ela fosse o bastante para acabar com essa guerra. Caindo no solo seco, ela assustou os homens fardados e explodiu, levantando poeira para todos os lados e criando uma considerável área de baixa visibilidade.

Por um momento, o mais severo silêncio tomou conta do ambiente. Com um misto de curiosidade e medo, os três bandidos mantinham suas armas apontadas para a camada de poeira que pairava no ar. Então, uma assombrosa silhueta maior que um homem apareceu e o trio disparou sem nem pensar. Quando viram, um cavalo baleado caiu no chão e, após breves momentos de agonia, morreu. Nenhum soldado estava montado no pobre coitado.

— Será que eles morreu? — Amanda perguntou em voz baixa, ao mesmo tempo em que tremia com a arma na mão.

Foi então que um disparo cortou a zona de mistério, seguido por outro e mais um. Agilmente, os três bandidos se esconderam dentro de uma casinha e, em retaliação, dispararam contra a camada de areia que ainda persistia. E, naquele momento, o silêncio resolveu imperar novamente. “Algum plano, Lúcio?”, Diabo pensou em perguntar. O líder tinha o costume de ter ótimas ideias, mas a inspiração já parecia ter esvaído. O homem cheio de cicatrizes, por outro lado, não pensava muito: simplesmente colocava uma bala na cabeça de cada um dos seus inimigos. Agora, aquela falsa paz era mais assustadora do que qualquer som de disparo, mas Arcanjo continuava com uma postura relativamente calma.

Tudo mudou com aquele terrível som. Lúcio o conhecia bem: era o queimar do pavio de uma bomba ou dinamite. Com os três bandidos dentro da mesma casinha, não levou muito tempo para que um deles encontrasse a bomba: estava junto a porta.

— Cuida... — Arcanjo nem teve tempo de terminar.

Fumaça, palha e madeira voaram para todos os lados. Cego e surdo por alguns segundos, Lúcio só conseguia identificar a dor que assolava seu corpo. Deitado no chão, ele sentia a pele espetada pelos estilhaços da casa, enquanto uma densa fumaça o protegia da visão de seus algozes. Entretanto, o terror instalou-se na alma do homem quando ele olhou para o lado. Perfurada por incontáveis estilhaços, Amanda havia se tornado puro sangue. Sem qualquer resposta, sua inatividade não indicava outra coisa a não ser morte. Gritando de fúria, Lúcio decidiu que era a hora de apostar tudo que tinha: levantando-se de maneira quase inconsequente, ele atravessou a fumaça com o revólver em mão e atirou contra qualquer homem que visse.

Foi tudo muito rápido: enquanto atravessava para o outro lado, viu três silhuetas distraídas com a explosão aparentemente bem-sucedida. Furioso, Arcanjo matou os dois primeiros homens com tiros na cabeça. Quando ia disparar no terceiro, a arma fez um clique, indicando que as balas haviam acabado. Então, o algoz pensou em mirar contra o cangaceiro, mas o bandido avançou com tudo que tinha a segurou a espingarda do inimigo. Numa disputa de força bruta, um tentava virar o cano da arma na direção do outro. Mas o líder dos bandidos tinha mais ódio, fúria e coragem. Tomando a arma para si, até pensou em colocar uma bala na cabeça do homem da lei de uma vez por todas, mas isso seria fácil demais. Percebendo que o suposto quarto membro já havia morrido na penúltima explosão, Lúcio Arcanjo resolveu extravasar todo seu ódio.

— Vem cá — ele convidou o último agente vivo para uma dança da morte.

Assustado, o fardado até tentou sacar uma faca, mas foi lento demais. O cangaceiro o acertou com a coronha da arma, fazendo com o que o homem da lei caísse no chão com a testa sangrando. Isso, no entanto, não era o suficiente. Gritando a cada novo golpe, Lúcio continuou acertando a cabeça do homem com a pesada arma. Seus gritos, sua fúria e sua vingança podiam ser ouvidos do inferno e, sem perceber o tempo passar, ele logo quebrou o crânio do agente e transformou sua cabeça numa massa sangrenta.

Com todos os algozes mortos, a luta havia chegado ao fim. Caindo de joelhos, Lúcio sentia um misto de cansaço e ódio. Com o reduzir da adrenalina, uma intensa dor começou a tomar conta dos seus membros. Olhando com atenção, o líder cangaceiro percebeu uma série de cortes e hematomas que haviam passados despercebidos, mas que agora gritavam de angústia por todo seu corpo. Não importava: ele precisava se reerguer e se preparar para vingar o seu bando. Virando a cabeça para o lado, viu a trilha de sangue e desgraça que se seguia com cadáveres nos mais diversos estados. Amanda e Eduardo mortos, enquanto o corpo de Diabo provavelmente estaria em pedaços. Estaria? Para a surpresa de Lúcio, o homem de muitas cicatrizes apareceu caminhando com dificuldade. Apoiando-se em qualquer coisa que visse na frente, ele saía do resto da casinha que fora explodida. No entanto, ele não era mais o mesmo.

Além de estar com o corpo inteiro pintado de sangue, o rosto de Diabo vestia uma máscara vermelha de violência. Quando ele se aproximou, Lúcio percebeu: além de uma nova coleção de cicatrizes, o ex-cangaceiro contava agora com um olho a menos. Diabo, no entanto, não olhou para o líder cangaceiro ou mesmo para seus antigos colegas de bando. Mancando e sentindo dores a cada passo, ele foi em outra direção. Virando para a direita, o seu Norte estava direcionado para uma pequena casinha, exatamente aquela onde deixara Maria Beatriz com a pequena Alice.

Cuspindo sangue de vez em quando, o homem acelerava o passo, ainda que isso lhe causasse mais dores. Com a porta crivada de balas em decorrência do fogo cruzado, ele já começou a pensar no pior, e o mesmo aconteceu com Lúcio. Ainda no chão, o líder do bando virou os olhos para a residência onde estava sua mãe. Não pensou em mais nada: levantou-se e disparou na direção do local desesperadamente. Chutando a porta com força, chegou gritando:

— Mãe! Mãe!

Não houve resposta alguma. Rezando para que a matriarca estivesse apenas muda ou que não pudesse ouvi-lo, Lúcio Arcanjo adentrou o quarto com uma falsa esperança. Morreu por dentro quando encontrou Joana Arcanjo com o corpo coberto por balas e sangue.

— Não, mãe! — Lúcio caiu de joelhos ao lado da cama e começou a chorar. — Não faça isso comigo! Não!

Do lado de fora, um ferido Diabo dava passos aliviados enquanto caminhava na direção do centro do acampamento. Atrás dele, Bia estava cheia de traumas e pavor, mas bem. Firmemente segura nos braços da mãe, Alice não via a cena de violência, mas podia sentir que o mundo havia acabado ali fora. Estranhando a demora de Lúcio, o ex-cangaceiro pensou no pior.

— Você acha... — Bia estava com dificuldades de dizer qualquer coisa que fosse. — Você acha que dona Joana...

Diabo não respondeu com palavras. Ao invés disso, simplesmente olhou para Maria Beatriz. Ela viu o rosto desfigurado do ex-cangaceiro não só coberto por sangue, mas por uma tristeza tão profunda que seria capaz de inundar o mundo. Não tardou, entretanto, para que as suspeitas fossem confirmadas. Com uma expressão que refletia o inferno, Lúcio Arcanjo saiu da casinha da mãe. Bia e Diabo mantiveram-se calados, mas não tardou para que o último cangaceiro fizesse uma promessa:

— Eu vou matar o padre, o prefeito, tudo! Eu vou matar todo mundo!


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Notas finais do capítulo

O fim está muito próximo. Quais as expectativas?

Muito obrigado pela leitura e até logo o/



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